Período das 6 Dinastias

por William Morton em China - História e Cultura (1986), Editora Zahar; Rio de Janeiro


Durante o século III d.C., um cavalheiro de aparência um tanto dissoluta foi visto pelas ruas de Luoyang conduzindo um pequeno carro puxado por dois gamos. Acompanhavam-no dois criados, um deles com uma garrafa de vinho e um cálice, o outro carregando uma pá. Indagado sobre a finalidade da pá, o segundo criado respondia que, se o seu amo caísse morto, ele tinha instruções para o enterrar aí mesmo. O cavalheiro era Liu Ling, um dos membros do grupo conhecido como os Sete Sábios do Bosque de Bambu. Era evidente que ele fazia questão de atrair as atenções para a sua própria excentricidade. O significado da garrafa de vinho era óbvio, mas o da espada era menos claro e peculiarmente chinês: o de que o intricado ritual confuciano em torno da morte e de outros fatos da vida era absurdo e contrário à natureza. Para aquele que aceitava as coisas tal como se apresentavam, e se divertia num breve estado de embriaguez, os problemas deste mundo pareciam "camalotes flutuando rio abaixo".

Essa atitude hedonista, deliberadamente dotada por alguns intelectuais como os Sete Sábios, que se entregavam a debates livres sobre a filosofia daoísta conhecidos como "discussões puras" (qing tan), estava no extremo oposto da moralidade convencional imposta pela erudição oficial confuciana, predominante ao longo da maior parte da história chinesa. Era um subproduto da era de invasões bárbaras e de extrema confusão política. Durante esse período de três séculos e meio, o mais longo período de desunião política na história da China, a reação de muitos homens de pensamento foi a de completa renúncia à vida pública. Assim, esse período é freqüentemente omitido ou apenas tratado por alto nas histórias. Foi, entretanto, uma época em que se insuflou um novo vigor na sociedade, graças ao sangue novo proveniente do outro lado das fronteiras da China. Novas iniciativas no pensamento e na religião, até em administração, introduzidas no período das Seis Dinastias, eram agora vistas como precursoras ou modelos para o grande florescimento da cultura e da sociedade quando o império chinês voltou a unificar- se, uma vez mais, sob as dinastias Sui e Tang.

Sumário dos Acontecimentos

As alternâncias de poder entre os líderes, muitos dos quais não eram chineses, e suas efêmeras dinastias no Norte e no Sul durante o período das Seis Dinastias, são extremamente complicadas. Os acontecimentos poderão ser resumidos, em suas linhas gerais, da seguinte maneira: Os Três Reinos que surgiram com a derrocada da dinastia dos Han posteriores dominou a cena de 220 até à década de 260- com exceção de Wu, no Sul, cujo domínio se estendeu até 280. No começo, os três lograram expandir-se: o reino Wei, ao Norte, penetrando na Coréia; Shu-Han, no Sudoeste, conquistando algumas tribos aborígines circundantes; e Wu, no Sul, ampliando seu território até o Yietnã. Em 263, Wei anexou Shu-Han, um reino vizinho, e pouco depois um general de Wei anunciou o estabelecimento de uma nova dinastia, a Jin, a qual conquistou o terceiro reino, Wu, em 280, e voltou a unificar a China por breve período. Daí em diante, estabelece-se uma clara divisão entre China setentrional e meridional, divisão essa que persistirá até o fim da era em 589.

A história do Norte é marcada, durante uma centena de anos, por numerosas invasões dos "bárbaros", alguns mais sinicizados. outros menos. Os 16 Reinos foram ocupados e perdidos por cinco nações, três das quais, Xiung-nu, Jie e Qianbei, eram oriundas das estepes e falavam turco, mongol e tungúsio, ao passo que as outras duas, os Qiang e os Di, eram montanheses e falavam tibetano e tanguto. A fase seguinte no Norte revestiu-se de grande importância por razões culturais, sobre as quais voltaremos a falar mais adiante, e o poder foi detido pela dinastia Wei Setentrional (386-534; não confundir com o reino Wei de Cao-Cao entre os Três Reinos, o qual é designado algumas vezes como o Cao-Wei). Quatro Estados, subdivididos e de escassa importância, fecharam o período no Norte.

No Sul, a classe dominante era constituída por aristocratas chineses, muitos dos quais tinham migrado para o sul ante o avanço dos ferozes líderes tribais, que tinham ocupado a região setentrional de sua pátria. De fato, durante todo o período que vai do século III ao século V, a população de ascendência chinesa na região ao sul do Yangzi registrou um considerável aumento numérico, conquistando e suplantando as tribos nativas. Esse movimento de pessoas. afetando todo o futuro da China, é um exemplo da importância do período que estamos recapitulando, independentemente de sua falta de unidade política. A ascensão dos grandes feudos independentes, que observamos no final da dinastia Han. teve prosseguimento, e a mão-de-obra de que precisavam era fornecida pelos camponeses em fuga do Norte ou pelos nativos do Sul conquistado. No seio das famílias aristocráticas surgiram os generais que se tornaram imperadores da sucessão de dinastias baseadas na capital do Sul, Nanjing (Nanquim).

As Seis Dinastias do Sul que deram seu nome ao período foram a Jin Oriental, a Liu Song, a Qi Meridional, a Liang, a Chen e a Sui. Cumpre dizer apenas algumas palavras sobre elas separadamente.

A Jin Oriental foi uma continuação no Sul, de 317 a420. da dinastia Jin (ou Jin Ocidental) já mencionada como responsável pela unificação do país durante um breve período. Foi bem-sucedida na conquista de Sichuan, o que lhe propiciou acesso à Ásia central. O reino sofreu uma rebelião no ano 400, liderada por um membro do Bando dos Cinco Celamins de Arroz, o qual recrutava marinheiros, pescadores e piratas para a sua causa, ao longo da costa meridional. O general que sufocou a rebelião, fiel a um padrão corrente nessa época, tratou de aproveitar sua posição vantajosa para tomar o poder em Nanjing; mas foi derrotado, por seu turno, por um rival que fundou a dinastia Liu Song (420-479).

Os Liu Song encontraram dificuldades, tanto por parte de seus próprios aristocratas que se obstinavam em manter seus privilégios, quanto dos ataques desencadeados pelos Wei Setentrionais, e acabaram sucumbindo, cedendo o lugar aos Qi Meridionais (479-502). Nessa dinastia, os empreendimentos comerciais fizeram grandes progressos. Tal como na dinastia Liu Song, a tendência geral era antiaristocrática mas, quando ela foi levada longe demais, um massacre de nobres provocou tal resistência que pôs fim a essa efêmera dinastia.

A dinastia Liang (502-557) forneceu um ligeiro interregno de paz e prosperidade, em virtude do longo reinado de seu fundador, Liang Wu Di (502-549). Entrementes, estava ocorrendo uma importante mudança econômica, a qual tinha seu paralelo, em anos não muito posteriores, na Europa medieval: as trocas e o comércio registravam um crescimento firme, e a hegemonia do auto-suficiente senhorio feudal, com seu todo-poderoso castelão, estava declinando. Durante a primeira metade do século VI na China, as cidades do Yangzi e Cantão, no Sul, estavam crescendo em importância. As crônicas da dinastia Liang revelam a presença e atividade de um número cada vez maior de mercadores., não só chineses mas também do Sudoeste asiático, indianos e persas. Estavam sendo lançados os alicerces para a vasta expansão comercial do Sul da China e seu intercâmbio ultramarino durante as dinastias subseqüentes. A cultura dos Liang foi estimulada pelo Budismo, do qual o imperador Liang Wu Di era um fervoroso defensor. Mas houve um novo evento militar que também teria seu paralelo europeu, embora em data muito ulterior: a ascensão de exércitos mercenários, sob o comando de caudilhos que da guerra faziam um modo de vida, constituía uma ameaça para a dinastia Liang e para os grandes aristocratas que, por largo tempo, haviam desfrutado um lugar ao sol.

A dinastia Liang cedeu o lugar à Chen (557-589), a última das dinastias divididas antes de Sui reunificar a China. Os reveses que acompanharam o declínio dos Liang resultaram na perda de Sichuan e dos territórios ocidentais. Chen estava enfraquecida demais para se defender contra uma coligação de inimigos e caiu em poder dos Sui em 589.

Literatura na Era dos Três Reinos.

Essas calidoscópicas mudanças políticas ocorreram na cúpula e cumpre registrá-Ias, que mais não seja para manter em ordem a estrutura básica da história chinesa e proporcionar pontos de referência nas dinastias para quem desejar ir mais longe no estudo da arte, filosofia ou literatura chinesa. Mas as mudanças subjacentes que se efetuaram, lentamente, na cultura e na sociedade. durante esse conturbado período, são mais importantes. O estudo de história social despertou-nos para o fato de que existem dois ângulos distintos donde os eventos de qualquer período dado devem ser observados. O ângulo básico é de natureza puramente factual: o que foi que realmente aconteceu? Mas, a longo prazo, o ângulo mais importante pode ser o imaginário: o que é que aqueles que viveram depois dos eventos supõem que aconteceu? Através de que prismas viram eles os acontecimentos? Pois é isso o que determina a história futura.

A era dos três Reinos, no começo do período que estamos examinando, oferece um bom exemplo desse ângulo duplo. Havia, de fato, muito pouca escolha entre os três generais - quase lhes poderíamos chamar bandidos - que, impelidos por motivos de engrandecimento pessoal, talharam suas esferas separadas de controle. Traições e matanças marcaram seu avanço. Mas gerações subseqüentes de chineses interpretaram a era dos Três Reinos, em retrospecto, como um período de aventura e de gestas heróicas de cavalaria. Os Chineses realistas, que não são, por via de regra, propensos à glorificação da guerra, deleitaram-se com as façanhas audaciosas e as fugas sensacionais desse período. Assim como Shakespeare se inspirou num repertório de crônicas de batalhas durante as Guerras das Rosas e a dramaturgia Nô japonesa se apoiou no heroísmo das Guerras Gempei, também o teatro chinês subseqüente e o famoso Romance dos Três Reinos descobriram um fecundo manancial de temas nesse período de guerras e de fortunas cambiantes. As aventuras que acarretaram tanta miséria e infortúnio na época tornaram-se mais românticas à medida que se distanciavam nas brumas do passado. A Cao-Cao coube o papel do vilão, enquanto Liu Bei, de Shu-Han, proclamando-se o continuador das tradições da grande dinastia Han, era o herói. Todo chinês está familiarizado com os estratagemas de seu fiel general, Zhuge Liang, e com as façanhas de Guan Yu, que acabou sendo deificado como Guan Di, o Deus da Guerra. Mas, ao contrário do culto clássico de Ares ou Marte, Guan Di é reverenciado pelo povo comum como o deus que impede a guerra.

Os ensaios dos pensadores, em contraste com as histórias contadas pelo povo, tendem nessa época a ser uma literatura escapista, escolhendo por tema a renúncia às pesadas responsabilidades que o exercício de um alto cargo envolve e o retorno ao consolo e refrigério da natureza, como indica este excerto universalmente sedutor da literatura do começo do século V. O estilo clássico e ligeiramente pedante da tradução de Herbert A. Giles, o primeiro professor de chinês na Universidade de Cambridge, reflete adequadamente o original, no qual Tao Yuan-ming está deliberadamente saboreando as alegrias simples de um modo erudito;



DE NOVO, O LAR!

"Encaminho meus passos para casa. Meus campos, meus jardins, sufocam de ervas daninhas: não deveria ir? Minha alma levou uma vida de escravo: Por que haveria de ficar e definhar?(...) Suave, suave, desliza meu barco, minhas roupas esvoaçando na leve brisa. Indago meu caminho à medida que avanço. Deploro a lentidão do alvorecer do dia. Enxergo a distância meu velho lar, e alegremente acelero a cadência, na pressa de chegar. Os servos precipitam- se em minha direção; meus filhos aglomeram-se no portão. O lugar é um descampado ao abandono: mas ali está o velho pinheiro e descortino os meus crisântemos. Tomo as crianças pela mão e entro. Vinho é trazido em garrafas cheias e bebo-o em copos cheios até à borda. Contemplo, lá fora, meus ramos favoritos, a cabeça colada contra a janela, em minha liberdade recém-encontrada. Olho embevecido as doces crianças em meus joelhos. E dedico-me agora com prazer ao meu jardim. Existe um portão mas raramente está aberto. Apóio-me em meu bordão enquanto perambulo ou sento-me para descansar. Ergo a cabeça e contemplo a cena encantadora. As nuvens sobem, relutantes, do fundo das montanhas; cautelosa. a ave busca de novo seu ninho. As sombras dissipam-se, mas eu ainda me atardo junto de meu solitário pinheiro. De novo em casa! Não terei amizades que me desviem daqui e me seduzam com longínquas paragens. Para mim, os tempos estão desordenados; e o que tenho eu a desejar dos homens? Passarei meus dias na pura fruição do círculo familiar, deleitando-me, em minhas horas de ócio, com o alaúde e o livro. Meus agricultores me dirão quando a primavera está próxima, e quando haverá trabalho nos campos lavrados. Para lá irei de carroça ou barco, através da profunda garganta, para lá dos penhascos enevoados, folhagem brotando alegremente nas árvores, o pequeno regato que incha, caudaloso, ao desprender-se de sua minúscula fonte. Feliz é esta renovação da vida em sua estação própria; mas, quanto a mim, rejubilo porque minha jornada terminou. Ah, quão breve o tempo que passamos aqui na terra! Por que não sossegar então nossos corações, parando de nos preocupar sobre se ficar ou partir? De que serve consumir a alma com pensamentos angustiosos? Não quero riqueza nem poder; o céu está para além de minhas esperanças. Assim, deixai-me varar morosamente as horas brilhantes à medida que chegam e passam, em meu jardim e entre as minhas flores; ou subirei a montanha e entoarei a minha canção, ou tecerei meus versos à beira do límpido regato. Desse modo esgotarei o tempo que me foi concedido, contente com a determinação do Destino, meu espírito livre de cuidados".

[Tao Yuan-ming (365-427 d.C.). traduzido por Giles. Gems of Chinese Literature. pp. 103-04.]


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