Introdução a História da China

por Artur Cotterell em Históra Cultural da China (2000), Editora Gradiva; Lisboa


Quando, em 960, Taizu, o primeiro imperador da dinastia dos Song, procedia à reunificação da China depois dum breve período de desunião, talvez relacionado com a invenção da pólvora, um dos soberanos regionais pediu a independência. Sem um momento de hesitação, o imperador perguntou: «O que fez o teu povo de mal para ser excluído do Império?» Era inconcebível a ideia de uma qualquer província pretender isolar-se: as fronteiras imperiais abarcavam a Grécia e a Roma da Ásia oriental, a China era o mundo civilizado.

Não era diferente a convicção alimentada pelo letrado e falhado reformador Kang Youwei, que, quando já se estava em 1908, ainda acalentava a esperança de ser possível a recuperação nacional sob o domínio da periclitante dinastia dos Qing. O que o fez mudar de idéias foi o assassinato, nesse mesmo ano, de Guanxu, o imperador, de quem ele tinha sido conselheiro durante os abortados Cem Dias de Reforma, em 1898. Muito embora o desespero de Kang Youwei tenha significado um ponto de viragem nas atitudes dos Chineses em relação ao sistema imperial de governo, nem por isso representou qualquer abandono da confiança na importância central da civilização em si. Por muito traumatizante que tenha sido o colapso da China nos finais do século xix, princípios do século xx, quando nas nações estrangeiras vinha ao de cima em plena força o impacte da tecnologia moderna, poucos foram os chineses que alguma vez duvidaram da sobrevivência do seu país como grande potência. Pode em parte residir nessa crença a impermeabilidade da China à modernização, até à fundação da República, em 1911.

O Japão, pelo contrário, sempre fora mais aberto às influências estrangeiras, nomeadamente à da China imperial, à qual durante mais de um milénio foi beber com grande sofreguidão: o método de auto-defesa que adoptou em 1868 foi o da eliminação pura e simples do feudalismo inoperante, substituído por um programa de ocidentalização selectiva.

Fora do Japão, também as cidades portuárias coloniais — Calcutá, Bombaim, Madrasta, Carachi, Colombo, Singapura, Batávia e Manila — criaram élites asiáticas ocidentalizadas, para as quais a independência nacional era uma meta a perseguir sem sentimentos de culpa ou de contradição. O mesmo não se passava em Xangai e Tianjin, apesar do interesse de Kang Youwei pelas instituições dos Portos do Tratado, os centros de comércio internacional impostos à China em 1842. Em contraste com a Índia colonial, onde o domínio estrangeiro fomentava ao mesmo tempo uma consciência nacional e a tolerância em relação aos modelos ocidentais de governo e administração, a presença de enclaves europeus agressivos nos Portos do Tratado só contribuiu para aguçar a tradicional tendência chinesa para a identidade auto-suficiente e autocentrada. A intervenção de tropas estrangeiras só impressionava pela superioridade do seu armamento.

As atitudes chinesas são de origem muito antiga. As descobertas arqueológicas das duas últimas décadas vieram não só lembrar-nos que a China é a mais antiga das civilizações ininterruptas que existem, mas também mostrar que, nas etapas constitutivas do seu desenvolvimento, ela era um mundo à parte, geograficamente isolado dos outros centros de civilização da antiguidade. A China antiga englobava o fértil vale do rio Amarelo: para norte era a estepe árida, cujos habitantes nómadas obrigaram à construção de barreiras defensivas, mais tarde integradas na Grande Muralha; para leste, o maior dos oceanos, onde se situavam as primitivas ilhas do Japão; para oeste, o mais alto sistema montanhoso bloqueava as rotas de comércio com a Índia e a Ásia ocidental; para sul, as florestas subtropicais, onde grupos de cultivadores rudimentares acentuavam o atraso cultural. Só ao cabo de bem mais de um milénio de vida civilizada, decorria o período da dinastia dos primeiros Han (206 a. C. - 9 d. C.), a China se apercebeu de que havia outras civilizações. Ainda hoje se pode ter uma noção do espanto do enviado Zhang Qian quando, em 126 a. C., ao regressar a Chang’an, a capital, relatava que no que é hoje o Afeganistão havia «cidades, mansões e casas como na China.»

Já nessa altura a difícil viagem por terra seguindo a rota das cidades-oásis da Ásia central mantinha o contacto com o exterior reduzido ao mínimo dos mínimos, o que não impediu os mercadores estrangeiros de transportarem pela Rota da Seda, nome pelo qual esta rota de caravanas ficou conhecida, o mais importante produto de importação chinesa até aos tempos modernos — o budismo. O facto de esta religião indiana ter chegado tão tarde à China, só em finais do século iv penetrando em todas as partes do país, ajuda a explicar porque não conseguiu destronar o confucianismo como religião do estado. Ao mesmo tempo que se travava uma luta feroz pela proeminência espiritual, acompanhada por cenas de fervor das multidões, prevalecia o molde céptico da filosofia de Confúcio. A igreja budista foi enquadrada na esfera do estado pelos imperadores Tang (618-906), tendo em 694 sido criado um Departamento de Sacrifício Nacional, que tinha por missão fiscalizar a ordenação de monges e freiras. A tradição política chinesa, que tinha por dado adquirido uma autoridade central forte, encarnada no imperador como Filho do Céu, estava demasiado enraizada para permitir aos evangelizadores budistas alterarem definitivamente a paisagem social ou espiritual.

As ideias da aprovação divina do trono, o chamado Mandato do Céu (tian ming), estão na base da unificação da China, em 221 a. C., e derivam, em última análise, dos preceitos rituais praticados pelos reis da dinastia dos Shang, que entre cerca de 1650 e 1027 a. C. dominaram o vale do rio Amarelo e zonas circundantes. Grupo familiar muito unido, os nobres Shang traçavam a sua linha genealógica através do seu membro principal, o rei, partindo da suprema divindade, Shangdi, o antepassado-fundador do seu povo e senhor do mundo natural. O nosso conhecimento dos sacrifícios oferecidos pelo rei reinante para conquistar a benevolência divina provém da escrita ideográfica, que quase de certeza teve origem na prática de ler oráculos a par-tir da forma das fendas provocadas pela combustão de ossos de animais e carapaças de tartarugas. Com efeito, a religião dos Shang era uma elevação do culto dos antepassados, prática que desde tempos pré -históricos distinguia a cultura chinesa. Mas o sentimento que estava ligado a esses rituais era tão forte que, em 1916, o general Yuan Shikai decidiu assinalar a transformação da sua presidência em dinastia envergando trajes imperiais na celebração do Ano Novo. Para fazer abortar as pretensões deste senhor da guerra, o exilado Kang Youwei escreveu aos governadores provinciais pedindo-lhes que se mantivessem neutrais na guerra civil que se ia seguir, mesmo que tal significasse dar pulso livre aos republicanos, comandados pelo Dr. Sun Yat-sen.

Não surpreende que tenha sido um letrado a tentar congregar apoios para o trono durante o declínio final do império. As reformas propostas por Kang Youwei podem ser vistas como o culminar duma tradição de serviço público que remonta ao tempo do próprio Confúcio. Quando, no século vi a. C., este grande professor tentou travar os abusos que grassavam no seio dos inúmeros estados feudais, pôs a tónica na fidelidade a princípios, e não a facções, defendendo que só pela via da benevolência e da rectidão um rei podia conduzir os seus súbditos à vida perfeita. O carácter que significa «rectidão» (li) diz-nos exactamente o que Confúcio tinha em mente, uma vez que os traços representam um vaso contendo objectos preciosos em sacrifício aos espíritos ancestrais. O ritual do culto dos antepassados torna-se assim o ponto central dum código moral em que estão claramente definidas as rectas relações sociais: a fidelidade que um ministro devia a um príncipe era a mesma que um filho devia ao seu pai.

No período imperial (que durou, com interrupções, de 221 a. C. a 1912), os preceitos administrativos permitiam que o serviço prestado pelo letrado-burocrata fosse simultaneamente uma realidade e um ideal. Os letrados confucianistas, aliados à classe dominante, eram um dos dois pilares da sociedade imperial; o outro era a grande multidão de camponeses-agricultores, já não vinculados a um senhor feudal, mas sujeitos aos impostos, ao trabalho nas obras públicas e ao serviço militar. O baixo estatuto social dos comerciantes — uma característica constante da história da China — foi a consequência natural do desenvolvimento económico seguido até 221 a. C., porque desde sempre os príncipes tinham assumido o essencial da responsabilidade pela indústria e pelas obras de contenção das águas. A metalurgia estava predominantemente sob a supervisão do estado, como aconteceu no tempo da dinastia dos Shang, em que as fundições e as oficinas começaram por ser instaladas junto às cidades, mas o bloqueamento de todas as vias de progresso social dos comerciantes foi o travão mais eficaz, uma vez que impedia os filhos de negociantes bem sucedidos de acederem a cargos no funcionalismo público. Um pobre letrado sem qualquer função oficial preferia a agricultura ao comércio como modo de vida, para não pôr em perigo uma eventual oportunidade futura de carreira no funcionalismo público. Plenamente consciente do papel da educação na manutenção da ordem tradicional, Mao Zedong dizia que odiava Confúcio desde pequeno. Todavia, e dado o seu interesse pela China campesina, Mao Zedong foi o primeiro líder comunista a dar apreço à dinâmica revolucionária inerente às revoltas agrárias que pontuaram a história imperial. Antes de qualquer outra pessoa, ele percebeu que na China, ao contrário do Ocidente, era nas áreas urbanas que o controlo político era mais forte.

«A polícia sabe tudo o que se passa», dizia o padre Amiot referindo-se à Pequim do século xviii, «mesmo dentro dos palácios dos príncipes. Tem registos rigorosos dos habitantes de todas as casas.» Acima de tudo, o jesuíta francês sentia-se impressionado pela forma como os numerosos habitantes da cidade eram guiados «pelos caminhos da ordem e do dever sem prisões, sem acções violentas, dando a ideia de que a polícia praticamente não interferia.» Porventura desconhecedor da invulgar extensão da censura sob o reinado da dinastia estrangeira dos Qing, o padre Amiot continuava a ter razão quando estabelecia o contraste entre a vida ordeira da capital chinesa e a vida nas suas contemporâneas europeias. Enquanto, na Europa, as principais cidades tendiam a expandir-se a partir dum núcleo como um mercado ou uma catedral, na China houve desde sempre um modelo de fundação mais deliberado. Os Chineses usam a mesma palavra, cheng, para significar «cidade» e «muralha», o que revela uma entranhada veneração pelas muralhas protectoras. Nos registos do Ministério das Obras Públicas está documentado que, quando, no princípio do século xv, o imperador Yongli decidiu estabelecer a sua residência em Pequim, começou por construir «uma muralha à volta da capital com quarenta li de comprimento e nove portões de entrada». Embora muitas vezes houvesse abrandamento da rigidez do planeamento urbano, em consequência do crescimento demográfico ou das movimentações forçadas durante a invasão dos bárbaros ou em tempos de dinastias fracas, nunca a cidade chinesa conseguiu, pela via do comércio e da indústria, tornar-se suficientemente independente para desafiar os ideais políticos, legais e religiosos estabelecidos. Nunca foi um centro de transformação social.

O muito chinês sentido de unidade, de pertencer mais a uma civilização do que a um estado ou a uma nação, foi reforçado pelo precoce desenvolvimento da cidade. Muito antes da unificação operada pela dinastia dos Qin, em 221 a. C., já havia concentrações de antigas cidades nas planícies de loess do Norte da China. Esta terra fina, trazida pelo vento vindo do deserto da Mongólia na última era glaciária, enformou literalmente as origens da China, na medida em que, uma vez irrigada, a sua fertilidade suscitou o interesse do estado pelos benefícios que as obras de regularização das águas permitiam obter. Filosoficamente, o rei preservava a prosperidade do seu povo pela manutenção de boas relações com os poderes celestiais, mas, ao longo das margens do rio, os seus funcionários fiscalizavam os vastos mecanismos de protecção de que dependia a prosperidade agrícola. O aumento da produção sustentava uma população numerosa e em grandes concentrações, acentuando, por outro lado, a divisão entre a estepe e as terras cultivadas.

Nada mais natural do que os Chineses antigos terem acabado por identificar civilização com povoações muradas rodeadas de campos entregues à agricultura intensiva, o que talvez explique a forma como absorveram os agricultores menos avançados que viviam mais a sul. No entanto, o terreno acidentado de grande parte do Sul da China permitiu a sobrevivência dum grande número de subculturas e diferentes dialectos, em contraste com as províncias do Norte, onde quase toda a gente fala agora o mandarim, nome que herdou da antiga língua franca dos funcionários imperiais.

A uniformização do alfabeto escrito, um pouco antes de 210 a. C., por ordem de Qin Shi Huangdi, o Primeiro Imperador, foi um factor que contribuiu para a integração nacional. Mais ainda, a burocracia centralizada que instaurou em lugar das administrações feudais que os seus exércitos derrubaram em 221 a. C. veio a demonstrar ser a base do mais duradouro modelo de ordem social jamais inventado, como testemunham os esforços que, em tempos recentes (princípio deste século), Kang Youwei desenvolveu para salvar o que dele restava. Para a burocracia imperial eram recrutados letrados, sobretudo depois de, no século vii, os exames terem passado a ser o principal meio de qualificação: a sua escala de valores diferia profundamente da dos comerciantes, e assim se confirmava a influência do estado sobre a actividade económica. Do mesmo modo, o pincel revelou-se mais forte do que a espada, apesar de ter sido de chineses a invenção da besta (antes de 450 a. C.) e da arma de fogo (século xiii). A China, embora tenha tido o seu quinhão de guerras, mais ainda do que a maioria dos outros países neste século, nunca aceitou a necessidade duma classe militar poderosa. Pelo contrário, a baixa estima em que eram tidas as forças armadas é bem patente no ditado: «Dum soldado não se faz um bom homem, como de madeira podre não se faz boa mobília.» Seja como for, ajuda a explicar os sentimentos ambivalentes dos habitantes coloniais de Hong-Kong em relação à família real britânica, cujos membros do sexo masculino usam invariavelmente uniforme militar em cerimónias oficiais.

Esta atitude invulgar em relação à instituição militar é provavelmente devida à capacidade inventiva dos Chineses. O facto de desde tempos muito recuados produzirem ferro fundido e aço permitiu-lhes terem acesso a enxadas, relhas de arado, picaretas e machados de qualidade, o que lhes facilitou um eficaz amanho da terra por um reduzido número de trabalhadores agrícolas, o que reduzia os vínculos feudais. A escravatura nunca foi uma característica significativa da civilização chinesa desde o ano 1000 a. C., em flagrante contraste com a Grécia e Roma. A unificação imperial foi entrelaçada com o avanço técnico, mas a capacidade de resistência duma dinastia tinha também a ver com a aquiescência dos governados e com os meios de que se serviam para operar mudanças políticas. Na China acontecia que as armas ofensivas eram sempre superiores. Ainda Cristo não tinha nascido e já a besta tornava obsoletas as couraças que no Ocidente garantiam a superioridade dos cavaleiros medievais. Por isso, Mêncio (372-288 a. C.), o mais importante discípulo de Confúcio, podia, com alguma razoabilidade, defender o direito do povo a pegar em armas contra o poder tirano.

Embora a República Popular invoque actualmente direitos sobre uma vasta área do mar da China, continua a ser um facto histórico os Chineses nunca terem usado as suas aptidões navais para conquistar possessões ultramarinas. Tão-pouco procuraram estender as suas fronteiras terrestres pela via da conquista desnecessária: a Grande Muralha ficou como exteriorização dum estado de espírito que encarava as medidas defensivas como um mal necessário. «Mantém-se um exército durante mil dias para usá-lo durante um dia», rezava um velho ditado. Até que ponto estavam avançados os barcos chineses, por exemplo, é coisa que se pode ver comparando-os com os dos exploradores portugueses. Se Vasco da Gama tivesse dobrado o cabo da Boa Esperança setenta anos antes, teria visto a sua embarcação de 300 toneladas navegar ao lado duma armada chinesa constituída por navios de 1500 toneladas sob o comando do grande eunuco Zheng He. O que o aventureiro português efectivamente encontrou foi um oceano Índico vazio, porque, a partir de 1433, os imperadores da dinastia dos Ming desencorajaram as actividades marítimas e foram deixando enfraquecer a armada imperial, numa política de indiferença pelo poder marítimo que acabou por deixar a China exposta às depredações descontroladas das frotas marítimas europeias. O despovoamento dos mares orientais deu aos Portugueses, aos Espanhóis, aos Holandeses e finalmente aos Ingleses a falsa impressão de que eram os primeiros a alcançar aquela zona. Sabemos hoje que o Pacífico oriental, o mar da China e o oceano Índico foram lagos chineses até meados do século xv.

Outra diferença entre reconhecimento dos oceanos dos Chineses e dos Portugueses está no tratamento que davam aos povos com os quais travavam conhecimento. Em vez de pilhar a linha de costa, fazer escravos, estabelecer colónias e monopolizar o comércio internacional, as armadas chinesas desencadeavam uma série complexa de missões diplomáticas, trocando presentes com reis distantes, dos quais achavam suficiente receber um mero reconhecimento formal da suserania do Filho do Céu. Não havia lugar à intolerância de outros credos religiosos nem à busca de riquezas materiais, sob a forma duma cidade como El Dorado, que eram características das expedições portuguesas.

A aversão dos Chineses à guerra organizada encontra paralelo na tradicional importância atribuída ao clã e à família. O ideal de quatro gerações a viver debaixo do mesmo tecto reflectia uma grande crença no valor dos costumes, numa sociedade em grande medida imune às questões de estado. Este ponto é bem frisado na famosa entrevista entre Confúcio e o duque de She, estadista ancião da semibárbara Chu. O duque defendia que a primeira lealdade de um indivíduo era devida ao estado, mas o filósofo insistia em que era à família. «Há entre nós quem seja tão recto», dizia o duque, «que, se o pai roubar um carneiro, o filho testemunha contra ele.» Ao que Confúcio replicava: «Entre nós, quem é recto age de maneira diferente. O filho protege o pai e o pai protege o filho: para nós isso é que é rectidão.» Ramificações das grandes famílias e clãs eram as sociedades secretas, associações para protecção mútua em tempos difíceis. De pendor frequentemente republicano durante o século xix, as sociedades secretas dos nossos dias deixaram de desempenhar o papel para que foram criadas, tendo nalguns casos passado a dedicar-se ao crime.

A força e a capacidade de regeneração da família foi sem dúvida o que sustentou a cultura chinesa durante os períodos de crise, assim como tornou possível, em quase todos os casos de conquista, a absorção e sinização dos reis estrangeiros. Muito diferente da invasão germânica das províncias ocidentais de Roma foi a partilha da China pelos Tártaros (317-589), quando a maior parte das terras a norte do rio Yangzi passou para as mãos de membros de tribos bárbaras das estepes. A sinização dos invasores do Norte da China acabou por levar um imperador da dinastia dos Wei Tuoba a publicar um decreto que proibia o uso da língua, trajes e costumes tártaros. Toda a gente tinha passado a ser chinesa. Não aconteceu nada parecido com o colapso do Ocidente latino, onde as incursões destruíram as antigas civilizações, à excepção de pequenas bolsas escondidas por trás das paredes dos mosteiros, e se assistiu a uma degradação evidente das condições sociais, com os povos germânicos a perderem a sua cultura e a dos povos que tinham conquistado. Ao contrário do que aconteceu na China, as províncias ocidentais do Império Romano não foram povoadas por grande número de pessoas que partilhassem a mesma tradição cultural, além de ser enorme a classe de escravos.

A espantosa capacidade de absorção da cultura chinesa incitou alguns observadores a rotulá-la de imutável. A verdade é que houve grandes transformações internas e constantes movimentos das fronteiras imperiais: estas alterações nem sempre são claramente perceptíveis pelo facto de terem sido lentas em comparação com o frenesim de acontecimentos que caracteriza o século xx. E, no entanto, as próprias políticas da dinastia dos Wei Tuoba podem ser vistas como a base do brilhante renascimento Tang, que fez da China o maior, mais populoso e mais tolerante país do mundo. Ao imperador Xiao Wen Di, da dinastia dos Wei Tuoba, ficaram os Chineses a dever a reforma do sistema fiscal, a reintrodução dos salários para funcionários, a recriação das milícias e, não menos importante, a revisão do estatuto fundiário. A tendência para a concentração encapotada da propriedade foi travada pela reafirmação do estado como autoridade à qual compete a custódia da terra.

Os Chineses actuais têm consciência da grandeza do seu passado, se bem que subsista uma espécie de relação de amor-ódio com o esplendor da história imperial e pré-imperial. Mao Zedong foi disso um bom exemplo quando disse ao povo que não devia renegar o passado, mas pô-lo ao serviço do presente. Só assim a China conseguiria «separar todas as coisas sórdidas da antiga classe dominante feudal da excelente cultura popular antiga, que é de carácter mais ou menos democrático e revolucionário». O passado atinge o ponto máximo de fascinação nas espantosas descobertas da arqueologia, que desde a fundação, em 1949, da República Popular recebe um grau de apoio oficial sem paralelo no mundo moderno. A Exposição Chinesa, realizada em Londres em 1973, foi a montra da República Popular, uma vez que uma boa parte das peças em exposição, incluindo o traje funerário, em jade, da princesa Dou Wan, da dinastia dos Han, provinha de escavações realizadas durante a Grande Revolução Cultural Proletária. Mas o mais impressionante achado arqueológico só viria a ter lugar em 1974, quando camponeses que procediam à perfuração de uma série de poços no monte Li, na província de Shanxi, desenterraram parte dum exército de terracota em tamanho real que jazia nas proximidades da elevação que assinalava o túmulo de Shi Huangdi, imperador da dinastia Qin, o unificador da China. Calcula-se que haja mais de 7000 figuras nas quatro câmaras, que só em parte estão exploradas.

Durante o Verão de 1980, altura em que também foram descobertas bigas de bronze, o autor teve a sorte de ser convidado para visitar as escavações do monte Li. Foi durante a conversa aí mantida com os arqueólogos que veio ao de cima uma evidente diferença de atitudes em relação à história. Não havia qualquer sensação de urgência no local das escavações, onde magníficas peças de terracota esculpida estavam a ser pacientemente restauradas e expostas nas posições em que tinham sido encontradas. Não havia planos imediatos de abertura da própria elevação tumular e Yang Chenching, o conservador do local, dizia por graça que podia muito bem ser o seu neto a fazer essa escavação. Esta lentidão intencional assenta numa profunda consciência de continuidade cultural, numa íntima ligação ao passado. A representação individual dos soldados no exército de terracota, sugeria Yang Chenching, era uma celebração da unificação da China na medida em que todas as diversas características físicas dos seus vários povos ali estavam representadas. O que não precisou de acrescentar foi que eles continuam a habitar o país e têm plena expectativa de habitá-lo para sempre. O facto de se pertencer à mais antiga das civilizações sobreviventes justifica tal confiança, especialmente no contexto da espectacular recuperação da China a seguir à segunda guerra mundial, e torna impossível qualquer estudo da China que não faça referência às suas antigas origens.



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