Ao tentar analisar o Confucionismo como um movimento de idéias, a tendência mais comum entre os pesquisadores ocidentais é a de buscar enquadrá-lo em alguma de suas tradicionais categorias de classificação, tais como “religião” e “filosofia”. No entanto, nenhuma dessas categorias consegue realmente responder, de forma completa, ao que o confucionismo representa – ou talvez, o confucionismo contenha um pouco de cada uma destas categorias, tendo uma liberdade de trafegar entre elas que é relativamente inadmissível para o nosso pensamento científico.
O objetivo deste texto, portanto, é analisar algumas das características que tornam o confucionismo uma doutrina de difícil classificação – e por isso mesmo, um interessante modelo teórico para nossos métodos de investigação histórica e filosófica.
O que o torna uma religião?
Para classificar o confucionismo como um tipo de religião, é necessário saber se ele atende a algumas qualificações que tornam um determinado tipo de pensamento dito como “religioso”. Foi Vincent Goosaert quem afirmou que uma religião, para ser assim classificada, necessita ter um clero, um cânone e uma liturgia – e no caso chinês, esta classificação tipológica, sem bem pode ser aplicada ao daoísmo, sofre porém uma certa dificuldade em ser utilizada para o confucionismo e o budismo (Les traits fondamentaux de la religion chinoise - Clio, 2006).
Os confucionistas nunca se organizaram algum tipo de clero, e a chamada “classe letrada” – embora comportasse grande parte dos confucionistas – era muito mais um estamento social aberto aqueles que possuíam saber do que, propriamente, um sistema de administração religiosa. Quanto ao cânone, podemos dizer que existia um grupo básico de obras confucionistas tidas como fundamentais para a compreensão da doutrina e a prática de seus aspectos morais (os ditos “Clássicos” de Confúcio), mas ainda assim, o aspecto litúrgico torna-se outro fator de descontinuidade nesta análise.
Os confucionistas eram praticantes e defensores inveterados de um conjunto de rituais que julgavam ser fundamentais para a administração da ordem cósmica e natural da sociedade. No entanto, tais rituais sempre tiveram um caráter complexo, posto que envolviam atitudes que podemos classificar como religiosas mas, ao mesmo tempo, abrigavam em si próprios a possibilidade de serem interpretados como uma prática eminentemente social. Como afirmou Mircea Eliade (explanando, talvez, a própria dificuldade em classificar o confucionismo), “Confúcio não é propriamente um líder religioso. As suas idéias, e sobretudo as dos neoconfucionistas, são estudadas, em geral, nos compêndios de história da filosofia. Mas, direta ou indiretamente, Confúcio teve profunda influência na religião chinesa. Na verdade, a própria fonte da sua reforma moral e política é religiosa. Por outro lado, ele não rejeita nenhuma idéia tradicional importante, nem o Tao, nem o deus do Céu, nem o culto dos antepassados. Além disso, exalta e revaloriza o papel religioso dos ritos e comportamento costumeiros. [...] Entretanto, a prática [dos ritos] não é alcançada com facilidade. Não se trata, em absoluto, de um ritualismo exclusivamente exterior, nem, tampouco, de uma exaltação emotiva intencionalmente provocada quando se efetua o ritual. Todo comportamento cerimonial correto deflagra uma força mágico-religiosa temível. [...] Porque o Cosmo e a sociedade são regidos pelas mesmas forças mágico-religiosas ativas no homem. [...] Uma disciplina que busca a "transmutação" dos gestos e dos comportamentos em rituais, conservando-lhes, ao mesmo tempo, a espontaneidade. possui, sem dúvida, uma intenção e uma estrutura religiosa. Sob esse prisma, pode-se comparar o método de Confúcio com os ensinamentos e as técnicas pelas quais Laozi e os daoístas julgavam poder recuperar a espontaneidade inicial. A originalidade de Confúcio é ter buscado a "transmutação" em rituais espontâneos dos gestos e condutas indispensáveis numa sociedade complexa e altamente hierarquizada” (Eliade, 1986).
Mas se o confucionismo é, em essência, religioso, então porque o próprio Confúcio tinha receio em declarar-se sobre o outro mundo, sobre o além? O “Céu” a que se refere Confúcio (Tian) está muito mais próximo da noção de uma ecologia universal, impessoal e imutável do que de um Deus atuante, presente e personalista.
No entanto, se deslocarmos o problema da crença num mundo além como um determinante para o confucionismo transformar-se numa religião, então, veremos que os confucionistas posteriores trataram o problema da transcendência e da alma com uma naturalidade atípica de não-religiosos; “Aos que afirmam e argumentam que a tradição chinesa não conheceu uma dimensão de "transcendência religiosa" esta fórmula apresenta uma resposta em linguagem paradoxal. Ilustra a necessidade duma compreensão "dialética" da China - uma compreensão que vai além das afirmações e negações, sem negar a utilidade de algumas afirmações e de algumas negações. A orientação do chinês "para este mundo", a harmonia chinesa entre homem e natureza, entre homem e mundo, a preferência dos chineses pelo humano e pelo ético, acusam uma espécie de "imanência divina", de presença do absoluto no relativo, nas relações humanas, no domínio do natural. Mas não se exclui o transcendente. Na verdade, este vem realçado, uma vez que dá sentido ao ordinário e ao natural, ao secular e ao moral. O senso religioso peculiar dos chineses visa de fato a um harmonioso equilíbrio entre dois mundos, o visível e o invisível, o temporal e o supratemporal. Mas orienta a pessoa humana a procurar sua salvação, ou mesmo sua perfeição, no aqui e agora, particularmente na moralidade das relações humanas como quer o confucionismo, mas também na beleza da natureza como querem os sábios daoístas (Ching, 1978).
Tais opiniões demonstram o quão problemático é tentar definir em termos específicos o caráter do confucionismo. Se o próprio Confúcio, durante a dinastia Han, se transformaria num objeto de culto, como podemos afirmar que os confucionistas não seriam essencialmente religiosos? Mas podemos modificar a pergunta, redirigindo-a: cabe ao confucionismo ou ao senso religioso dos chineses a maneira como se pode interpretar, pessoalmente, a figura de Confúcio? Afinal, ele nunca se caracterizou como um santo fazedor de milagres – e nenhum chinês esperava isso dele. Além disso, os chineses acreditavam ser bem plausível a possibilidade de possuir uma crença no além que não implicasse no abandono do confucionismo como uma doutrina de prática moral; afinal, alguns letrados se converteram ao cristianismo sem que isso motivasse qualquer tipo de conflito pessoal – na verdade, o esforço de alguns religiosos cristãos em estabelecer este confronto entre a sua verdade e as outras é que afastava muitos chineses do processo de conversão (Gernet, 2001).
Uma concepção moral e religiosa, ou um tipo de filosofia?
D. Smith apontou, com clareza, o problema de definição do confucionismo: “Foram erigidos templos em sua honra, e mesmo nos primeiros anos do século atual foi feita uma tentativa séria, embora abortada, para tornar o confucionismo a religião do estado. No entanto, Confúcio não fundou uma religião, e muitos estudantes distintos da cultura chinesa, tanto no Oriente como no Ocidente, têm-se recusado a chamar ao confucionismo uma religião. Confúcio, defendem eles, foi primeiramente um grande professor ético, interessado principalmente em problemas sociais e políticos. Põe-se contudo a questão: se os seus ensinamentos éticos e político-sociais se baseavam num humanismo racionalista, ou numa profunda fé religiosa que se manifestava na devota aceitação das práticas religiosas tradicionais e na humilde confiança num supremo e divino poder. Ê a resposta a esta pergunta que vai determinar se sim ou não o confucionismo pode ser enfileirado entre os grandes sistemas religiosos do mundo.
Tem-se discutido, e não sem razão, que o confucionismo não possui muitas das importantes características que se encontram na maioria das grandes religiões históricas da humanidade. Nunca possuiu uma organização distintamente religiosa. Nunca desenvolveu um clero especializado, sendo as funções sacerdotais realizadas pelo chefe do estado ou do clã, ou entregues a funcionários escolares. Não possuía afirmações de credo nem doutrinas autoritárias. Olhava com desprezo o monasticismo e o ascetismo. As suas “escrituras”, embora respeitadas, nunca foram julgadas “revelações” como a Bíblia, o Alcorão ou os Vedas. Nunca teve ritos de iniciação numa comunidade religiosa. Não tem uma doutrina distinta do após-vida e falta-lhe uma escatologia. Contudo, se religião se define, de modo geral, como o reconhecimento do homem, a sua crença e a sua atitude para com um poder ou poderes espirituais mais altos, se a religião diz respeito ao significado fundamental da vida e do destino humano, então o confucionismo devia ser classificado como religião e não simplesmente como uma filosofia ético-política. Através de toda a sua história, o confucionismo tem manifestado um profundo sentido da dependência do homem de uma divindade suprema. Tem encorajado um sentido de íntima relação entre um mundo espiritual transcendente e o mundo dos homens. Tem dado expressão a um sentido de dependência de seres espirituais em rituais complicados e orações fervorosas” (Smith, 1971).
Seria então um tipo de “humanismo religioso”, ou seja, um tipo de proposta moral de características religiosizantes, mas não hermeticamente fechado num único tipo de crença, tal como propôs Julia Ching em seu Chinese Religions? (1993). Se aplicarmos estas definições, como então podemos incluir o confucionismo como um tipo de filosofia ou sistema de pensamento que seja classificado como tal?
Por este motivo, Anne Cheng, no seu recente Histoire de la Pensee chinoise (1998), preferiu abandonar a polêmica em torno da definição filosófico-religiosa para abordar o pensamento chinês como toda uma corpora de características próprias, que deve ser respeitado por sua profundidade, produtividade e criatividade. Na verdade, Cheng prefere nem mesmo abordar o problema em saber se o pensar chinês é uma filosofia ou não – tema que por si só problematizaria a confecção de um manual.
Por este motivo, talvez, sejam válidas definições que buscam não fechar o pensamento confucionista em proporções restritas. Um exemplo disso é a apresentação de R. Joppert sobre o que seria o confucionismo como movimento: “A doutrina que pregou dava grande importância aos exercícios de atitude ritual, bases de um aperfeiçoamento individual capaz de permitir o controle absoluto dos gestos, das ações e dos sentimentos. A moral confuciana é fruto de uma reflexão permanente sobre os homens. Ela é pratica e dinâmica e as qualidades de um homem realizado (a primeira delas, a virtude “ren”, que supõe uma disposição afetuosa em relação ao próximo) não se definem de modo absolutamente igual para todos, mas admitem uma grande maleabilidade, segundo o caso e o indivíduo. A sabedoria adquire-se pelo esforço de toda uma vida, através do governo dos mínimos pormenores da conduta, pela observação das regras de agir em sociedade (li), pelo respeito ao próximo – enfim, pela absoluta compreensão do princípio da reciprocidade. A virtude é um valor incorporado e não uma qualidade intrínseca do nascimento nobre”(Joppert, 1978).
Outra síntese igualmente eficaz para compreender os aspectos profundos e abrangentes da interpretação do confucionismo é dada por Chan Wing Tsit: “Dizer que Confúcio era humanístico não é negar que o sábio mostrou razoável interesse pela religião. Confúcio foi, por um lado um reformador, um pioneiro da educação universal, para todos os que quisessem vir e para pessoas de todas as classes, um homem que viajou quatorze anos por muitos Estados em busca de uma oportunidade para servir os governantes, a fim de que a Ordem Moral (dao, o Caminho) pudesse prevalecer. Era, por outro, um conformista, um homem "fiel aos antigos e que os amava", um homem que tentou preservar a doutrina de Zhou , da qual era parte integrante o culto do Céu e dos antepassados. Conseqüentemente, disse que "O homem superior teme (...) os decretos do Céu". Acreditava que "Se deve prevalecer a Lei Moral, é porque esse é o mandamento do Céu". Ele próprio oferecia sacrifícios aos seus antepassados e "tinha a sensação de que eles estavam realmente presentes", dizendo: "Se eu não estiver presente ao sacrifício, será o mesmo que não fazer sacrifício". Não obstante, pôs francamente o bem-estar dos homens à frente da religião. Sua relutância em discutir o Céu levou seus alunos a dizerem que sua concepção do Céu "não podia ser ouvida". "Nunca discuta fenômenos estranhos, explorações físicas, desordens ou espíritos". Quando um aluno lhe perguntava sobre o ato ou a maneira de servir os espíritos e sobre a morte, respondia: "Ainda não sabemos servir os homens; como podemos saber servir os espíritos?... Ainda nada sabemos da vida, como podemos saber alguma coisa sobre a morte?" Por estas amostras, é evidente que Confúcio era um humanista mesmo em matérias religiosas; não era um sacerdote, muito menos fundador da religião que tinha o seu nome. O Homem, somente o Homem, ocupava sua atenção primeira” (Chan, 1978).
Uma conclusão
Por esta breve apresentação, portanto, extraímos o sentido de que o confucionismo, seja como movimento intelectual, religioso, moral ou filosófico, admite como sua estrutura fundamental de existência um conjunto de regras básicas extremamente flexíveis no que tange a absorção de novos elementos provenientes de fora de constituição original. Como modelo de sistema de pensamento, o confucionismo tem a possibilidade extremamente atraente de contradizer as definições categóricas arbitrárias, de reconstruir-se constantemente e evoluir, longe pois de constituir-se como uma doutrina fechada e hermética. Filosofia ou religião, que importa? O confucionismo existe há mais de 2000 anos, e continua a existir como proposta intelectual viva e atuante. Será, pois, que é justamente este o seu segredo?
Bibliografia
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Ching, J. Chinese Religions. Hong Kong: Macmilliam, 1993.
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Eliade, M. História das Crenças e Mitos Religiosos. Rio de Janeiro: Zahar, 1986
Granet, M. O Pensamento Chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
Groot, J. The Religious System of China, 6 vols. Leiden, 1892.
Joppert, R. O Alicerce Cultural da China. Rio de Janeiro: Avenir, 1979.
Larre, C. O Sentido de transcendência dos Chineses. in BOFF, L. (org.) China e o Cristianismo. Petrópolis: Vozes, 1978.
Maspero, H. Taoismo y las religiones chinas. Madrid: Trotta, 1998.
Smith, D. T. Religiões Chinesas. Lisboa: Arcádia, 1971.
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