A Religião Popular, por D. H. Smith

Quem visitasse a China durante os últimos anos da dinastia manchu ter-se-ia indubitavelmente impressionado com a força e a influência penetrante da religião na vida do povo. Em cada cidade havia vários templos grandes, entre os quais o templo dedicado a Ch’êng Huang, a divindade protetora dos muros e fossos cuja tarefa era olhar pelo bem-estar dos habitantes. Quase cada rua, aldeia e vila, tinham o seu pequeno santuário a T’u Ti, a divindade tutelar local. Famílias ricas possuíam os seus próprios templos ancestrais, mas quase todas as famílias tinham um pequeno santuário, Chia-t’ang, onde se colocavam imagens ou tabuinhas de certas divindades familiares. Para a casa os protetores deuses da porta, o deus da lareira, imagens do deus da riqueza, da deusa da misericórdia, etc. A paisagem era mosqueada de templos budistas e pagodes, ou templos tauístas, muitas vezes situados em belos lugares e de grande beleza arquitetônica. Ao longo das estradas havia inumeráveis capelas da beira do caminho dedicadas aos espíritos de certos heróis ou ao culto de várias divindades da Natureza. Muitas montanhas eram veneradas como sagradas e aos seus templos iam em peregrinação filas sem fim de camponeses. Cada grêmio comercial tinha o seu deus próprio com festividade anual e a imagem a presidir aos negócios da organização. As feiras anuais do país no norte da China, que duravam geralmente de três a cinco dias, eram organizadas à volta de um templo e abriam com sacrifícios apropriados e cerimônias diante da imagem do deus protetor. A maioria das festividades durante o ano eram de caráter semi-religioso e muito relacionadas com práticas religiosas. Os grandes acontecimentos da vida familiar, nascimento, casamento, doença e morte, eram marcados por observância religiosa e exigiam os serviços dos padres tauístas ou budistas. As almas dos mortos deviam ser expedidas para julgamento pelos deuses do mundo subterrâneo e acompanhamento de missas cantadas pelo clero budista, enquanto que a quase universal crença de Fêng-shui (geomancia), no exorcismo, na necromancia, na adivinhação, etc., pedia o serviço constante dos mestres tauístas.
Embora houvesse vários templos importantes e mosteiros onde o budismo e o Tauísmo eram praticados por monges disciplinados em comparativa pureza, e embora houvesse sociedades de leigos que se reuniam para o estudo e a prática desses credos, a religião popular da China pode ser descrita como nem confucionista, nem budista, nem tauísta. Conforme H. Maspero escreveu:
“As três religiões, como sistemas definidos, têm tido durante séculos somente interesse histórico: o povo nem pratica todas três juntas nem cada uma em separado. A pouco e pouco, através dos tempos, formou-se uma religião popular que adotou várias feições de todas três mas que é completamente distinta delas todas e deve ser considerada um sistema à parte”. (2)
Esta religião popular era servida, em parte, por funcionários do estado que, conforme vimos no capítulo sobre a religião estatal, tinham obrigações religiosas prescritas relativamente à comunidade e ao distrito que administravam, e em parte por padres especialistas. Os padres budistas, que tinham tido algum treino e ordenação nos grandes templos e mosteiros, é que administravam a maioria dos templos locais, vivendo principalmente de rendimentos provenientes da propriedade do templo. Reconheciam-se pelas cabeças rapadas e fatos próprios. Os monges tauístas viviam geralmente em mosteiros e estavam sujeitos a leis e disciplina muito semelhantes às que governavam o clero budista, mas havia grande número de mestres leigos tauístas, que viviam no mundo e eram casados, e que agiam como médiuns, exorcistas e curandeiros, passando a sua arte de pais para filhos. Notava-se grande variedade de expressão religiosa em diferentes partes da China. “A religião popular está longe de ser uma e a mesma; se certas idéias fundamentais se encontram, de um extremo ao outro da China, os pormenores variam infinitamente de lugar para lugar”. (3) Em algumas áreas, a influência budista predominava; noutras, as idéias tauístas eram particularmente fortes.
O panteão da religião popular era de profunda diversidade. Os budas, bodhisattvas e arhats do budismo, os Imortais e os Bem-aventurados do Tauísmo, os imperadores deificados, imperatrizes, escolares e heróis do confucionismo, os espíritos da natureza e os deuses do lar de um animismo primitivo todos eram aceites. Muitos dos inumeráveis deuses adorados haviam sido outrora seres humanos que, por várias razões, tinham sido promovidos depois da morte a alguma função importante dentro do mundo espiritual. Precisaríamos de um grande volume só para enumerar e caracterizar os deuses e deusas da religião popular na China. Tudo que aqui podemos fazer é referirmo-nos brevemente a algumas das divindades mais importantes que os chineses elevaram a posições de influência e poder especial dentro do mundo espiritual. (4)
Em toda a China, uma divindade suprema era reconhecida como soberana, governadora de todo o universo e de toda a hierarquia de seres espirituais. Dava pelo título de Yu-Huang-Shang-ti, ou o Augusto Supremo Imperador de Jade, ou mais familiarmente, para os camponeses, por Lao-T’ien-Yeh, o Céu-dos-Velhos-Antepassados. Tinha sido incorporado na religião popular como vindo do Tauísmo e como sendo o segundo de um Trio supremo que habitava nas alturas dos trinta e seis céus e a quem o primeiro do Trio, o Primeiro honrado-no-Céu, há muito havia entregue o governo do mundo. Representa-se como um imperador celestial cercado da sua corte e de todo um exército de ministros, funcionários e generais que estão sempre prontos a cumprir as suas ordens. Os templos dedicados ao culto do Rei-Dragão (Lung Wang) são particularmente numerosos no norte da China. A sua função primária é controlar a chuva, e, associados com o seu culto, há muitas cerimônias de fazer chover.
Outra divindade importante de origem tauísta é T’ai-shan, o deus da grande e sagrada montanha T’ai, em Shantung, cuja função, sob a suprema autoridade do Imperador Jade, é presidir à vida humana, apontando a cada um o seu destino, as datas do nascimento e da morte. Podemos ver a poderosa influência das doutrinas budistas de karma e reencarnação no conceito deste deus que guarda rígido relato de todos os atos bons e maus dos homens e lhes reserva lugar na outra vida de acordo com os mesmos.
Dos inumeráveis budas e bodhisattvas do budismo, os que têm um apelo mais universal na religião popular da China são o Buda Amitabha (O-mi -t’o fo) e os seus grandes assistentes, os budhisattvas Kuan-yin e Ti-ts’ang. Quanto ao último, tudo o que é preciso dizer aqui é que ele é o grande senhor do mundo subterrâneo e como tal supõe-se ser o medianeiro e protetor das almas infelizes que sofrem tormentos pelas suas más ações. Ele está sempre a procurar implantar nos seus peitos os sagrados anseios que iniciarão as operações que as levarão à sua derradeira salvação. É Amitabha, o Buda de infinita luz, a personificação da compaixão na sua última forma, (5) o governante do Paraíso Ocidental, a “Terra dos Bem-aventurados”, que, mais do que nenhuma outra deidade, tem conquistado os corações de milhões de chineses. “Em tempos de doença e perdas, em calamidades pelo fogo e pela água, quando atacados por ladrões, ou na angústia da morte, é o refúgio procurado na oração, oração muito breve, consistindo simplesmente em nomear o seu nome”. (6) O seu nome, O-mi-t’o Fo, acha-se em toda a parte. Pronunciá-lo com verdadeira fé, é assegurar a salvação. Trata-se do Buda que fez um voto eterno de salvar todas as criaturas vivas.
Juntamente com o culto de Amitabha está o culto de Kuan-yin, mais propriamente Kuan-shih-yin. Este importante bodhisattva, cujo nome em chinês se deve a uma má interpretação do nome sânscrito Avalokitésvara, parece ter sido introduzido na China cerca do século V AD. Representado na primeira iconografia na forma masculina, foi como grande divindade feminina que obteve um lugar supremo na religião popular. Como protetora de mulheres e crianças, doadora de filhos, guardiã de marinheiros, e grande compassiva salvadora, é praticamente impossível distingui-la do inspirado T’ien Hou (Imperador do Céu), a Santa Mãe (T’ien Shang Shêng-mu), ou a Princesa das Nuvens Variegadas (Pi-hsia Yuan-chun). Templos em sua honra encontram-se em toda a China e ocupa um lugar supremo na afeição das massas, como aquela cujo coração terno de compaixão está sempre pronto a ouvir o grito dos aflitos e a apressar-se a agir em seu favor. Conforme Doré escreve: “No budismo do norte nenhuma divindade ocupa um lugar tão importante no culto popular como Kuan-yin. Pode-se mesmo dizer que ela eclipsou o próprio Buda e os outros grandes Bodhisattvas. Isto é devido à função misteriosa e misericordiosa que ela cumpre no mundo budista”. (7)
Na religião popular o principal interesse era a salvação; não só a salvação dos males desta vida, mas da retribuição que inevitavelmente espera a alma no mundo do além por causa da acumulação de más ações feitas nesta vida. As doutrinas budistas de karma e a reencarnação tinham influenciado profundamente as massas. Através dos livros populares, de histórias e gravuras, e na iconografia dos templos, recordava-se ao povo a roda da transmigração a que toda a vida sensível estava ligada, até ao seu alivio final. Em numerosos templos os dez infernos do budismo eram representados em todos os seus horríveis pormenores, e constituíam uma constante lembrança desse julgamento a que nenhuma alma podia escapar. Ao quinto desses infernos, Yama, o rei dos mortos, conforme a mitologia hindu, presidia, posição a que tinha sido reduzido por causa de ter provado ser demasiado compassivo nos seus julgamentos. Os padres budistas eram não só proeminentes nas festividades oficiais e nos jejuns, mas indispensáveis na realização das complicadas cerimônias fúnebres e para cantar as missas pelos mortos. “É convicção dos chineses comuns que devem ter monges budistas, se os arranjos depois da sua morte forem cuidados. Podem acrescentar que eles são "um mal necessário", e podem aproveitar a oportunidade para satirizar e menosprezar tudo quanto diz respeito a monges. Mas o resultado é, todavia, uma confissão qualificada. (8)
Indubitavelmente a religião popular sofreu um declínio sério durante o século XX. A pregação dos missionários cristãos, o desenvolvimento de uma educação moderna ocidentalizada, os fortes movimentos anti-religiosos, o seqüestro dos templos, o enfraquecimento dos laços familiares e o aumento de materialismo e secularismo, tudo tem tendido para quebrar a firmeza das práticas religiosas tradicionais. O regime comunista, ao passo que proclama a liberdade de crença pessoal, tem sido incansável em tentar destruir o que supõe ser superstições inúteis, perigosas e consumidoras de riqueza. É, contudo, muito possível calcular mal a espalhada influência da religião popular na China comunista. Ela penetrou durante tantos séculos na vida e no pensamento do povo chinês que somos inclinados a crer que só espera um clima político mais favorável para florescer com renovada atividade. A sua influência na literatura, na arte, no folclore e nos costumes tem sido imensa. Só uma pequena percentagem da população chinesa aceita, ou mesmo compreende, a ideologia marxista. Embora essa pequena percentagem seja uma elite governante com imenso poder, a grande maioria, se bem que grata pelo governo estável e pelas vantagens da economia do sistema comunista, repudia o ateísmo militante que não tem lugar para uma interpretação espiritual da vida e do destino do homem.

Notas
2. H. Maspero, ‘The Mythology of Modern China’, Asiatic Mythology, J. Hackin, Londres, 1932 e 1963, p. 252.
3. Ibid., p. 262.
4. Para relatos mais minuciosos ver: J. J. M. de Groot, The Religions System of China, 6 vols., Leiden, 1892; H. Doré, Recherches sur les Superstitions en Chine, 15 vois., Xangai, 1914-29; H. Maspero, ‘The Mythology of Modern China’, Asiatic Mythology, C. B. Day, Chinese Peasant Cults, Xangai, 1940.
5. Ver A Budhist Student’s Manual, ed. C. Humphreys, Londres, 1956, p. 121.
6. K. L. Reichelt, Religion in Chinese Garment, Londres, 1951, p. 144.
7. H. Doré, Chinese Superstitions, trad. inglesa, Xangai, 1914, vol. 6, p. 205.


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