Dinastia Shang

por Artur Cotterell em Históra Cultural da China (2000), Editora Gradiva; Lisboa


A civilização dos Shang (c. 1650-1027 a. C.)

A lendária crueldade de Jie é pequena em comparação com a de Di Xin, o último rei dos Shang. Mas, como os defeitos de ambos os soberanos são descritos como sendo praticamente os mesmos, devemos precaver-nos contra uma tendência, reinante entre os autores chineses, que consiste em explicar uma mudança de dinastia em termos da virtude que aniquila a corrupção. Os historiadores antigos encaravam os acontecimentos como se eles ocorressem por ciclos, em que um novo ciclo se iniciava quando um novo herói-sábio destronava o tirano inútil da velha casa e instaurava uma nova lei. Independentemente do grau de verdade que possa haver nas façanhas selvagens de Jie, a tradição é unânime no louvor pelo justo derrube do imprestável soberano por Tang, que era dotado «de valor e prudência que iriam servir de sinal e orientação para a miríade de regiões e dar seguimento aos velhos métodos de Yu».

O acontecimento ter-se-á verificado em 1766 a. C. O reinado de Tang notabilizou-se pelas suas expedições militares e pela atenção prestada aos assuntos internos. Uma governação eficiente, aliada à promoção do aumento da produção agrícola com a qual pudesse, durante as campanhas, alimentar o seu exército, já equipado com a biga, deu a supremacia à nova dinastia Shang. O período por ela inaugurado marca o emergir da civilização na China, na medida em que os Shang não só se distinguiram no artesanato e na tecnologia, como introduziram a gravação em pedra, a modelagem do bronze, o uso dos carros de guerra, a escrita, a sistematização da recolha de oráculos, os palácios urbanos, a realeza, a nobreza, as grandes obras públicas, um calendário exacto, um panteão de divindades, o culto organizado dos antepassados e grandes túmulos repletos de tesouros e vítimas de sacrifícios. Apenas o carro puxado por cavalos poderá ter sido ideia importada, dado que a sua estrutura era muito idêntica ao modelo desenvolvido muito antes na Ásia ocidental. Mas, acima de tudo, o que os Shang deram à China antiga foi uma soberania centralizada capaz de aglutinar os grupos tribais que viviam a norte do rio Yangzi. Facilitaram um processo histórico por via do qual a fusão de várias culturas regionais Longshan deu origem ao nascimento da civilização chinesa.

O centro do reino era a parte da província de Henan onde as terras altas descem para o leito de cheia do rio Amarelo. Apesar da possível identificação de Erlitou com Po, há outros locais candidatos à honra de serem a capital de Tang. Do outro lado do rio Lo, em frente a Erlitou, fica a moderna Yanshi, desde 1958 objecto também de investigação arqueológica. Sabe-se da existência de vestígios de antigos edifícios Shang em 14 pontos da cidade e seus arredores. Talvez tão importante como ela é Kaoyai, localidade do Sul com sinais de ocupação contínua desde o período Yangshao, passando pelo Longshan, até ao Shang. A opinião dominante na China Popular, no entanto, privilegia a extensa área de Erlitou, que está ligeiramente elevada em relação às terras circundantes. Em 1975 foi registada a existência dos contornos dum palácio, além de pavimentos de casas, cavidades de armazenagem, fornos, canalizações de olaria, moldes de fundição do bronze, cadinhos, pedras e ossos. As fundações do palácio, incluindo uma plataforma de terra com 108 por 100 metros, é a mais antiga que se conhece e ostentou em tempos estruturas rectangulares moldadas em madeira, com as colunas principais assentes em blocos de pedra colocados no fundo de caixas cavadas no chão. Dum modo geral, a traça arquitectónica do plano é idêntica à dos palácios dos reis e nobres de épocas históricas posteriores. Gente Shang muito importante deverá ter vivido em Erlitou, embora não haja qualquer prova concludente de que fosse de sangue real. O exame do local indica que houve ali um importante complexo no século xvi a. C., pouco depois da altura em que os Chineses calculam tenha começado a dinastia. Mas há níveis de povoamento anteriores ao do palácio que foram datados de pouco depois de 2000 a. C. e estes estão actualmente a ser estudados, à procura de vestígios dos Xia. Deles provêm os mais antigos bronzes descobertos na China, vasos de paredes finas e escassamente decorados, feitos com a ajuda de moldes. Comparações com as formas da olaria Longshan reforçam o ponto de vista de que a prática da metalurgia foi uma invenção indígena, produto dos progressos na concepção dos fornos. Mas a maior concentração de objectos de bronze encontra-se em Anyang, a última capital dos reis Shang.

Antes de a Grande Shang (como Anyang era designada em inscrições dos oráculos) se ter tornado a capital, cerca de 1400 a. C., a sede do governo já se tinha mudado seis vezes. Pensa-se hoje que uma dessas capitais se terá situado em Zhengzhou, o centro administrativo da província de Henan. Descobertas em 1950, as ruínas dos Shang continuam a ser escavadas e estudadas; estão provisoriamente identificadas como Ao, a segunda capital dos Shang fundada pelo décimo soberano, Zhong Ding. Enquanto Po serviu de sede real durante quase dois séculos, a escolha de Zhong Ding só agradou a ele próprio e ao irmão que lhe sucedeu. Ao cabo de vinte e seis anos, o rei seguinte terá mudado a capital para o outro lado do rio Amarelo, para um local não especificado chamado Xiang.

A muralha rectangular da cidade de Ao, construída pelo mesmo método que a de Chengziyai, estende-se por mais de 7000 metros e abarca uma área de 3,2 quilómetros quadrados. Uma largura máxima, na base, de 36 metros e uma altura de pouco menos de 10 metros nas partes que restam da muralha não deixam dúvidas a ninguém de que se tratava na origem de defesas muito substanciais. As estimativas da mão-de-obra necessária para a construção — 10 000 homens a trabalhar durante dezoito anos — evidenciam o grande poder que detinham os reis Shang, que, tal como os seus pares da idade do bronze na Ásia ocidental e no Mediterrâneo, conseguiam dominar o campesinato pelo exercício dum monopólio dos metais.

A cidadela de Zhengzhou era um baluarte da aristocracia, onde as cerimónias e a administração podiam realizar-se a coberto dos olhares da gente comum. Até certo ponto poder-se-á considerar que as sepulturas, e bem assim as habitações, seriam adequadas, mas, enquanto não estiver completamente explorado o local, será conveniente temperar com a prudência qualquer generalização quanto às práticas funerárias.

Pela via da concessão de terras dentro das defesas, tal como pela outorga de territórios distantes à nobreza, o rei dos Shang conseguia garantir a fidelidade dos seus mais poderosos súbditos, sobre os quais mantinha uma vigilância apertada. As instalações do palácio estão localizadas na zona nordeste da cerca, sendo os seus contornos definidos no piso de terra por grandes compartimentos e caboucos. As muralhas eram feitas de terra amassada, uma herança da civilização Longshan. Usavam-se cofragens de madeira, dentro das quais se comprimia a terra até ficar sólida; depois tiravam-se as cofragens e repetia--se o processo mais acima. Para absorver a humidade podia-se colocar bambu ou outra madeira entre as camadas. As muralhas de terra foram determinantes das duas características distintivas da arquitectura chinesa — normalmente os muros não suportavam pesos e os edifícios eram dotados de beirais generosamente salientes. Eram muito adequados ao Norte da China, região assolada por terramotos frequentes; o que resta da muralha da cidade de Ao mostra que foi frequente a necessidade de reparações.

Uma típica construção palaciana, descoberta em 1977, tem nove divisões e corredores com colunas. Sobre os alicerces de terra colocavam bases em pedra para os pilares e, devido a cinzas depositadas, pode-se depreender que os pilares, traves e paliçadas eram feitos de madeira; à semelhança dos Egípcios, que se socorriam do Levante, os Shang importaram provavelmente das florestas de Shaanxi as peças de madeira mais compridas necessárias para a construção. A estrutura era toda acabada com paredes de terra muito fina e a construção do telhado de colmo com duas águas garantia protecção contra os maiores rigores de calor do Verão. Como não foi encontrado qualquer resquício de barro ou telha, o telhado pode mesmo ter sido coberto apenas de matéria vegetal.

Os arqueólogos que procederam às escavações estão convencidos de que a construção tinha uma finalidade prática, com um interior fresco que possuía aposentos para concubinas do rei ou para altos funcionários ao seu serviço. Mais tarde, em Anyang, é provável que alguns dos edifícios cerimoniais tivessem um segundo andar. Durante a construção das fundações faziam rituais em que matavam e enterravam tanto seres humanos como animais, tendo sido encontrada em Zhengzhou, debaixo do chão de um palácio, uma vala com cerca de 100 crânios humanos, na sua maioria perfurados da arcada superciliar até à cavidade do ouvido. A coisa mais parecida com isto em Erlitou seriam vítimas enterradas sem cabeça ou sem parte dos membros. Estes achados revelam uma sociedade altamente estratificada em que os escravos ou os prisioneiros de guerra, ou talvez uns e outros, seriam usados em cerimónias religiosas e mesmo como matéria-prima para o fabrico de objectos de osso. Os sacrifícios humanos subsistiram para além da queda de Anyang, em 1027 a. C., mas recuaram perante os ensinamentos humanistas de Confúcio e seus discípulos. No século i a. C., um príncipe dos Han foi severamente punido por ter obrigado músicos escravos a segui-lo até à morte. Confiscaram-lhe as terras e o imperador deserdou-lhe o filho.

Havia em Zhengzhou mais dois tipos de construção, ambos sem paredes de terra. O primeiro era das casas das pessoas comuns, ainda semi-subterrâneas, com o piso a ir até 2,7 metros abaixo do nível do solo. Os degraus de terra que desciam para estas habitações singelas, bem como os que davam acesso às placas em que se encontravam as casas dos nobres, deverão ter determinado a expressão de uso quotidiano para significar visita e movimento: os chineses Shang diziam «subir e descer» em vez de «ir e vir». O segundo tipo de construção, também subterrânea, tem a ver com as actividades económicas. Algumas funcionavam como armazéns, outras como oficinas de oleiros, de artífices de objectos de osso e de bronze. Uma fundição de bronze, que ficava a sul da muralha, ainda tinha os moldes para os recipientes destinados aos rituais e as armas de guerra, cadinhos, carvão e pedaços de metal fundido.

Foram descobertos em Zhengzhou três pedaços de ossos com inscrições de oráculos, mas há quem defenda que foram para ali levados de Anyang, que Pan Geng escolheu para última capital dos Shang. Principal fonte da língua escrita, o sítio arqueológico da Grande Shang na aldeia de Xiaotun, perto da actual Anyang, foi escavado de 1928 a 1937 e a partir de 1950, revelando enormes túmulos reais, palácios e depósitos de ossos oraculares.

Registadas no Livro da História (Shu Jing), colectânea de documentos editada no século iv a. C., estão as dificuldades que se depararam a Pan Geng quando quis transferir a capital. Dado que os estudiosos modernos consideram que estes capítulos são autênticos, faz-se uma transcrição longa das palavras do rei. Começando por dirigir-se aos elementos mais importantes da sua corte, rebateu a resistência deles nestes termos:

O nosso rei Zu Yi veio e escolheu Geng para sua capital. Fê-lo por profunda preocupação com o nosso povo, porque não queria que eles morressem todos num sítio onde não podiam ajudar-se uns aos outros a conservar a vida. Eu consultei a carapaça da tartaruga e obtive a resposta: «Este não é lugar em que se viva.» Quando os reis meus antepassados tinham assuntos importantes, prestavam atenção reverente às ordens do Céu. Num caso como este não hesitavam; não ficavam para sempre na mesma cidade. Se não seguirmos o exemplo dos antigos, estaremos a recusar-nos a reconhecer que o Céu está a pôr termo à nossa dinastia. Como é pequeno o respeito que temos pelo que faziam os nossos antigos reis! Tal como uma árvore cortada pela base deita novos rebentos, também o Céu há-de outorgar-nos renovada força numa nova cidade. A grande herança do passado será continuada e a tranquilidade encherá os quatro cantos do nosso reino.

Paralelamente, acusou os nobres de instilarem a revolta no seio das «multidões proferindo discursos alarmistas e infundados», um crime grave que ele sublinhava com o argumento de que os antepassados desses nobres tinham participado nos sacrifícios oferecidos aos reis antigos. Se não tratassem o soberano, o Primeiro Homem, com suficiente honra e lealdade, haveria inevitavelmente castigos e desgraças impostos aos Shang por um Céu enfurecido. Para enfatizar bem este ponto e melhor propagar os seus pontos de vista, Pan Geng dirigiu-se depois às massas, às quais «impôs compostura na praça real e obediência às reais ordens». Disse ao povo as razões da mudança, chamando a atenção para a calamidade que o seu antepassado fundador da dinastia certamente iria fazer cair sobre a capital actual, e deixou bem claro que nada podia afectar o seu «propósito inalterável».

Ganha a aposta pelo discurso directo, Pan Geng transferiu toda a gente atravessando o rio Amarelo para a Grande Shang, onde deu instruções aos seus funcionários para que «tomassem conta das vidas das pessoas por forma que a nova cidade ficasse para durar». Esta história é interessante a vários títulos. São óbvias as ameaças do rei--sacerdote ao invocar os reais espíritos ancestrais para a punição dos dissidentes, mas nem por isso se pode negar a força da convicção de Pan Geng de que estaria iminente o desastre se não se operasse a mudança de local; estava sinceramente convencido de que só a sua «extrema ansiedade» se interpunha entre os Shang e a sua ruína. Mais uma vez tinha sido o Céu a dar o sinal crucial através das fendas na carapaça da tartaruga. Como poderia um rei ignorar tão premente aviso? «Quando do Céu desceram grandes desastres», disse Pan Geng, «os reis de então não se deixaram ficar despreocupadamente no mesmo sítio. O que fizeram foi a pensar no bem do povo, e por isso todos eles transferiram a capital.» Esta preocupação com o bem-estar do povo comum, e mais ainda a explicação cara a cara que receberam na praça real, chocam com a ideia de que a sociedade dos Shang assentava inteiramente na escravatura, ponto de vista que agora tem a preferência da República Popular.

Envolvida em controvérsia está a tradução do carácter zhong nas inscrições dos oráculos. Eram os zhong, «as massas», uma vasta classe de escravos sob o domínio dos funcionários reais, ou eram o povo Shang abaixo da classe dos nobres? Os textos dos oráculos revelam que cultivavam campos pertencentes ao rei e à nobreza, participavam em caçadas reais, constituíam uma parte significativa do exército e cumpriam funções de guarda. Algumas inscrições dão testemunho eloquente da preocupação paternal do soberano pela sua saúde e bem--estar e da grande contrariedade que sentia quando os perdia na guerra. Em vez de escravos, «as multidões» surgem como a verdadeira base da sociedade Shang, as pessoas em quem Pan Cheng confiava para construir e manter a sede de governo por ele escolhida. Relata um oráculo que, na véspera duma campanha, um comandante militar conduziu os seus zhong na oferta de sacrifícios a um espírito real ancestral, o que só podia acontecer se eles fossem considerados descendentes, ainda que remotos, do fundador tribal. Mas existem provas textuais da existência de escravos dos dois sexos na era dos Shang, sendo que o maior contingente era constituído por prisioneiros de guerra pertencentes aos povos não chineses que viviam para lá das fronteiras norte e ocidental do reino. Esses escravos trabalhavam em casas do rei e dos nobres, como criados, moços de estrebaria ou jardineiros, e das suas fileiras saíam os que eram destinados ao sacrifício.

A existência de numerosos escravos do sexo masculino contrasta com a prática contemporânea entre os Micenenses, cujos soberanos guerreiros dominavam grande parte da Grécia continental. Os Micenenses da idade do bronze também viviam em cidades fortificadas, controlavam o comércio e a indústria, combatiam em carros e construíam túmulos reais. Tábuas de escrever feitas de barro cozido, encontradas em Pilo, no Sudoeste do Peloponeso, mostram que a classe escrava era predominantemente feminina e desempenhava tarefas modestas para as autoridades do palácio. Os filhos viviam com elas, mas não há qualquer referência aos maridos. Esta situação terá perdurado porque nas surtidas para captura de escravos era mais fácil matar os homens e levar só as mulheres e as crianças. Considerava-se a Ásia Menor a origem da maior parte das escravas, mas não é possível saber se o palácio de Pilo recrutava essas mulheres fazendo as suas próprias expedições ou recorria aos mercados de escravas geridos por micenenses instalados nas ilhas do mar Egeu. Trata-se duma situação muito diferente da da China dos Shang, onde a condição servil de muitos homens era facilmente detectável por uma trança especial que eram obrigados a usar no cabelo.

O maior serviço que estes homens eram chamados a prestar aos seus senhores tinha lugar nos jazigos tumulares dos reis, perto de Anyang. Um desses locais de sacrifício exibe restos humanos em todas as suas quatro rampas de acesso: ao longo delas distribuíam-se em filas 73 crânios, enquanto na rampa sul se acumulavam 59 esqueletos sem cabeça. O cemitério, situado alguns quilómetros a noroeste da principal povoação dos Shang, inclui 11 túmulos reais e 1222 campas normais. O décimo segundo rei que reinou na Grande Shang não precisou de túmulo, uma vez que foi queimado vivo quando a cidade caiu nas mãos dos invasores Zhou. Orientados no sentido norte/sul, cada um dos túmulos reais possui quatro rampas formando uma cruz, a mais comprida das quais mede 30 metros; sobem duma câmara central, que em muitos casos está 10 metros ou mais abaixo do nível do solo. No poço tumular havia cavidades mais pequenas normalmente preenchidas com restos sacrificiais, seres humanos e cães acompanhados de punhais de bronze, até ser construída para o corpo do rei uma câmara de madeira. Uma vez depositados em segurança nesta câmara os restos mortais do rei e as oferendas funerárias, acrescentava-se um tecto, punham-se mais objectos nas rampas, faziam-se mais sacrifícios humanos e depois deitava-se para cima de tudo terra, que era calcada até ficar compacta, camada por camada. Os achados tumulares são ricos: esculturas em pedra, jade traba- lhado, potes e armas em bronze, trabalhos em osso e conchas decorativas.

A precisão científica com que a Grande Shang foi escavada desde o princípio permitiu assegurar não só que a existência da dinastia dos Shang fosse aceite como um facto histórico mas também que o local nos fornecesse informação indispensável sobre a civilização dos Shang. A informação colhida das inscrições oraculares ilustra por si só as tradições chinesas, como ressalta da análise dos capítulos relativos a Pan Cheng do Livro da História: é de esperar que o prosseguimento da decifração dos 5000 caracteres utilizados pelos escribas Shang se revele igualmente valioso. Embora o principal centro de investigação arqueológica seja actualmente localizado nas proximidades de Zhengzhou, não é provável que sofra alteração a importância fundamental de Anyang. A dimensão do complexo palaciano é grande, apesar de estar invadido por um rio no seu lado oriental. As vinte e uma extensas salas que constituem o grupo central parecem ter as suas posições relativas organizadas em obediência a um plano geral. As construções distribuem-se por três fiadas dispostas num eixo norte/sul, sendo que a fiada do meio consiste em três grandes salas e cinco portas viradas a sul. Ali perto está o que se pensa ser um altar. Uma plataforma quadrada idêntica, de terra amassada, na proximidade dum edifício de grandes dimensões, foi recentemente descoberta no canto noroeste da cerca de Zhengzhou. Perto das portas de Anyang estão situados jazigos sacrificiais — seres humanos, animais e carros — que ali poderão ter sido postos durante o processo de construção. Por baixo das fundações de terra, os arqueólogos chineses descobriram também um complicado sistema de canais que drenavam os edifícios e seus pátios. Lembra a atenção obsessiva dada à drenagem na cidade de Mohenjo Daro, no vale do rio Indo, que floresceu até 1800 a. C. Porém, em Anyang, os canais não abrangem a povoação inteira, mas antes se restringem ao centro, onde se terão situado os templos ancestrais da família real. Uma outra secção cerimonial, a sudoeste das salas centrais, terá sido, quase de certeza, um altar de sacrifícios.

A ausência de uma muralha circundante e a malha rarefeita de áreas de serviços, tais como fundições de bronze, oficinas de pedra e osso e fornos de olaria, têm levado alguns estudiosos a porem em dúvida que alguma vez a Grande Shang tenha sido capital. Referem-se a Anyang como uma Delfos chinesa, cujo propósito principal seria a recolha de oráculos. Como pouco se escavou fora do cemitério e do palácio, não existe uma perspectiva global do local sobre a qual se possa formular um juízo definitivo. Talvez a última sede de governo fosse tão vasta e as suas forças de guarnição tão concentradas que se tivesse considerado necessário o muro protector. Por outro lado, a destruição da Grande Shang, em 1027 a. C., poderá ter sido facilitada pela sua implantação aparentemente dispersa. Foi nesse ano que Wu arrasou a cidade.

A culpa da queda da dinastia dos Shang é atribuída ao comportamento caprichoso de Di Xin, o último rei Shang. Apaixonou-se de tal maneira pela extraordinária beleza de Dan Ji que negligenciava as suas obrigações e se entregava à prática de todo o tipo de prazeres perversos. À volta dos sofisticados aposentos dela, forrados com as pedras preciosas do tesouro real, empilhava montes de carne, pendurando peças de carne seca em todas as árvores, encheu um lago de vinho até ao ponto de se poder andar nele de barco a remos, enquanto homens e mulheres nus surgiam ao som dum tambor e sorviam o vinho como se fossem gado a beber. Já houve quem defendesse de forma plau- sível que se trata aqui dum relato deturpado e hostil dum festival religioso dedicado aos deuses da fertilidade. Mas a verdade é que se diz que tanto Di Xin como Dan Ji sentiriam prazer em magoar as outras pessoas, a tal ponto que terão acabado por colocar contra si a própria nobreza. Dan Ji inventou dois novos instrumentos para castigar quem ele achava que não mostrava o devido respeito pelo trono. Um chamava-se «o aquecedor» e consistia num pedaço de metal, aquecido ao rubro numa fogueira, que os acusados eram obrigados a agarrar com as mãos. O outro era um poste de metal, todo ele bar-rado de gordura, deitado por cima duma vala cheia de carvão a arder. A vítima tinha de caminhar em cima do poste e, quando lhe escorregavam os pés e caía nas chamas, Dan Ji ria-se às gargalhadas. Chamava-se «a grelha». Outro sinal de intolerância à oposição deu-o Di Xin quando voltou a sua raiva descontrolada contra o seu tio Pi Kan. O príncipe Pi Kan chegara à conclusão de que o estado das coisas era suficientemente grave para arriscar a vida criticando o rei. Consumido pela fúria, Di Xin exclamou: «Ouvi dizer que o coração dum sábio tem sete buracos», e mandou que retalhassem Pi Kan para ver se era sábio.

Acções como esta tinham poucos apreciadores. «Os plebeus queixavam-se e alguns nobres afastaram-se.» É significativo que as histórias relatem que «O supremo ritualista dos Shang e seu ajudante passaram para os Zhou, levando consigo a parafernália ritual e musical. Acto contínuo, Wu, rei dos Zhou, comandou os seus súbditos numa guerra contra Di Xin.» A deserção dos especialistas em rituais terá sido interpretada como uma declaração pública de que o Mandato do Céu tinha deixado de estar entregue aos reis Shang. As forças invasoras foram enfrentadas pelo exército real no ermo de Mu, presumivelmente a oeste de Anyang, mas a batalha que se seguiu apanhou de surpresa Di Xin, porque «os da linha da frente dos Shang voltaram as suas lanças e atacaram os que vinham atrás, obrigando-os a fugir». O estratagema terá sido obra de nobres, que mantinham contactos secretos com Wu. Quando os inimigos se aproximaram da capital, Di Xin subiu para a Plataforma do Veado, envergou os seus preciosos trajes de jade e imolou-se pelo fogo». O corpo tisnado foi convenientemente trespassado por três lanças e a cabeça cortada e exibida na ponta dum pau de bandeira.

A religião antiga

Por trás da megalomania funerária dos reis Shang, inteiramente corrente na idade do bronze, estava um corpo de ideias e práticas de culto que mais tarde o confucianismo transformou na religião oficial da China. É que a linha de continuidade entre as eras dos Shang e dos Primeiros Zhou e o resto da história da China até à abolição do império, em 1911, assenta nos ritos de culto dos antepassados praticados por um rei-sacerdote. Já no fim do século xix, os visitantes europeus reparavam na forma zelosa como a dinastia Qing, a última a reinar na China, protegia os seus mausoléus com uma força permanente de tropas, para se manter nas boas graças dos espíritos dos imperadores falecidos.

A religião dos Shang estava intimamente associada à justificação divina do estado Shang. Acreditava-se que Shangdi, o deus supremo do Céu, concedia benefícios aos seus descendentes sob a forma de boas colheitas e vitórias nos campos de batalha e, pela via da adivinhação, era possível procurar o conselho dos antepassados directos do rei sobre quais os actos que mais agradariam à suprema divindade. Daí a preocupação de Pan Deng em não deixar que o seu povo se conformasse a viver numa capital infeliz. Durante o reinado de Di Xin poucos foram os dias em que o soberano não esteve ocupado com um ou outro sacrifício para oferecer aos seus espíritos ancestrais. Era destes rituais que deveria ter obtido respostas para os problemas que o atormentavam, pelo menos enquanto os seus especialistas em rituais não fugiram para o lado dos Zhou. Daí que, no seu auge, a monarquia dos Shang se apoiasse numa constante comunhão entre os vivos e os mortos.

Todo o poder terreno emanava do Primeiro Homem, o rei que era Filho do Céu; só ele possuía a autoridade para pedir as bênçãos ancestrais, ou enfrentar as maldições ancestrais, que afectavam a sociedade. O poder político estava inextricavelmente ligado ao poder espiritual, e o soberano, pelo seu relacionamento harmonioso com o reino espiritual, assegurava a felicidade do estado — conceito que na teoria confuciana se tornou a base do direito a impor obediência. A falta de qualidade de um monarca teria sempre reflexos na atitude do Céu, como aconteceu nos últimos anos de Jie e Di Xin, em que «a Terra tremeu» e «os rios secaram». Neste contexto encontra fácil explicação o posterior interesse imperial pela sismologia; o cientista Zhang Heng inventou para o palácio, por volta de 130 d. C., o primeiro sismógrafo prático de que há conhecimento.

Para a consulta aos espíritos ancestrais sobre o futuro, os Zhou utilizavam dois métodos de adivinhação, já que acrescentaram o lançamento de sortes ao aquecimento de ossos e carapaças de tartaruga. Mas as perguntas que faziam eram as mesmas que as dos Shang. Das inscrições oraculares de Anyang (jiaguwen) deduz-se que havia uma questão persistente posta aos espíritos ancestrais femininos que tinha a ver com a gravidez das reais esposas e concubinas: os monarcas queriam sempre descobrir o sexo das crianças que estavam para nascer. Ao inquirir sobre o sexo do real rebento que estava para nascer, usava-se a palavra «bem» para significar rapaz e a frase «não bem» para significar rapariga. A preferência dos Shang por descendência masculina reflecte-se também na etimologia do carácter para escrever «neto» (sun), que consiste num rapaz à esquerda e um fio de seda à direita, a simbolizar uma linha ininterrupta de descendência.

No Livro das Odes (Shijing), que descreve a vida feudal desde o final do século xi a meados do século vi a. C., boa fortuna é ter muitos filhos e netos varões. Os Zhou imploravam insistentemente que «tais filhos filiais nunca faltassem», quanto mais não fosse porque, como disse Mêncio no século iv a. C., nada era mais antifilial do que não produzir descendentes masculinos. Com o desaparecimento das cortes feudais em consequência da unificação imperial de 221 a. C., o culto dos antepassados deixou de ser privilégio exclusivo duma aristocracia reinante para alastrar gradualmente a todas as classes da sociedade. Finalmente, até o mais humilde dos camponeses se sentia membro dum vasto grupo de parentesco, que abarcava os mortos, os vivos e os que ainda estavam para nascer. E não só estava grato aos seus antepassados pelo bem-estar de que a sua família gozava, mas também era responsável perante eles por melhorar o destino da próxima geração: os seus esforços eram dirigidos para o apuramento da linhagem, nunca para a salvação individual. Embora o culto formal dos antepassados já seja praticamente uma coisa do passado, a preocupação dos Chineses com os herdeiros varões não está de forma nenhuma passada, como as autoridades da República Popular aprenderam durante a recente campanha «família de um só filho é que é bom».

A intercessão era o privilégio real quando estavam em causa os elementos principais. Rezam as histórias que Tang, «cortando o cabelo e as unhas», foi bem sucedido no sacrifício destinado a pôr termo a uma praga de seca prolongada, porque Shangdi, o Senhor do Céu, ouviu as suas orações e mandou dragões fazedores de chuva refrescarem a Terra. Tanto os Shang como os Zhou viam as suas sociedades como um espelho do feudalismo que acreditavam encontrar no mundo natural. As montanhas e os rios é que lhes tinham conferido o estilo de duque ou conde, sendo para eles facto assumido terem sido investidos pelo Céu. Da mesma maneira que o primeiro homem promulgava o calendário, também se acreditava que era Shangdi quem tinha dado instruções aos seus oficiais para que providenciassem no sentido do correcto ciclo das estações.

A melhor prova da unidade das eras dos Shang e dos Primeiros Zhou está talvez nos vasos de bronze usados no culto dos antepassados. O esplendor e variedade desses vasos dão testemunho dos preparativos minuciosos de que essas cerimónias eram objecto. A ideia de alimentar os mortos, porém, era uma herança pré-histórica generalizada, e não especificamente chinesa. Nas margens do Hades, diz-nos a Odisseia, Ulisses praticou ritos semelhantes para atrair a sombra do vidente Tirésias. Depois de ter «cortado as goelas de vários carneiros sobre uma vala para onde o escuro sangue escorresse», o aventureiro «sentou-se em guarda, espada na mão, e impediu que qualquer fantasma inútil se aproximasse do sangue antes da chegada de Tirésias». Mas, na China antiga, a incapacidade dos espíritos ancestrais de «comerem sangue» (xieshi) por causa da impotência política dos seus descendentes era considerada matéria muito séria. Foi por isso que, derrubada pelos Shang a dinastia dos Xia, foram tomadas providências no sentido de serem mantidos os sacrifícios aos membros falecidos do clã real Xia e, depois da conquista dos Shang pelos Zhou, um dos príncipes Shang sobreviventes recebeu a investidura do feudo de Song.

Para cozinhar os alimentos havia o ding, um caldeirão de 3 pés, de forma redonda (um que foi descoberto em Anyang tem 1,33 metros de altura e pesa 900 quilos); o li, outro caldeirão trípode, mas com uma forma mais achatada e pés ocos; o xian, uma panela com uma parte de baixo que lembra um li mais largo, em cima do qual assenta outro vaso com a base perfurada (uma forma vulgar na cerâmica Longshan, sendo de facto estas peças tão características da cultura chinesa que o signo dos Shang para sacrifício é o desenho dum xian); e o gui, um recipiente que faz lembrar uma taça de cerâmica. Para o vinho havia o chun, um jarro alto, por vezes de secção quadrada, e muito decorado pelos artesãos Zhou; o lei, versão mais tardia do gui; o guang, para mistura de vinhos, frequentemente com a forma dum monstro, com os cornos boleados duma vítima sacrificial; o zhi, pequeno recipiente com tampa; o yu, redondo, com uma pequena base, tampa e asa; o fangyi, quadrado, com uma tampa inclinada a lembrar um telhado e uma bola no topo; o jue, taça de libações com 3 pés, cujo bico e asa em forma de bico de ave fazem dela a peça de bronze mais notável que os Shang fundiram; o gu, um copo alto e esguio; e o jia, um vaso trípode com uma pega. Para a água havia o pan, bacia usada para as abluções; o he, jarro em forma de chaleira, com 3 ou 4 pés e um bico; e o yi, jarro que assentava em pés ou numa base.

A partir de 1027 a. C., ano da chegada de Wu ao poder, pode observar-se uma alteração no estilo de decoração. Os bronzes dos Primeiros Zhou são aliás um pouco menos finos do que os da parte final dos Shang, mas não por muito tempo, e a transição relativamente fácil para os vasos cerimoniais da nova casa real confere peso à tese que atribui ao povo Zhou uma avançada cultura própria de utilização do bronze. Se os especialistas Shang em rituais que se puseram em fuga entraram ao serviço de Wu, como os textos sugerem, pode-se partir do princípio de que as cerimónias realizadas pelo Filho do Céu continuaram sem interrupção. O Livro da História é perfeitamente enfático quanto à transferência do Mandato: lá se diz que Wu «apresentou uma oferenda imolada ao Céu e venerou as colinas e os rios, anunciando solenemente o desfecho vitorioso da guerra». Para todos os fins e propósitos, o ritual manteve-se igual, até porque os Zhou adoptaram o nome Shang para Céu. Decisão habilidosa, não bastou no entanto às autoridades Zhou para afastarem por completo um sentimento de insegurança. Investiram a suprema divindade de grande poder e qualidades mais universais, mas, ainda assim, é patente no Livro das Odes uma certa apreensão. Embora a generosidade de Shangdi contenha «as multidões», a paz que traz consigo só é mantida por um incessante esforço humano. «Começar bem é normal, acabar bem é que é raro.» Paradoxalmente, foi a mais longa das dinastias da história da China, a dos Zhou, que assistiu ao desmoronamento da ordem feudal, a partir do século viii a. C., porque o sistema político retratado nos bronzes foi enfraquecendo e desintegrando no meio de lutas acesas entre casas nobres, cada uma delas ousando reivindicar para si a legitimidade dum mandato celeste individual.

O culto da Terra era outro dever inicialmente reservado ao monarca. Os nobres veneravam outras divindades agrárias, tais como o deus das terras, Houtu, e Houji, o rei dos cereais. Os altares em plataforma de Zhengzhou e Anyang foram provavelmente construídos para cerimónias a favor das colheitas. Os imperadores mantiveram o culto até ao século presente, tendo a fugaz dinastia de Yuan Shikai feito o último sacrifício em 1916. Eram também os imperadores quem abria o primeiro sulco nas lavras da primavera. Esta cerimónia, chamada yengji, exerceu um enorme fascínio sobre os filósofos europeus do século xviii, aos olhos dos quais era o exemplo perfeito da preocupação dum monarca pelo seu povo. De tal maneira que, em 1756, Luís XV, por sugestão do enciclopedista Quesnay feita por intermédio de La Pompadour, seguiu o exemplo caridoso dos imperadores da China e praticou aquilo que se tinha entretanto tornado um rito confuciano santificado.

Abaixo da nobreza existiam «as massas», os artesãos que viviam perto das cidades e os camponeses que ainda usavam alfaias de pedra. Estas pessoas estariam excluídas do culto ancestral, se bem que, sob a ameaça das armas, desempenhassem algum tipo de papel subalterno nos rituais preparados para celebrar a vitória. Sem acesso aos serviços dos adivinhos e ritualistas que viviam nas casas dos grandes senhores, as pessoas comuns tinham de se socorrer dos iniciados que se dedicavam aos chamados actos de magia por simpatia. Estes mágicos (wu), homens e mulheres, aliviavam a tensão dos sobrecarregados trabalhadores do campo aplacando os espíritos malignos e invocando a ajuda dos mais receptivos. Ainda sobrevivem pormenores duma antiga cerimónia de petição; sugere ela que as gotas de suor libertadas pelo mágico, na sua dança dentro dum círculo debaixo de um sol abrasador, deveriam induzir gotas de chuva. Os poderes psíquicos do wu permitiam também o contacto com os mortos, se bem que o palácio aparentemente ignorasse este tipo de capacidades. Em oposição à ética confuciana, o tauismo assentou na força primitiva destes taumaturgos, cujo xamanismo seria mais tarde reforçado por invasores vindos das estepes do Norte, e, neste processo, a filosofia de Lao Zi (nascido em 604 a. C.) e seus discípulos acabou por se transformar na religião tauista. Durante a crise que se abateu sobre o império nascente, a partir de 220 d. C., o tauismo atenuou o sofrer dos camponeses como religião autóctone de salvação pessoal. O domínio que as divindades telúricas do mundo rural exerciam sobre as mentes das «massas» era já evidente no princípio da dinastia dos Shang, quando Tang tentou em vão mudar o nome do deus das terras.


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