Sobre a Amizade e a Sabedoria em Confúcio

Para o sábio Confúcio, todo os seres humanos do mundo são seus irmãos (Lunyu, 12). No entanto, quem – em busca da sabedoria – já não se sentiu só, desalentando, cada vez mais longe daqueles com quem se relacionava? Será que investigar o íntimo para nos tornarmos melhor necessariamente exige o afastamento de todos? Ou ainda, será que nós, na verdade, nos separamos das pessoas e acreditamos tomar posse de uma verdade que exclui a tudo ou a todos? Podem mesmo todos ser meus irmãos, se muitos desses não têm nenhum interesse pela minha saúde, caráter e mesmo, alguns (seja lá por qual motivo) são até meus inimigos?



Eis o primeiro ponto que nos detém na prática do Dao. É necessário, de fato, afastar-nos de tudo? O Caminho exige um total desprendimento dos sentimentos e das coisas? Para Confúcio tal pergunta pareceria, curiosamente, absurda. O dao confucionista é social, pois visa e prioriza o convívio ético entre os seres humanos e a natureza; não pode (e nem tenta) nos livrar completamente de desejos, sensações e sentimentos, posto que estes são inerentes ao ser humano; busca, de fato, dar-lhes uma coerência harmônica, evitando seu excesso ou ausência de acordo com o ser, a circunstância e com as possibilidades.



No entanto, se o dao de Confúcio pressupõe a anuência de nossa humanidade como base de toda sabedoria, porque então estamos ou nos sentimos sós quando buscamos o aprimoramento íntimo? Porque não se preza o sábio e nem a sabedoria, mas o vulgo? Se a convivência faz parte do existir, estamos incorrendo em algum erro?



Este tipo de dúvida provavelmente atormenta e assusta todo aquele que busca o Caminho. A solidão parece ser a sombra de seu erro, e sua recompensa é a incompreensão. Pode o mundo estar correto, deste modo, ou estará o discípulo irremediavelmente perdido em suas idéias?



Inevitavelmente a quebra de alguns laços se faz naturalmente quando mudamos a perspectiva pela qual enxergamos o mundo. Mudamos hábitos, desfazemo-nos de vícios, e por vezes perdemos ou negligenciamos alguns amigos. Dessas perdas, algumas são sentidas, outras nem tanto (posto que algumas destas companhias eram apenas colegas nos maus-hábitos). Vemos que do fardo das experiências humanas que carregamos como bagagem, muitas coisas já perderam sua valia, e nos atemos a ela por uma saudosa impressão do passado. Para Confúcio, o passado é realmente o arcabouço de nossas experiências; mas já passou, e se não olharmos para frente, não andaremos.



Esta grande quantidade de aparentes clichês (que os sábios chineses cuidam zelosamente de repetir, posto que elas são a essência de nossas dúvidas) vão aos poucos nos encaminhando para uma outra condição existencial que até então nos era desconhecida ou inimaginada; a realização da amizade verdadeira na sabedoria. Sim, diz o mestre; ao buscar a sabedoria, surge o vácuo das relações sociais, mas ele não é eterno. Perdemos amigos, mas faremos outros; talvez nem tantos quanto antes, mas melhores; nem tão diversos, mas muito mais próximos. A verdadeira sabedoria não afasta pra sempre – o estado de solidão é, na verdade, uma transição para aquela condição em que o sábio emerge no céu como a lua cheia na noite – neste momento, todos o vêem e o admiram. É impossível fugir de sua luz, mesmo na escuridão. Não deve aquele que busca o caminho, pois, se ressentir da solidão; ela passará. Esta condição apenas não modificar-se-á se o aprendiz de sábio estiver incorrendo em erro ou, se estiver realmente no lugar errado. Em ambos os casos, melhor atentar a si próprio e descobrir o que não está funcionando de modo adequado. A insistência na misantropia é o anseio de outras escolas, mas não dos confucionistas. Convém, portanto, saber o que se está fazendo e seguir as instruções sobre a amizade que o Mestre legou a posteridade.



Orientações sobre a amizade



Tenhamos em mente que a busca do caminho parte de nós mesmos. Ela tem origem no eu, e não no outro (Lunyu, 12). Logo, o sábio sabe de si mesmo, e assim procedendo, conhece aos outros. “Coloca-me na companhia de duas pessoas escolhidas ao acaso - elas invariavelmente terão algo para me ensinar. Poderei tomar suas qualidades por modelo e seus defeitos como alerta” (Lunyu, 7). Seu potencial reside, no entanto, no exemplo e na conduta, e não na imposição – por isso, ele não busca modificar aos outros, mas antes de tudo tenta conduzir a si próprio com clareza e apenas incitar o que é benéfico.



Assim é que o sábio busca na amizade a realização do seu eu; na afinidade existente em torno da busca da sabedoria, ele encontra seus companheiros de viagem e pode, então, realizar plenamente o Ren (humanismo) (Lunyu, 12). Que fique claro, não existem amigos unidos por afinidades nefastas; pela violência ou corrupção, aproximam-se pessoas cujos interesses associam-se enquanto a vale a causa; em situação de perigo ou passada a ocasião, desfazem-se estes laços dos piores modos. Ações, motivos ou objetos desagregadores não podem unir, pois é da sua natureza desunir – logo, como poderiam servir a amizade?



Por isso afirma o mestre; “Três tipos de amigos são benéficos; três tipos de amigos são nefastos. A amizade com os retos, os dignos de confiança e os sábios é benéfica. A amizade com os desviantes, os falsos e os eloqüentes é nefasta" (Lunyu, 16). A maior parte de nós usualmente afirma conhecer estas regras, mas qual de nós realmente a põe em prática? Quem de nós não tolera, por exemplo, uma certa maledicência tomando-a pelo fim “útil” da informação? Muitas de nossas associações não são coerentes com o que buscamos – é necessário, portanto, um auto-exame profundo neste momento.



Porque a amizade é um dos maiores prazeres que o sábio pode ter (Lunyu, 16). Quem não ficaria feliz com amigos que vêm de longe vê-lo, que são como irmãos ou primos? (Lunyu, 1) Pessoas que ouvem e confiam em suas palavras, tal como você pode nelas confiar; não é este um desejo quase manifesto de todos nós? (Lunyu, 5) Que lhe dedicam uma atenção especial, rigorosa, cordial e profunda? (Lunyu, 13) Amigos, pois, que não cedem aos principais problemas do real; o tempo, a distância e os interesses voláteis.



Por este motivo, o sábio vigia diligentemente sua conduta, a fim de proporcionar aos seus amigos aquilo que gostaria que estes lhe proporcionassem (Zhongyong, 8). No entanto, sua ação não visa somente a compensação; ela o faz pelo simples interesse do bem alheio, do devotamento gerado pelo sentimento de amizade. A reciprocidade não é um fim, mas um movimento, uma condição existente dentro da amizade. Ela acontece, decorre da amizade; se fosse um pré-requisito, como poderia ser então sincera?



O exercício da amizade é praticamente um dever universal (Zhongyong, 10), que se funda nesta constante observação do nosso íntimo. Mestre Zeng disse: "Examino a mim mesmo três vezes por dia. Ao intervir em favor dos outros, fui digno de confiança? Na relação com meus amigos, fui leal? Pratiquei o que aprendi?" (Lunyu, 1). Aquele que é fiel ao amigo conhece – mesmo que não saiba – uma das principais regras morais existente, e em torno da qual se constrói a sabedoria (Lunyu, 1). Por isso mesmo um sábio também não tem amigos que não sejam como ele; afinal, buscamos nos outros o reflexo de nós mesmos. Como podemos manter próximos de nós aqueles que não desejam atingir nenhuma sabedoria? (Lunyu, 1)



Isso não significa absolutamente deixar de lado a humanidade, nem ser pedante, arrogante ou preconceituoso. Devemos todo o tempo manter a regras da etiqueta, respeitar os ritos e ser equânimes em nossas atitudes. Mas de que adianta ou para que servem as amizades nas quais não podemos nos aprofundar, que não frutificam, que não se estabelecem pelo interesse na sabedoria? São perda de energia, de tempo, desvios no próprio curso do Dao. Assim sendo, o ser humano nunca deve ser negligenciado, enquanto ser social; mas da nossa intimidade, aproximam-se aqueles que naturalmente nos guardam afinidade intelectual e espiritual. Com eles podemos finalmente exercitar a amizade. Pois o Ren é amar as pessoas, e a sabedoria é conhecê-las (Lunyu, 12).



Tal condição implica naturalmente em observar que algumas pessoas afastam-se de nós, tomando-nos como contraponto a sua conduta. Disto surge o problema da inimizade. Que fique claro que o sábio não busca nem tolera a amizade com aqueles que insistem na prática dos erros e dos excessos. No entanto, não afeiçoa ao sábio a idéia de ter inimigos, pois a sua busca consiste justamente em compreender e auxiliar a humanidade. Neste contexto, portanto, ele aconselha lealmente e se guia com tato, tal como faria com um amigo. Se forem inúteis seus esforços em resolver a questão, não insiste e nem espera ser insultado (Lunyu, 12). Apenas afasta-se, e despreocupa-se (Lunyu, 5). Afinal, o caminho é muito mais amplo do que isso. Perder de vista a busca em função da incompreensão alheia, este sim é um erro. O sábio deve sempre evitar cair nesta cilada – e não podendo dela escapar, conduzir-se então de modo que suas ações exprimam exatamente o seu caráter, pois o que se funda na virtude não perece. Eis um descrição sucinta do sábio, que resume precisamente algumas características buscadas na amizade; “apreensão, inteligência, conhecimento profundo e compreensão - qualidades necessárias para o exercício do palavra, da magnanimidade, da generosidade, da benignidade e da gentileza - qualidades necessárias para o exercício da paciência; originalidade, energia, força de caráter e determinação; qualidades necessárias para o exercício da paciência, da piedade, da seriedade nobre, da ordem e da regularidade; qualidades necessárias para o exercício da dignidade, da graça, do método, da sutileza e da penetração; qualidades necessárias para o exercício do julgamento crítico” (Zhongyong, 31). Ao buscar tais valores, não encontramos a equanimidade e a justiça característica da verdadeira amizade?



A Amizade, portanto, é amor, o compartilhar da virtude e da sabedoria, é o ideal de uma busca comum, o Caminho. Assenta-se não apenas no prazer advindo da relação, mas também em nos incitar constantemente a reformular nossa conduta íntima e dirigir nossa atenção aos nossos erros, visando corrigi-los. A Amizade é o próprio Ren, o humanismo que nos funda, nos constitui e permeia todas as nossas atitudes. Quem poderá, pois, não ter amigos possuindo (ou apenas, buscando) a sabedoria?



O sentido profundo do valor da amizade não pode ser buscado meramente na aparência ou no conhecimento de uma grande diversidade de companhias. Está, pois, no coração de quem a conhece – e para conhecê-la, precisamos da sabedoria. Sendo sábios, adquirimos o sentido da amizade. E vemos, assim, que ambas se engendram mutuamente, se alimentam, se sustentam de modo infinito, fortalecendo o sentido da busca.



Afinal, Confúcio exemplificou exatamente isso, tendo muitos amigos, chorando ou comemorando seus discípulos preferidos. Era sossegado e sorridente, concentrava-se no caminho, modelava seus atos pelo Ren, era sensível, despertava-se pela música, era frugal nas refeições, escutava os que lhe diziam, pesava as coisas antes de tomar partido, perambulava pelas terras, vislumbrava a natureza, orava aos deuses, era doce (mas firme), imponente (sem ser intimidador), polido e no entanto, absolutamente natural, buscando sempre deixar os outros a vontade (Lunyu, 7). Alguém, enfim, absolutamente comum. Alguém que desejamos para amigo.



O que ele sabia, pois, que não podemos saber? Eis a sua sabedoria!





Sugestões de Leitura

Os textos de Confúcio (Lunyu, Zhongyong e o Liji) podem ser encontrados na Página

http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/classiques/chine_ancienne/chine_index.html

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