Mas há uma filosofia chinesa?

Já tratei deste tema antes, mas ele é recorrente: há uma filosofia chinesa? Podemos doravante utilizar o termo "Filosofia" para os sistemas de pensamento chinês?



A insistência na pergunta tem uma razão de ser: entre os sinólogos anglófonos, a questão não é devidamente discutida, e o pensar chinês pode ou não ser chamado de filosofia porque ele não precisa ser necessariamente definido - ou seja, a idéia de multiculturalidade (à moda americana, principalmente) torna desnecessária a classificação do pensamento chinês como algo intercambiável (e a atitude comparar a filosofia chinesa com o pensamento ocidental é algo isolado entre esta linha de sinológos) - assim, o pensamento chinês é o que é, e podemos chamá-lo do que quisermos; entre os francófonos, associar o pensamento chinês à filosofia implica, justamente, numa necessidade de diálogo entre ambos, para saber se há algo de conceitualmente comum ou não - o que seria uma postura filosófica extremamente interessante se não fosse a primazia do pensar clássico ocidental sobre qualquer inicio de discussão, o que torna impraticável, muitas vezes, o processo de associação ou analise conceitual - e enquanto buscarmos no pensamento chinês a existência de "nossos" conceitos ocidentais, estaremos sempre correndo o risco de perder de foco precisamente o que a China pode nos oferecer de novo.



Enquanto isso, os próprios chineses tem ocasionalmente deixado de lado sua tendência natural a síntese e tem recorrido ao termo zhexue (filosofia) como identificador daquilo que significa o "pensamento ocidental" (embora eles costumem estar bem mais cientes da multiplicidade de escolas de pensar no ocidente do que nós estamos sobre o desenvolvimento histórico do pensamento chinês); este deficiente processo de comunicação tem dado margem a banalização recorrente de um entendimento filosófico mais profundo (tanto do pensar ocidental e chinês), cedendo um espaço precioso para as aventuras intelectuais inconseqüentes do esoteristas e especialistas de ultima hora.



Como sinólogo, não posso afirmar em absoluto que minha opinião será levada em conta, mas assim mesmo gostaria de explicitá-la - e neste caso, a minha situação como brasileiro, um tipo tradicionalmente excluído da intelectualidade mundial - me concede uma posição favorável, já que não sinto a obrigação de filiar-me especificamente a nenhuma das linhas de trabalho anteriormente citadas. Não preciso, pois, aceitar a imposição de nenhum pacote completo de idéias, e não preciso salvaguardar nenhuma suposta "superioridade cultural" (embora os brasileiros, erradamente, se considerem muitas vezes mais capazes do que qualquer outra civilização no mundo). A posição do qual busco partir visa unicamente tentar compreender por quais razões posso considerar o pensamento chinês uma filosofia, e se há vantagens em aceitar esta atitude.



Por conseguinte, busquemos entender primeiramente a relação conturbada entre a sinologia - área de estudo que dedica-se a estudar especificamente a cultura e historia chinesa - e a filosofia, que clama para si a primazia do entendimento do pensar ocidental (se e que existe algum, também, que possamos considerar de modo global). Os filósofos, desde Hegel, têm uma ma vontade generalizada em aceitar as formas de pensamento asiáticas como filosoficamente válidas. Exceções como Nietzsche, Schopenhauer, Voltaire, etc. são lidos em outros aspectos que costumam minimizar a importância das suas influencias "orientais", e mesmo autores mais recentes como Deleuze e Heidegger tiveram uma atitude pouco flexível com China e Índia. No caso do Brasil, os filósofos têm repetido insistentemente a atitude preconceituosa dos europeus, reproduzindo como papagaios as palavras de ordem contra o pensamento asiático, engajando-se de modo ignorante num velho solipsismo recalcitrante. O esoterismo surge aí, novamente, como aquilo que não deveria ser - uma opção - para aqueles que buscam saber algo mais sobre o "pensamento oriental", reincidindo numa serie de velhos erros e achismos que serão difíceis de quebrar quando o trabalho sério começar a surgir.



Assim sendo, a relação entre a sinologia e a filosofia não poderia ser das melhores. Enquanto a primeira tem por fundamento estudar o outro, a segunda tem buscado, como um adolescente afligindo pelas dúvidas da imaturidade, negar a existência de qualquer fora de si - como se a afirmação do outro negasse e destruísse a sua própria existência. Disto resulta um constante desconhecimento por parte dos filósofos sobre o material que é produzido pela sinologia, e isto mantém a sua pretensa originalidade e superioridade firmes. A inequívoca decepção aparece quando um ou outro sinólogo, com uma formação mais profunda em filosofia, é capaz de apresentar ao ocidente alguma descoberta conceitual ou intelectual que inverte estas relações de poder, colocando a China numa primazia temporal, histórica ou filosófica que causa desconforto e espanto.



Obviamente, estes acontecimentos não tornam a China uma civilização "superior" num sentindo completo da palavra, mas temos que admitir que em alguns casos ela pode nos superar. Não raro, quando tenho a oportunidade de lecionar sobre a cultura chinesa, observo a relutância dos alunos (e também, de modo mais discreto, dos professores) em aceitar as conquistas chinesas no campo intelectual e tecnológico, como se estas os inferiorizassem como seres humanos. É uma das poucas oportunidades em que vejo-os clamarem por uma "igualdade" cultural e histórica (ainda que a China seja uma entidade milenar), posto que a idéia de superioridade não pode mais se manter.



A postura dos pensadores não tem sido, justamente, "filosófica". Ao negarem as contribuições que a sinologia pode dar (e por conseqüência, do que o pensamento chinês pode vir a oferecer), duas condições fatais se criam e alimentam-se mutuamente: a primeira, de constatar que a China absolutamente não precisou da filosofia para existir como civilização até os dias de hoje, e tal predicado não pode ser deixado de lado (lembremos, estamos a falar de uma cultura altamente sofisticada, complexa e antiga); a segunda, é que é a filosofia, precisamente, que necessita da China para crescer conceitualmente, historicamente e intelectualmente - o estudo do pensamento chinês (e podemos estender isso a Índia ou Japão) pode ajudar a reformular a historia das idéias, a enriquecer por completo as metodologias e visões de mundo, a quebrar as barreiras antropológicas que separam a distancia dos discursos. Mas ao ignorar este lado, o estudo filosófico emperra-se, e torna-se um eterno retorno às suas fontes fundadoras, abrindo poucos espaços realmente novos e originais. Hocking (1939) cita de modo brilhante:



“Mas a Filosofia é, basicamente, uma questão de o que uma pessoa vê, e, em seguida, da sua capacidade de fazer uma conexão racional entre o que vê e o que, de alguma outra maneira, sabe; suas premissas são suas observações originais sobre o mundo. Assim, as pessoas que possam acrescentar alguma coisa à nossa visão são o apoio mais importante para o progresso em Filosofia. O próprio fato de o Oriente ter modos diferentes de intuição - o que às vezes se coloca sob a forma enganosa de que há um abismo entre as mentalidades do Oriente e do Ocidente - é o que torna tão importantes para nós suas contribuições à Filosofia e as nossas para eles. É uma felicidade, sob este aspecto, que as Filosofias oriental e ocidental tenham-se desenvolvido separadamente durante tanto tempo. Elas ficaram consolidadas em sua maneira de ver as coisas. Cada uma se tornou a carta régia de uma civilização mais ou menos duradoura. Se a prova de uma filosofia fosse a durabilidade da civilização nela baseada, o Oriente sem dúvida teria muito mais autoridade”.



Podemos afirmar de forma grosseira e enfática, porém resoluta: a China talvez não precise da filosofia, mas a filosofia precisa da China. No entanto, o paradoxo se estabelece: os asiáticos têm estudado a filosofia ocidental com afinco, pois a entendem (corretamente ou não) como parte integrante de sua ciência; enquanto isso, a contextual preeminência do ocidente no panorama mundial lhe dá a enganosa sensação de superioridade cultural absoluta, que trata todas as culturas "orientais" e africanas como absolutamente inferiores (verdade bastante "relativa", cujo tempo de existência remonta apenas a segunda metade do século 19 até agora).



No entanto, toda esta argumentação será puramente panfletária se aquele que a lê não dispor-se a estudar algum material realmente sério sobre o pensamento chinês. Outrossim, alguns avisos breves são necessários para que aquele que se aventurar realmente a encarar o desafio de ler a China e não cometer algum dos erros clássicos dos comentaristas de primeira viagem.



Em primeiro lugar, tomar cuidado com o solipsismo: o aviso não e inútil, apesar de óbvio. Grande parte daqueles que começaram a ler alguma coisa sobre filosofia chinesa partiram da tradicional postura de interrogá-la segundo seus próprios referenciais (ditos ocidentais) o que, inevitavelmente, costuma afastar qualquer possibilidade de descobrir algo novo. Claro, não podemos fazer uma leitura absolutamente isenta ou imparcial do pensamento chinês ( e acreditar nisso seria um absurdo), mas podemos tentar fazê-la apenas por experimentação - ou seja, deixar somente que uma boa tradução de um texto chinês nos atraia (ou não), contanto que estejamos dispostos a absorvê-lo por inteiro. O passo seguinte pode ser estudar chinês para ler no original - e esta é uma língua viva, o que torna excitante a possibilidade de discutir uma filosofia em seu idioma original. Um cuidado especial, pois, é necessário neste tocante:



“A questão é que os termos da linguagem comum são perfeitamente adequados, quando desenvolvidos minuciosa e sis¬tematicamente em vários contextos, para transmitir a doutrina técnica de um só filósofo ou teoria filosófica, mas são completamente inadequados para servir de denominador comum em que se possam traduzir sistemas filosóficos diversos para fins de comparação. É o que se dá com vários sistemas ocidentais e orientais. Quando a Filosofia se torna comparada, o caráter do seu simbolismo impede a introdução de uma terminologia técnica. [...] Uma teoria de qualquer espécie, seja científica seja filosófica, é um corpo de proposições, e um corpo de proposições, e um conjunto de conceitos. Os conceitos se classificam em vários tipos de acordo com as diferentes fontes do seu significado. Conseqüentemente, a designação dos diversos possíveis tipos principais de conceitos deve proporcionar uma terminologia técnica com a generalidade suficiente para incluir como caso especial qualquer possível teoria filosófica” (Northrop, 1939).



Tomando por base uma iniciativa aberta - o que e o mais difícil em todo processo de experiência - a etapa seguinte é aceitar o fato de que a China (e toda sua cultura) não funcionam em nossas linhas gerais de entendimento, e sua lógica é relativamente diferente da "ocidental". Posto isso, as classificações que usualmente utilizamos - científico, religioso, filosófico, sociológico - não funcionarão bem no caso chinês, pois estes aspectos amplamente se sobrepõem. O caso da ciência tradicional chinesa é claro: ela utiliza um sistema que tem eficácia comprovada (como no caso da medicina), mas que e empregado também por astrólogos e monges daoístas. O que isso significa? Analogamente, é como se alguém modificasse a astrologia ocidental por causa da descoberta de um novo planeta; temos entre nós uma clara noção de como ambas (astrologia e astronomia) se diferenciam, mas não buscamos ver se o mesmo acontece no caso chinês (e ainda, como acontece). Essa ignorância despropositada tem sido razão de uma relutância tremenda para a aceitação do pensar filosófico chinês como algo "filosofável", mas trata-se puramente tanto de desconhecimento como de preconceito (porque afinal, toda a filosofia - desde Platão ate a época de Galileu - não é refutada, em absoluto, por pautar-se em critérios que hoje não são mais tidos como validos).



Há que se ter em mente, por fim, que a China é uma civilização milenar, e que o modelo do exemplo tem seu valor. Qual o sistema responsável por sua continuidade histórica? Que conjunto de valores e/ou conceitos foram responsáveis pela coesão interna desta sociedade? A impossibilidade de encontrar qualquer resposta no âmbito do pensamento ocidental remete-nos, inequivocamente, a necessidade de estudá-la; por conseguinte, de descobrir se há algo que podemos aprender com ela e que nos ajude a preservar nossa própria existência.



O Pensamento chinês possui uma coerência única, singular, que podemos considerar um desafio filosófico. Por qual razão, pois, não encará-lo? A experiência gratificante da sinologia apresenta-se como uma inevitável vivência de interculturalidade, que muito poderia contribuir no processo de formação intelectual e humano dos alunos, estudiosos e professores.



Para Ler:



Infelizmente, nada em português exceto a fabulosa coletânea de Moore, C. (org) Filosofia: Oriente-Ocidente, de 1939, e publicada no Brasil em 1979 pela Cultrix. È dela os textos de Hocking (“O Valor comparado da Filosofia”) e Northrop (“As Ênfases Complementares da Filosofia Intuitiva Oriental e da Filosofia Científica Ocidental”).

Porém, uma ou outra referência podem nos apresentar melhor estas questões:

Cheng, A. (org) Y a-t-il un philosophie chinoise? Revista Extreme orient- Extreme occident, num. 27, Vincennes, 2005

Mou, Z. Specifites de la philosophie chinoise. Paris: Cerf, 2003.

Bunnin, N. & Chung, Y. C. (org.) Contemporany Chinese Philosophy. Oxford: Blackwell, 2002.

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