A Era pré-Han e a Religião, por D. H. Smith

Nos três capítulos anteriores vimos como os confucionistas, os moístas e os tauístas, no período a seguir à morte de Confúcio, deram a sua distinta contribuição para o desenvolvimento das idéias religiosas da antiga China. Temos notado que, no seu todo, o pensamento filosófico tendia para o naturalismo e o agnosticismo e era altamente crítico do que se considerava ser superstições do povo comum. Todavia, havia indubitavelmente um profundo interesse não só em explicar a origem do universo e do homem em termos compreensíveis aos espíritos inteligentes, mas também em dar uma razão satisfatória do destino humano.
O período que examinamos era um período em que a esfera de influência chinesa estava continuamente a expandir-se. Os povos desconhecedores das “doutrinas dos reis sábios” estavam a ser gradualmente incorporados na hegemonia chinesa. A civilização chinesa tinha tido a sua origem na bacia do Rio Amarelo e dos seus tributários, e esta civilização havia aceitado uma idéia de história que se enraizava na crença de uma ascendência comum e nos ensinamentos dos divinos reis sábios. Durante a última metade do primeiro milênio antes de Cristo, ergueram-se poderosos estados para sul e para sudoeste. Esses estados, incorporando vastos territórios, eram agora reconhecidos como uma parte integral da China, mas continham povos cuja origem, costumes e crenças diferiam muito dos das tribos unidas que haviam habitado a bacia do Rio Amarelo.
O reconhecimento dos estados poderosos de Ch’u, Wu e Yueh parece ter ocorrido durante o período Ch’un Ch’iu. O rei Chuang de Ch’u (613-591 antes de Cristo) fora mesmo considerado como o último dos cinco Pa ou tiranos que haviam usurpado a autoridade dos reis Chou e forçado os numerosos estados da China a reconhecer a sua superioridade. No capítulo 49 de Mo-tzu, o autor contrasta Chung Kuo (O Reino do Meio, a China) com Yueh e fala de “sair” do Reino do Meio para visitar Yueh (1). A China é favoravelmente comparada com os estados circunvizinhos de Ch’u e Yueh. De novo no capítulo 25 de Mo-tzu, o autor refere-se às tribos a leste de Yueh e a Sul de Chu que praticavam canibalismo, e às tribos a oeste de Chin que destruíam os seus mortos por meio da cremação (2). Mêncio fala dos “bárbaros de língua-de-falcão do sul cuja doutrina não é a dos antigos reis” (3). Para leste estavam os povos costeiros de Yen e Chi cujo interesse pela imortalidade os levou a enviarem expedições em busca das Ilhas Abençoadas cujos habitantes, segundo se acreditava, possuíam o segredo da imortalidade e da juventude perpétua. A incorporação gradual de muitas tribos que anteriormente tinham sido consideradas como não chinesas, iniciaram o povo chinês em novas interpretações mitológicas e novas práticas religiosas.
Parece evidente que de uma ponta à outra dos territórios em constante expansão da China, durante este período, o povo comum foi muito influenciado por adivinhos xamanistas, médiuns, exorcistas, homens que faziam chover e outros mágicos, tanto homens como mulheres (4). De Groot (5) defende que os feiticeiros chineses, conhecidos como wu, eram os verdadeiros padres da China nos séculos imediatamente anteriores à nossa era, que se acreditava que os espíritos encarnavam neles de modo que eles agiam como intermediários entre os homens e os deuses. Praticavam técnicas mágico-religiosas, artes de curar pela fé, e proclamavam-se capazes de entrar em estado de transe durante o qual visitavam o mundo transcendente dos espíritos e comunicavam com deuses poderosos, demônios, fadas e heróis deificados.
Uma bela imagem das crenças religiosas e da expressão do povo chinês durante os últimos séculos da dinastia Chou e a fundação do império chinês sob o governo de Chin e primeira Han, pode obter-se através de um estudo dos Poemas de Ch’u (6), do Livro dos Ritos (O Li Chi) (7) e referências a idéias cósmicas no Livro da Adivinhação (I Ching) (8). Aludindo a este período, R. Wilhelm escreve:
“Outro novo fator foi a penetração de influências dos estados fronteiriços do sul que produziram um notável renascimento da mitologia. O famoso poema de Ch’ü Yüan, “Sobre as Dores que se Chocam”, abre um novo mundo. A atmosfera está cheia de espíritos e deuses -não mais apenas forças sem nome, que até o confucionismo reconhecia, mas seres individuais dotados de consciência e vontade que vivem e se movem por trás dos bastidores. É difícil avaliar a extensão da influência indiana nesses primeiros dias. Essas idéias religioso-mitológicas eram exploradas pelas fileiras dos Fang-shih (mágicos) que representavam uma parte importante na vida da corte, desde que mais do que um imperador esperou resolver com a sua ajuda os problemas da transmutação em ouro e do alcance da imortalidade. Esses mágicos apoderavam-se e interpretavam à sua maneira a velha religião natural da China. Eles adaptaram o tauísmo do mesmo modo, pois as metáforas e as personificações de Chuang-tzu proporcionavam numerosos pontos de contato” (9).
Os poemas de Chu
Estes poemas, atribuídos aos séculos IV e III antes de Cristo, revelam as crenças e as práticas mágico-religiosas que, com variações locais, eram ubíquas nos estados que formavam a hegemonia chinesa. A religião do período era uma mistura de culto dos antepassados e de animismo. Em toda a parte os adivinhos xamanistas entravam em danças rituais e encantamentos designados a fazer regressar os espíritos dos doentes e dos mortos, ou a instigar transes em que eles vagueavam livremente no mundo dos espíritos, ou atraíam os deuses das estrelas, dos rios e das montanhas para a sua assistência. Conforme o Professor Hawkes escreve na sua introdução à tradução do Chu Tzu (10), o poeta que compôs o Li Sao (Sobre as Dores que se Chocam) “é, ou aspirou a ser um mágico. Ele sente que pertence a um meio sobrenatural mais puro do que este da terra, onde não se alimenta de outra coisa menos etérea do que orvalho e vapor do céu, onde pode intimar deuses e espíritos imortais a cumprir as suas ordens, e pode vaguear à vontade até o extremo do universo. Trata-se da frustração de um espírito imortal condenado ao exílio no mundo dos homens” (11).
A curta coleção de poemas conhecidos como os Nove Cânticos (Chiu Ko) crê-se que são cânticos usados numa liturgia erótica em que o macho e a fêmea xamanista “tendo-se primeiro purificado e perfumado e vestido com belos fatos, cantam e dançam com acompanhamentos de música, atraindo os deuses do céu numa espécie de galanteio divino”. (12) Os deuses mencionados parecem ter sido deuses de cultos locais, mas incluem Tai I, o Grande Único, e Ssu Ming, o Mestre dos Destinos, que ambos sobressaem proeminentemente na religião tauísta posterior.
O famoso poema Chao Hun, ou “A Invocação da Alma”, (13) baseia-se na crença de que a alma do homem pode, por várias razões tais como a doença, a loucura, ou coma, deixar o corpo. Era uma das artes dos xamanistas, treinados como eles estavam em errar em comparativa imunidade dentro do mundo dos espíritos, para fazer regressar tais almas à sua habitação terrena. No Chao Hun parece que o padre xamanista celebrava os seus rituais em nome de um rei que estava muito doente, e que fazia isso às ordens do Deus supremo. O Senhor disse a Wu-yang: (14) “Há um homem na terra que eu ajudaria, pois a sua alma deixou-o. Faz adivinhação para ele”. Wu-yang desceu e intimou a alma, dizendo: “Oh, alma, regressa!” (15) No Li Chi (Livro dos Ritos) essa chamada de regresso da alma parece ter sido uma prática popular no caso de alguém que tivesse acabado de morrer. (16) Os sequazes de Mo-tzu, no seu ataque aos confucionistas, referem-se à sua prática da procura da alma de um morto. “Quando o seu pai morre, ele deixa-o primeiro jazer ali sem o vestir para o enterro. Depois trepa ao telhado, olha para dentro do poço, espreita nos buracos dos ratos e procura nas bacias de lavar, em busca do homem morto” (17). Os moístas desdenhavam de tais práticas, mas, pela sua crítica, é razoável deduzir que alguns escolares confucionistas não eram contra elas.
Uma cosmologia primitiva encontra-se no Tien Wên, um poema de autor duvidoso, atribuído pelo Professor Hawkes ao século IV antes de Cristo (18). O poema refere-se a muitos conceitos primitivos chineses relativos à natureza do universo e à origem das coisas. O céu é concebido como uma tenda (versos 9-10) apoiada numa vara central e oito pilares à volta da circunferência, grandes e elevadas montanhas. Há uma brecha a sudeste causada pelo diurgo, Kung-kung, que, na sua raiva, deu com a cabeça contra o pilar do noroeste, fazendo com que a terra se inclinasse e o céu caísse naquela região, estragando a simetria do universo. O céu é considerado como tendo nove divisões (versos 11-14) e os doze signos zodiacais governam as “casas do céu”. Nelas as estrelas estão espargidas, enquanto que o Sol, a Lua e os planetas vagueiam através delas (versos 15-18). O Sol realiza diariamente a sua jornada desde o Vale da Madrugada ao Vale das Trevas, e de noite faz a viagem de regresso por baixo do mundo, uma idéia familiar noutras religiões primitivas. A Lua morre, mas torna a reviver e cresce, e assim a morte a ressurreição da Lua liga-se à idéia da imortalidade (versos 23-34). A terra era antigamente coberta por correntes de água, mas os sólidos esforços de Kun e Yu, ajudados por um dragão de asas, represaram as águas e apareceram as nove terras (versos 35-55). A terra é cercada por uma parede de nove dobras, com portas nos quatro lados, e sempre que o portão do nordeste se abre, um grande vento passa (verso 56). Shên-i, o divino frecheiro, salvou o mundo de ser queimado e reduzido a cinzas, matando nove dos dez sóis.
Muitas das idéias religiosas e mitológicas dos tempos refletem-se no multo famoso poema de Ch’u Yuan, o Li Sao (19). Ao referir-se ao seu próprio nascimento, no primeiro verso, o autor fala da “descida”, sugerindo a crença de que a sua natureza espiritual era pré-existente no céu. O verso dois revela o costume de consultar o horóscopo quando do nascimento de uma criança, seguido da cuidadosa escolha de um nome auspicioso. O verso onze fala de um juramento solene dos nove céus, indicando a crença comum de que o céu tinha nove bancadas ou estrados. O verso dezessete refere-se ao ensinamento, encontrado freqüentemente na literatura tauísta dos últimos tempos, de que beber orvalho e comer flores é sinal de pureza. Para o fim do poema, o autor diz como, depois de lágrimas amargas e negro desespero, se ajoelha num tapete para dirigir as suas lamentações ao céu. Em conseqüência disso, recebe uma espantosa revelação do caminho que se estende diante dele.
A disseminação dessa religião xamanista entre o povo comum, é indicada pela expressão freqüente wu chia ou “família- xamanista”, sugerindo que a profissão era muitas vezes hereditária. No estado de Chi (Norte de Shantung) “entre o povo comum a filha mais velha não tinha consentimento de casar. Chamavam-lhe a “filha do xamanismo” (wu êrh) e estava encarregada dos ritos religiosos da família” (20).
Do pouco que pudemos recolher desses primitivos Poemas de Ch’u relativamente às idéias e práticas mágico-religiosas dos séculos finais da dinastia Chou, ficamos com a impressão de que o mundo dos deuses, dos demônios, das fadas, dos espíritos da natureza, e dos antepassados imortalizados, estava muito perto do povo ordinário o qual acreditava que a sua felicidade e bem-estar, tanto aqui como no outro mundo, dependiam de manter uma atitude direita, através de canais apropriados, em direção a uma hoste de seres espirituais cujas atividades influenciavam fortemente, para bem ou mal, as vidas dos homens. Lendo os textos filosóficos pré-Han existentes, mal se compreende que essa religião popular existisse. Com o estabelecimento do confucionismo como religião do estado no século II antes de Cristo, houve uma tendência para a classe governante condenar severamente as grosseiras superstições, as crenças extravagantes e as toscas práticas religiosas dos padres-xamanistas, e para expurgar dos seus textos tudo que não se pudesse adaptar à ortodoxia confucionista. Contudo, conforme veremos no próximo parágrafo, o próprio confucionismo, sendo firmemente baseado numa apreensão religiosa da realidade, exigia a rígida observância de prescrições rituais minuciosas ao serviço de Deus, dos espíritos e dos antepassados mortos.

Notas
1. Ver Y. P. Mel, The Ethical and Political Works of Mo-tzu, Londres, 1929, p. 151, nota 1; cf. também p. 132, nota 1, onde “Chung Kuo” é comparado com os estados bárbaros vizinhos e os estados semibárbaros de Ch’u e Yüch.
2. Ibid., p. 133, onde Mo-tzu se refere a tribos do leste de Yüeh e do Sul de Ch’u que praticavam o canibalismo, e a tribos do oeste de Ch’in que cremavam os mortos, ambos costumes detestados pelos chineses.
3. Mencius, 3a, 4: 14.
4. Cf. Mircea Eliade, Shamanism, Londres, 1964, pp. 147 ff.
5. De Groot, The Religious System of China, vol. 6, Leiden, 1892 ff., pp. 1205 ff.
6. Uma excelente edição do Ch’u Tz’u em chinês foi publicada em Pequim em 1953. Uma boa tradução do Li Sao por Lím Boon Keng com o texto chinês, introdução e notas foi publicada em Xangai em 1929. A. Waley traduziu alguns dos poemas do Ch’u Tz’u no seu Chinese Poems, Londres, 1949, e em The Nine Songs, Londres, 1955. D. Hawkes, The Ch’u Tz’u, Oxford. 1959, é o nosso melhor guia em inglês para estes poemas.
7. Ver a tradução de J. Legge em Sacred Books of the East, vols. 27 e 28, Oxford, 1885. Também o I Li traduzido por J. Steele, 2 vols., Londres, 1917, com a sua descrição minuciosa dos ritos da dinastia Chou. Este livro foi provavelmente compilado antes do Li Chi.
8. A tradução de J. Legge do I Ching, Sacred Books of the East, vol 16, Oxford, 1899, foi editada recentemente com uma introdução e um guia de estudo por Ch’u Chai e Winberg Chai, New York, 1964. Com interesse para o estudante é R. Wilhelm, The I Ching, 2 vols., traduzidos em inglês por Cary F. Baynes, Londres, 1951; e Hellmut Wilhelm, Eight Lectures on the I Ching, Londres, 1960.
9. R. Wilhelm, A short History of Chinese Civilization, Londres, 1929, p. 171.
10. D. Hawkes,The Ch’u Tz’u, Oxford, 1959.
11. Ibid., p. 8.
12. A. Waley, The Nine Songs, Londres, 1955, p. 15.
13. Uma tradução excelente deste poema encontra-se nos Chinese Poems de A. Waley, sob o título “The Great Summons”.
14. Wu Yang foi um dos dez shamans que se acreditava que vivia numa montanha sagrada no ocidente.
15. D. Hawkes, The Ch’u Tzu, p. 103.
16. Li Chi, Livro 7: 1; 7, e Livro 19:3.
17. Y. P. Mei, The Ethical and Political Works of Mo-tzu, pp. 200-1.
18. D. Hawkes, The Ch’u Tzu, p. 45.
19. Ver Lim Bonn Keng, The Li Sao, Xangai, 1929.
20. A. Waley, The Nine Songs, p. 10.


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