A Teoria do Conhecimento de um Filósofo Chinês

por Chang Tung Sun em Campos, H. (org.) Ideograma. (1977), Cultrix, São Paulo.
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Neste ensaio, tentaremos lidar com o conhecimento teórico de maneira mais ou menos abrangente. Trata-se de uma tentativa de teoria do conhecimento. Durante certo número de anos, o autor entreteve a idéia de elaborar mais satisfatoriamente uma indicação que lhe havia sido dada pela descoberta de que os problemas filosóficos do Ocidente não eram exatamente os mesmos que ocupavam o espírito dos filósofos chineses. Parece haver certa diferença entre os processos intelectuais chineses e os ocidentais. Tendo isso em mente, será aconselhável esclarecer melhor nossa concepção da teoria ocidental do conhecimento. Porque a teoria ocidental considerou o conhecimento como conhecimento universal da Humanidade. Na realidade, entretanto, trata-se apenas de um tipo de conhecimento, existindo outros tipos em outras culturas. Uma confirmação do ponto de vista de que o conhecimento pode ser estudado sociológica ou culturalmente apareceu recentemente na obra de Karl Mannheim, Ideologia e Utopia: Uma Introdução à Sociologia do Conhecimento. Existem, entretanto, algumas divergências entre as posições de Mannheim e as deste autor.
Historicamente falando, a Sociologia do Conhecimento confundiu-se com o marxismo. Mas a interpretação marxista da sociedade difere do ponto de vista que será aqui elaborado, pela ênfase que empresta ao antagonismo das classes econômicas. Sua sociologia do conhecimento caracteriza-se, por conseguinte, pelos interesses de classes. Em outras palavras, não é senão uma tentativa de encontrar, para o conhecimento, antecedentes nas lutas de classes. A semelhante teoria do conhecimento não se pode atribuir com propriedade o nome de teoria sociológica do conhecimento, sendo antes uma interpretação do conhecimento do ponto de vista da classe. É evidente que não se pode levar adequadamente em conta a influência das relações sociais sobre o pensamento considerando-a apenas em termos de interesses econômicos. O mérito de Mannheim está em ter ido além desse limite. Contudo, sua obra ainda deixa muito a desejar por ter-se adstrito exclusivamente ao campo do pensamento concreto, ou ao pensamento prevalecente num determinado tempo, como certos “Cismos" e teorias em particular. É lícito, por certo, analisar as relações sociais subjacentes a esse tipo de pensamento; devemos, porém, compreender que, no pensamento social concreto, empregam-se também categorias e que essas categorias em si mesmas também podem ser analisadas do ponto de vista sociológico. Este ensaio visa sobretudo às últimas, isto é, às categorias usadas no pensamento social. Em outras palavras, nós aqui nos interessamos mais pelas estruturas subjacentes ao pensamento do que pelo pensamento concreto como tal.
Em virtude da natureza do problema, nossa abordagem deveria assemelhar-se à de Kant. O tipo kantiano de interesse pelo conhecimento volta-se para as condições fundamentais dele, e, sob esse aspecto, a teoria kantiana parece aceitável, porque uma teoria do conhecimento deveria estudar as formas de conhecimento sem cogitar de seus conteúdos. Mas uma teoria sociológica do conhecimento irá inevitavelmente além de Kant, porque o próprio Kant supôs estar tratando das categorias universais empregadas no processo intelectivo de toda a Humanidade quando, na verdade, tratou apenas das formas de pensamento características da cultura ocidental. Não se julgue, entretanto, que isso significa ser impossível ter categorias universais aplicáveis ao pensamento humano em geral, ou que só sejam possíveis formas de pensamento étnica e culturalmente determinadas. Podem-se reconhecer categorias universais para o pensamento humano, mas não as definidas por Kant. A teoria kantiana do conhecimento permanece dentro dos limites do tipo de conhecimento ocidental; Kant procurou estabelecer um fundamento para a grande tradição do Ocidente. Evidentemente, ele próprio sofreu a influência de sua época e da cultura da tradição ocidental. Tentou utilizar o problema do conhecimento numa nova abordagem à Metafísica com o intuito de lhe conferir novo alento. Em sua concepção, se ele tivesse conseguido deixar estabelecido o aspecto não-empírico do entendimento humano, sua Metafísica, como prelúdio à filosofia da vida, estaria solidamente fundamentada. Nosso problema atual não parece equiparar-se ao dele.
Precisamos de uma teoria do conhecimento, mas não para servir de esteio à Metafísica. Por conseguinte, nossa atitude é diferente da de Kant. Aproxima-se mais da de Spengler. Acompanhando este último, podemos atribuir a gênese e as diferenças das categorias de pensamento às diferenças culturais. Uma cultura determinada deve dispor de um determinado conjunto de categorias. O que não significa que uma determinada cultura derive de um determinado conjunto de categorias, nem que um determinado conjunto de categorias dê origem a uma determinada cultura. Significa que o estabelecimento da cultura e das categorias é uma coisa só. A formação de uma determinada cultura está no uso de um determinado conjunto de categorias, mas a relação entre elas não se estabelece em termos de causa e efeito. São dois aspectos de uma mesma entidade.
Sendo o autor um filósofo e não um estudioso de Antropologia Cultural ou de qualquer outra ciência social, o tratamento aqui dado ao conhecimento, a partir do ponto de vista cultural, pode não coincidir necessariamente com o dos cientistas culturais e sociais. O ponto de vista ora, exposto decorre das descobertas da História da Filosofia. Cabe ao cientista social rever ou modificar esta contribuição, se necessário.
Recapitulando o que ficou dito até agora: em primeiro lugar, é preciso tratar simultaneamente a teoria do conhecimento e a história cultural; segundo, não é apenas o pensamento social concreto que tem um fundamento social: as formas lógicas e as categorias teóricas também têm os seus determinantes culturais; terceiro, a diferença entre o pensamento ocidental e o oriental pode ser explicada a partir desse ponto de vista; quarto, a partir daí, pode-se compreender que a Filosofia ocidental é apenas uma forma particular de conhecimento característica da cultura ocidental e para uso dela. Todos esses pontos serão elaborados mais demoradamente nas páginas que se seguem, onde se tentará estabelecer uma nova teoria do conhecimento.
II
Antes de prosseguir, é bom estabelecer uma distinção entre os diversos tipos de conhecimento. De um modo geral, existem dois tipos de conhecimento, o perceptivo e o conceitual. Tomemos por exemplo uma mesa ou uma cadeira. Esses objetos podem ser tocados e percebidos diretamente. É um conhecimento perceptivo. Por outro lado, a uniformidade da Natureza e a noção de um Ser Supremo não podem ser verificadas pelos sentidos, e a causalidade, a teleologia, etc., são também de natureza conceitual. Pode-se observar que o conhecimento perceptivo não pode estar fora do conceitual, nem se pode separar o conceitual do perceptivo. Na realidade, todo conhecimento conceitual contém elementos perceptivos e vice-versa. A diferenciação entre os dois visa sempre às simples conveniências da análise. Eles não existem isoladamente.
O tipo de conhecimento de que se vai tratar neste ensaio, como se há de ver, não é perceptivo e sim conceitual. Na medida em que o conceitual guia o perceptivo, a importância do primeiro ultrapassa a do segundo. Os empíricos muitas vezes descuram este aspecto, mas do ponto de vista da história cultural será aconselhável dar-lhe ênfase.
O conhecimento conceitual é também de natureza interpretativa. Por interpretação, entendemos a manipulação de conceitos e o emprego de categorias. Por exemplo: apreender uma flor é percepção, mas é interpretação dizer que as flores vêm das folhas, ou que a formação da flor tem como objetivo a reprodução. Numa interpretação dessa espécie, usam-se pelo menos os seguintes conceitos: todo acontecimento precisa ter seu antecedente; toda mudança deve ter sua causa; e o resultado final, num conceito de evolução, deriva precipuamente da interpretação. Por conseguinte, o conhecimento interpretativo, visto que contém conceitos e resulta em conceitos, é conhecimento conceitual (1). A manipulação de conceitos destina-se a interpretar os fatos percebidos. Desse modo, torna-se evidente que o conhecimento conceitual é conhecimento interpretativo, e que o conhecimento interpretativo é conhecimento teórico.
Nesta altura, para fins de comparação, podemos mencionar a tese de Pareto (2), o sociólogo italiano. Segundo afirma ele, o conhecimento teórico contém elementos muito misturados: elementos descritivos, axiomáticos, concretos e imaginários, além dos que fazem apelo aos sentimentos e convicções. Classifica também ele o conhecimento teórico em dois tipos: o experimental e o não-experimental. E, tomando esses dois tipos como matéria, o nexo para ele é o lógico e o tão-lógico. De modo que existem quatro classes: lógico-experimental, não- lógico-experimental, lógico-não-experimental e não-lógico- não-experimental. No que nos diz respeito, não nos interessa desenvolver-lhe a teoria mas salientar apenas que seu conhecimento experimental está fora do conhecimento teórico aqui analisado.
A distinção de Pareto entre lógico e não-lógico indica a reduzida importância do não-lógico, mas essa mesma expressão, "O lógico", parece bastante ambígua. O pensamento do Homem pode não estar necessariamente de acordo com a Lógica Formal, mas não pode deixar de estar de acordo com uma lógica. Estamos tratando, portanto, não de Lógica Formal e sim de lógica real. O tipo de lógica de que se valem os filósofos chineses difere da usada no Ocidente, e os hindus podem ter uma lógica diferente tanto da dos chineses quanto da dos ocidentais. A Lógica acompanha a orientação geral da cultura. Os pensadores ocidentais confundem muitas vezes sua lógica com a Lógica universal da Humanidade, como vimos no caso de Kant. Sobre esse assunto, teremos algo a acrescentar mais adiante. Basta dizer agora que a distinção entre lógico e não-lógico não tem nenhuma importância particular, porque não há nenhum conhecimento teórico que não implique uma lógica real. Parece um contra-senso falar em conhecimento teórico não-lógico. Pareto lavrou um tento ao dizer que a aprovação e a desaprovação do conhecimento não- -experimental dependem do sentimento; falou ele, por conseguinte, em "lógica do sentimento". Da lógica do sentimento devemos excluir, porém, o conhecimento experimental, antes de passamos adiante. O que nos interessa aqui é um tipo de conhecimento que é tanto interpretativo como conceitual c exterior ao experimental.
A recém-surgida escola de Viena observou esse aspecto. Carnap, por exemplo, estabeleceu uma distinção entre os problemas de fato e os problemas de lógica (3). Os primeiros são os que surgem dos fatos, enquanto os últimos são problemas de palavras que simbolizam coisas, e dos julgamentos feitos a respeito das coisas. Tal distinção pode ser útil por que coloca diante de nós o fato de que grande parte de nosso conhecimento não se relaciona diretamente com as coisas e sim apenas com os pontos de vista a respeito delas. Semelhante espécie de conhecimento ocupa um grande lugar na existência. humana. Neste estudo, trataremos desse tipo de conhecimento, o qual, em casos concretos, constitui-se de pensamento político, pensamento social, pensamento filosófico e pontos de vista morais, assim como da parte teórica das convicções religiosas. O conhecimento científico, excetuando-se os seus elementos experimentais, também está aqui incluído sob forma de teoria interpretativa.
Vale a pena observar que o conhecimento experimental se norteia pelo conhecimento conceitual. Whitehead é muito claro nesse ponto. (4) Em sua opinião, a Ciência é uma síntese de dois tipos de conhecimento, sendo um a observação direta, e o outro a interpretação. Refere-se ele assim a uma "ordem observacional" e a uma "ordem conceitual". A primeira não só é explicada como também suplementada pela segunda. Pode haver uma diversidade de pontos de vista entre os estudiosos quanto à prioridade de uma sobre a outra, mas, desde que emergiram as formas animais superiores, ambas têm coexistido. Observações novas podem modificar conceitos originais, enquanto novos conceitos podem levar a novos pontos de observação. Consideremos, por exemplo, a evolução da Física. A Física newtoniana parte da matéria sob forma de coisas concretas. Daí as concepções de movimento absoluto e de espaço e tempo absolutos. Mas a Física moderna toma conhecimento da matéria concreta apenas como um ponto na estrutura do tempo e do espaço. Portanto, põe-se de lado aquilo a que Whitehead dá o nome de "localização simples". A partir daí, verifica-se que o desenvolvimento da Física acompanha o esquema conceitual nela empregado. Em complemento a Whitehead, o físico americano V. F. Lenzen, em sua The Nature of Physical Theory, ilustrou as transformações e desenvolvimentos dos conceitos físicos com relação à Física. No campo da Biologia, Woodger, em seu recente livro The Axiomatic Method in Biology, demonstrou também, muito claramente, como as diferentes categorias orientaram a observação. Esses exemplos todos mostram que o conhecimento experimental constitui um conhecimento perceptivamente derivado, norteado e influenciado pelo conhecimento não-experimental subjacente, ou conhecimento conceitual. É fácil verificar que o conhecimento experimental pode modificar o conhecimento conceitual, ao passo que, para muito gente, não é igualmente óbvio que o conhecimento conceitual possa estar servindo de base ao conhecimento perceptivo e norteando-o.
Outro ponto a ser assinalado diz respeito à natureza social do conhecimento conceitual. Todo conhecimento experimental vem dos sentidos, sendo portanto individual e particular; em outras palavras, não-social. Portanto, dificilmente o conhecimento perceptivo será um conhecimento social. Contudo, nenhum conhecimento pode dispensar seu conteúdo social, cuja emergência e existência só ocorrem no campo do conhecimento interpretativo. S. Alexander (5) salientou que o problema da atribuição de valores é de natureza social e que sem pressupor uma sociedade não se pode falar em valores. Escusa dizer que essa atribuição de valores só é possível no campo do conhecimento interpretativo. No que diz respeito ao conhecimento perceptivo, em virtude de ser ele individual e particular, não existe o problema da valorização objetiva. A importância do conhecimento perceptivo é evidente por si, enquanto o conhecimento não-experimental aparentemente carece de importância, porque essa importância não é tão evidente, muito embora seja real.
III
Desnecessário se torna ir buscar muito longe a razão da natureza social do conhecimento teórico: tem-na por ser um raciocínio expresso em termos de linguagem, ao qual, em terminologia científica, se dá o nome de "raciocínio lingüístico". Escusa dizer que a linguagem é um produto social. Embora a linguagem da criança passe por um estágio de monólogo, é evidente que a linguagem implica ou pressupõe um auditório. O homem primitivo, segundo nos afirmam, toma muitas vezes a linguagem como uma entidade concreta. Quanto mais rudimentar é a cultura, maior o poder das palavras. Na sociedade primitiva, a linguagem tem um poder mágico; há, portanto, uma conexão direta entre linguagem e pensamento. Quando se acusa um homem primitivo de ladrão, é quase certo ele zangar-se. Mas na sociedade moderna, um indivíduo sofisticado é capaz de pôr de lado a acusação com um sorriso, desde que seja inocente. Podemos considerar o grau de poder das palavras como medida para avaliar a extensão de um desenvolvimento étnico intelectual. Essa questão ficou suficientemente demonstrada pelos modernos estudiosos da psicologia infantil e da "mentalidade primitiva"; não carecemos portanto de insistir ainda mais nela.
Até agora, os argumentos parecem revelar a discrepância entre a linguagem e as coisas, falando assim em favor de emancipar-se o pensamento da linguagem. Quase todos os filósofos, desde tempos remotos até os nossos dias, tiveram consciência das limitações impostas pela linguagem, assim como da implicação de que o verdadeiro pensamento não pode ser revestido pela linguagem. A concepção corrente diz mais ou menos o seguinte: o pensamento é primário, e com novos termos ganha melhor possibilidade de expressão. Essa argumentação, entretanto, não revela necessariamente a natureza do desenvolvimento do pensamento humano. Na realidade, é melhor dizer que a linguagem tem sido um fator favorável e não um obstáculo ao desenvolvimento do pensamento. Considerando o conjunto da história da Humanidade, toda criação nova em linguagem, isto é, toda terminologia nova representa um desenvolvimento do pensamento em nova direção. Linguagem e pensamento são fundamentalmente inseparáveis. Todo pensamento, para articular-se, só o poderá fazer através da linguagem ou do símbolo. O que não puder ser assim articulado dificilmente será considerado pensamento. Embora não possam identificar-se de maneira absoluta, a linguagem e o pensamento não podem ser separados. Não que a linguagem limite ou oculte o pensamento: ela antes o cria e desenvolve. Se considerássemos esses dois pontos ao mesmo tempo, isto é, que o pensamento se desenvolve com a linguagem e que a linguagem é uma forma de comportamento social, ficaria claro que, com exceção dos elementos experimentais, todo conhecimento é social.
Com o reconhecimento da determinação do pensamento pelas condições sociais, desenvolve-se a Sociologia dos Conhecimentos. Mas a Sociologia do Conhecimento mostrou apenas que o pensamento humano é determinado por forças socialmente visíveis ou invisíveis, sem compreender que, independentemente de todas essas forças concretas imediatas, existem também, subjacentes, outras forças sociais de natureza remota. Tais forças remotas podem ser identificadas com as relações culturais. Todo pensamento, além de influenciado por nosso ambiente social imediato, é também moldado por nossa herança cultural remota. As forças imediatas determinam a tendência de nosso pensamento, enquanto a herança cultural remota determina as formas nas quais se torna possível tal pensamento. Todas essas forças contribuem para determinar o conhecimento interpretativo. Com as diferentes interpretações, vêm as diferentes culturas. E, nascendo em culturas diferentes, as pessoas aprendem a interpretar diferentemente. Podemos, assim, recorrer à cultura para explicar as categorias, c às categorias para explicar as diferenças mentais; por exemplo: as existentes entre o Ocidente e o Oriente.
IV
Com referência aos tipos de linguagem, pode-se observar uma distinção entre "linguagem emotiva" e "linguagem referencial". A primeira é usada para despertar, com os necessários gestos e sons adequados, gestos ou atitudes mentais correspondentes na pessoa a quem se dirigem. A senda é usada para nos referirmos a coisas ou a idéias a respeito das coisas, sobretudo em termos de símbolos organizados ou de linguagem articulada. Segundo Darwin, as expressões animais sob forma de canto e de rugidos podem ser consideradas como precursoras da linguagem humana. De modo que a linguagem emotiva está mais próxima das expressões elementares e mais relacionada com as atitudes mentais, enquanto a linguagem referencial, mais próxima do pensamento abstrato, prende-se mais a construções gramaticais do que a meras alterações de sons.
Com a gramática e a estrutura da frase surge a lógica e, nessa ordem de idéias, teremos de nos deter um momento na natureza da Lógica. Os lógicos ocidentais consideram assunto pacífico que o objeto da Lógica seja o conjunto de regras do raciocínio humano. Esta suposição, entretanto, não é inteiramente justificada. Tomemos, por exemplo, a Lógica aristotélica, que se baseia evidentemente na gramática grega. As discrepâncias entre as formas gramaticais do latim, do francês, do inglês e do alemão não acarretam qualquer diferença entre a Lógica aristotélica e as regras de raciocínio próprias dessas línguas, porque elas pertencem à mesma família lingüística indo-européia. Aplicada no entanto ao pensamento chinês, essa lógica revelar-se-ia inadequada. Tal fato mostra que a Lógica aristotélica baseia-se na estrutura do sistema de linguagem ocidental. Por conseguinte, não nos é lícito acompanhar os lógicos ocidentais quando admitem como certo que sua Lógica constitui a regra universal do raciocínio humano. (6)
Na medida em que o objeto da Lógica está nas regras de raciocínio implícitas na linguagem, a expressão desse raciocínio deve ser implicitamente influenciada pela estrutura da linguagem, e as diferentes línguas terão formas de lógica mais ou menos diferentes. Daí a diferença entre a Lógica chinesa e a Lógica aristotélica. O tipo tradicional de proposição “sujeito-predicado" não existe na Lógica chinesa. Segundo a norma da Lógica ocidental, numa sentença como “A se relaciona com B", a forma não constitui uma proposição com sujeito e predicado e sim uma proposição relacional. Porém, a sentença “A está relacionado com B" vem na forma em questão, porque existe uma distinção entre o sujeito e o predicado. Para estas duas formas, entretanto, há apenas uma em chinês literário, isto é, chia lien yi. (7) Muito embora se possa dizer em linguagem corrente chia shih lien yi, a função do shih corresponde à das chamadas "palavras vazias", usadas apenas para emprestar ênfase ou dar uma entonação, sem nenhuma função gramatical. Estas duas proposições chinesas significam a mesma coisa, sem nenhuma distinção gramatical, a não ser a maior ênfase da última. Nenhuma delas constitui uma sentença com sujeito e predicado. Lien estabelece uma relação entre os dois termos chia e yi, não sendo porém uma cópula.
Com relação às "palavras vazias" como che, yeh, hu, tsai, yi, wei, e assim por diante, elas primitivamente não o eram, mas seu significado original se perdeu. A função delas se baseia em seus sons. Como esses sons não dispõem de caracteres próprios, são representados por caracteres de sons similares, denominados palavras "emprestadas". A palavra "emprestada" denota apenas o som, sem nenhuma implicação com o significado. Os caracteres originais tinham seu próprio significado. Por exemplo, wei, mencionado linhas acima, significava originalmente hou, isto é, "macaco". O que se toma emprestado é o som e não o significado da palavra original. Na fórmula "che yeh “ : che desempenha a função de uma vírgula e yeh a de um ponto final. De acordo com os tipos de linguagem acima mencionados, o referencial e o emotivo, as "palavras vazias" chinesas são palavras emotivas. Essas palavras vazias emotivas estão estreitamente ligadas à natureza ideográfica dos caracteres chineses, a respeito dos quais nos estenderemos mais para diante. É suficiente dizer agora que a Lógica aristotélica se baseia na estrutura de frases caracterizada pela forma sujeito-predicado. Basta alterar tal estrutura, para se poder questionar a validade da Lógica aristotélica tradicional. Depois destas observações preliminares, podemos prosseguir na análise das diferenças entre a família lingüística ocidental e a língua chinesa, e suas respectivas influências sobre a Lógica.
V
O pensamento ocidental, em última análise, fica adstrito à Lógica aristotélica, muito embora os recentes desenvolvimentos no próprio âmbito da Lógica tenham superado o modelo aristotélico. A moderna Lógica Matemática, por exemplo, é apenas uma extensão da Lógica Formal. Não pode, de maneira alguma, congregar todos os tipos de Lógica. O motivo que levou Bertrand Russell a opor-se à noção de substância reside exclusivamente no fato de ter ele descoberto uma nova Lógica não fundamentada na forma de proposição "sujeito-predicado". Na realidade, entretanto, esse novo sistema de Lógica aplica-se apenas, além da Matemática, às Ciências Físicas. Não é aplicável às Ciências Sociais. Por conseguinte, a Lógica tradicional ainda é a "lógica viva" no espírito dos pensadores ocidentais. Pode-se agora demonstrar que as "dez categorias" e os "cinco predicáveis" ou "categoremas" (ulteriormente modificados) da Lógica aristotélica têm como fundamento a gramática grega (as dez categorias aristotélicas seriam: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, situação, posse ou condição, atividade, passividade; já os cinco categoremas seriam gênero, espécie, diferença, o próprio, o acidente). E na medida em que a divisão e a definição derivam das "dez categorias" e dos "cinco categoremas", elas, por sua vez, ficam limitadas pela gramática grega. As "falácias" apontadas por Aristóteles são essencialmente as encontradas na língua grega.
Sem falar nos exemplos óbvios acima mencionados, pode-se considerar definitivamente que a base da Lógica aristotélica está na forma sujeito-predicado da estrutura da linguagem. Como se vê na sentença inglesa "it is", que significa "existe". O verbo "ser" tem significado de existência, e a Lógica ocidental está intimamente ligada ao verbo "ser" nas línguas ocidentais. Deve ter ocorrido, aos leitores de Platão, que o verbo "ser" é muito rico de significado. Dele decorrem muitos problemas filosóficos. Por ter o verbo "ser" um significado de existência, a "lei da identidade" é inerente à Lógica ocidental; sem ela, não pode haver inferência lógica. Por conseguinte, a Lógica ocidental pode ser qualificada de "lógica da identidade".
A lei da identidade não se limita a controlar as operações lógicas, como as deduções e inferências: influencia também os conceitos do pensamento. Como sabemos, a filosofia de Aristóteles foi possível exclusivamente em virtude da utilização da "lógica de identidade". Para ele, a substância é um simples derivado do sujeito e do verbo "ser". Deste último porque, implicando "existência", leva naturalmente à idéia de "ser", de "ente", e do primeiro porque, numa proposição com sujeito e predicado, o sujeito não pode ser eliminado. Partindo da indispensabilidade do sujeito numa sentença, vai apenas um curto passo até a necessidade de um substratum no pensamento. Quando dizemos, por exemplo, "isto é amarelo e duro", a "amarelidão" e a "dureza" constituem os chamados "atributos" de uma coisa qualquer que, no caso presente, é "isto". A "coisa" geralmente é o substratum. Com o substratum surge a idéia de "substância". A idéia de substância é, na verdade, o fundamento ou fonte de todos os outros desenvolvimentos filosóficos. Havendo uma descrição qualquer, ela passa a ser atributo. Um atributo deve ser atribuído a uma substância, de modo que a idéia de substância é absolutamente indispensável ao pensamento, assim como o sujeito é absolutamente indispensável à linguagem. Por isso, na história da Filosofia ocidental, por mais diferentes que possam ser os argumentos, favoráveis ou contrários à idéia de substância, o que constitui o problema central é essa mesma idéia de substância (8).
A palavra inglesa "it" [isto] também tem suas próprias peculiaridades. É um "in-definido". Denota alguma coisa, mas não diz o quê. Uma vez definido esse quê, desenvolvem-se o sujeito e o predicado ou, em outras palavras, a substância fica caracterizada pelos seus atributos e os atributos são atribuídos à substância. Dessa maneira, a separação entre a existência e o "quê" foi a condição fundamental que presidiu ao surgimento do conceito de substância. E tal condição só se expressa na estrutura da linguagem ocidental. Pode-se admitir então, depois de considerar as peculiaridades do verbo "ser" e da palavra "it", que muitos problemas filosóficos são apenas problemas de linguagem. (9)
FIGURA A: Conjunto ab onde a e b formam ab e ba.
FIGURA B: Conjunto a onde b está contido em a.
FIGURA C: Conjunto b onde a está contido em b.
FIGURA D: Interseção dos conjuntos a e b.
A língua chinesa tem as suas próprias peculiaridades. Em primeiro lugar, para uma sentença chinesa, o sujeito não é essencial. Ele fica muitas vezes subentendido. Numa sentença como hsueh erh shih hsi chih pu yi yueh hu ("Quando o estudamos e o revemos constantemente, não é agradável"?), ou kou chih yu jen yi wu o yeh ("Havendo dedicação à benevolência, não há maldade"), elimina-se o sujeito. Os exemplos desta espécie são numerosos demais para serem mencionados. Os dois acima foram colhidos ao acaso nos Analectos. Segundo: em chinês não existe nenhum verbo "ser" comparável à forma inglesa. O shih coloquial não transmite a idéia de existência. O wei literário, por outro lado, transmite uma idéia de ch'eng que significa "tornar-se", Mas em inglês "becoming" (tornando-se) é exatamente o oposto de "being" (sendo, ser). Uma fórmula como "che yeh " não significa algo "idêntico", não constituindo conseqüentemente lima proposição lógica, no sentido ocidental. Quando dizemos "jen che jen yeh”, não podemos afirmar que o primeiro jen é sujeito, e o segundo jen, predicado. Nessa sentença, a idéia não pode ser expressa, como é costume na lógica ocidental, pelo diagrama correspondente à Figura A acima. [(N. O.) Trata-se de uma definição por justaposição analógica: "humanidade (jen) assim como homem (jen)". Ver, a seguir, a explanação de Yu-Kuang Chu, nesta mesma coletânea. O primeiro ideograma é uma abreviatura metonímica de homem (duas pernas) seguida de dois traços que significam "pluralidade", ou, como quer Ezra pound, "o homem com todos os seus conteúdos" (humanitas); o terceiro ideograma é, mais desenvolvidamente, a mesma abreviatura para homem, "bípede" ereto sobre as pernas.].
As outras figuras B, C, D, não podem transmitir com exatidão a idéia da sentença. Pode ser qualquer das três, ou pode estar entre as três. Esta é a prova mais concludente da ausência da palavra "ser" em chinês.
VI
Vimos acima que a Lógica ocidental se baseia essencialmente na lei de identidade (10). Nela se fundamentam a divisão, a definição, o silogismo e até a conversão e a oposição. Isso tudo se correlaciona e constitui um sistema. A estrutura básica do pensamento chinês difere desse sistema. O sistema chinês de Lógica, se é que o podemos qualificar de sistema, não se baseia na lei de identidade.
Comecemos pela divisão lógica ocidental. Tendo como base a lei de identidade, rIa tem de dicotomizar-se em formas como "A e não-A", "livros literários e livros não-literários". Casos como "A e B" ou "Bem e Mal" não são dicotomias na forma porque, além de A e B, pode haver C, e além de Bem e Mal pode haver Não-Bem e Não-mal. De modo que a classificação precisa da regra de exclusão. Mas o pensamento chinês não empresta ênfase à exclusão, enfatizando de preferência a qualidade relacional entre acima e abaixo, bem e mal, alguma coisa e nada. Todos esses relativos são considerados interdependentes. Numa sentença como yu wu hsiang sheng, nan i hsiang ch'eng,ch'ang tuan hsiang chiao, ch'ien hou hsiang sui ("alguma coisa e nada geram-se um ao outro; o difícil e o fácil são reciprocamente complementares; o longo e o curto são mutuamente relativos; a frente e as costas se acompanham mutuamente"), temos uma lógica de natureza bastante diferente.
Chegamos agora à análise da definição. Na definição lógica ocidental, impõe-se fazer o sinal de equação entre o definiendum e o definiens. Por exemplo, "um triângulo é uma porção de um plano limitada por três linhas retas". Mas no pensamento chinês, nunca se cogita do problema da equação entre os dois. Por exemplo: denota-se esposa como uma mulher que tem um marido“.
Para a Lógica ocidental, isso não pode constituir uma definição, devendo ser condenado como falácia, ou por ser justamente o que deve demonstrar-se; é, porém, característico da Lógica chinesa. Chuan chu, "o uso inverso de uma palavra", nos comentários clássicos, pertence à mesma categoria. Assim também o uso "metafórico", ou chia chieh. Pode-se dizer que o conceito mais importante na China antiga dizia respeito a "céu" (t'ien .), mas de acordo com a definição no Shuo Wen, t'ien significa a "cabeça humana" ou o que fica acima da cabeça. Evidentemente, o que fica acima da cabeça talvez não seja necessariamente o "céu". Podem existir outras coisas, como nuvens, vento, a Lua, pássaros e tantas outras coisas! Esse método "indicativo" de definição difere bastante do tipo ocidental. Os exemplos dessa espécie de definição, como jen che jen yeh, yui che yui yeh, são muito numerosos nos clássicos chineses, é desnecessário reproduzi-los aqui. [(N. O.) Os exemplos dados no texto significam: "humanidade assim como homem" (humanidade é a qualidade do homem); "ser correto é análogo a ser prestativo" (correção e prestatividade correlacionam-se).]
Basta observar que, além dessa diferença do tipo de definição ocidental, um termo chinês também pode ser explicado ou indicado por outro termo de som semelhante e de significado associado. Explicar um termo por meio de outros de som semelhante seria inconcebível para a Lógica ocidental, pois essa lógica sempre visa a destacar-se da linguagem, e a explicação por meio do som é apenas lingüística, sem implicações lógicas. Em suma, pode-se até dizer com segurança que a antiga literatura chinesa não contém nenhum método de definição comparável ao do Ocidente.
Nesta altura, valeria a pena analisar os caracteres chineses fei e pu ** Numa sentença inglesa como "A is not-B" (A é não-B) ou "A is not B" (A não é B) a natureza afirmativa ou negativa é facilmente determinável. Mas dizendo em chinês chia fei yi, a negação pode referir-se tanto ao primeiro como ao segundo termo. *** A dificuldade não fica tão aparente nesta proposição simples, mas está claro que a conversão é desnecessária e a oposição impossível. Evidencia-se, portanto, no exemplo, que o pensamento chinês não se pode enquadrar na moldura da Lógica ocidental. É preciso atribuir-lhe uma designação diferente.
[**(N. O.) Fei e pu são caracteres usados para fórmulas de negação. ***(N. O.) "A" /não/ "B"; o caráter mediano, pictograficamente analisado, representa dois lados mutuamente opostos.]
Pode-se propor, para esse tipo de lógica, o nome de "lógica de correlação" ou de "lógica da dualidade correlativa". Semelhante tipo de lógica enfatiza a significação relacional entre "algo" e "nada", entre "acima" e "abaixo", e assim por diante. Está adequadamente expresso no Livro das Mudanças. Embora os arqueólogos modernos não coloquem o Livro das Mudanças entre os registros mais antigos, não se pode afirmar que não contenha o pensamento tradicional da China. Aqui, a nota predominante é o assim chamado i yin i yang chih wei tao ("O princípio negativo e o positivo constituem o que se chama tao ou Natureza".) Com o yang, ou princípio positivo, pressupomos o yin, o ou princípio negativo, e com o yin pressupomos o yang.
[(N. O.) Ambos os caracteres têm como elemento comum, à esquerda, o radical 170, que representava originariamente um "outeiro" uma elevação em "declive", e, por extensão, "fertilidade", "abundância"; em yang temos, à direita, o "sol" sobre o traço do horizonte, encimando uma "asa" (raios do sol, o lado ensolarado do outeiro, sul); em yin temos, à direita, dois signos superpostos que, originariamente, representavam "nuvens", "nebulosidade" (o lado sombrio do outeiro, norte)].
Para completar-se, um depende do outro. Outros exemplos como kang e jou; chin e t'ui; chi e hsi ung são exatamente paralelos (11). Se pretendêssemos adotar uma terminologia muito em voga, diríamos que esta maneira de pensar é uma ilustração da "lógica dialética". Tal expressão é, porém, muito ambígua, e só poderia ser adotada aqui com exclusão de suas alusões históricas. Teremos de limitar-nos a observar que as maneiras chinesas de pensar diferem das que se caracterizam pelo uso da lei de identidade. Sem definir os diferentes termos empregados, é impossível falar inteligivelmente no Ocidente. Mas a linguagem chinesa, caracterizando-se pelo uso da lógica de correlação, nada tem a ver com a identificação. Vale-se antes dos antônimos para completar uma idéia.
A oposição como meio de expressão não é usada somente em proposições como "morte sem trespasse", "um grande ruído, porém dificilmente audível", "o maior de todos os presságios sem ser visível", "não-resistência significa força", ou "a elocução mais fluente parece gaguejar"; é usada também para denotar um termo isolado. No Shuo Wen, por exemplo, "saída" significa "entrada" e "desordem", "ordem". Neste caso, é melhor não considerar que as palavras tenham significados contraditórios, porque é o significado, e não a palavra, que demanda o seu contrário para uma ilustração completa da conotação. Por exemplo ch'u ("saída") exige chin ("entrada"), Sem chin não pode haver ch'u. Outros exemplos, como luan" ("desordem") e chih ("ordem"), kung ("tributo") e tz'u ("dom") são da mesma natureza. A explicação da palavra “vender" também é dada através de seu oposto "comprar", "Vender" e "comprar", contrapondo-se uma à outra, se tornam mais claras, porque "comprar e vender" constituem uma mesma transação, encarada dos pontos de vista diferentes do comprador e do vendedor. Por aí se vê que o pensamento chinês não se baseia na lei de identidade, tomando pelo contrário como ponto de partida a orientação relativa, ou melhor, a relação dos opostos, Claro que esse tipo de pensamento constitui um sistema diverso, provavelmente relacionado com a natureza dos caracteres chineses, Por serem ideográficos, os caracteres chineses enfatizam os signos, ou símbolos dos objetos. O chinês interessa-se a,penas pelas inter-relações entre os diferentes signos, sem preocupar-se com a substância que lhes fica subjacente. Daí a consideração relacional ou correlacional.
VII
A Natureza ideográfica dos caracteres chineses influencia não somente a estrutura da linguagem chinesa, mas também o pensamento ou filosofia do povo. O Livro das Mudanças pode ser considerado conto o mais perfeito dos exemplos. Muito provavelmente, as palavras eram a princípio forjadas como símbolos-emblemas. Por isto, está escrito: "O sábio dispunha diagramas (kua) de modo a ver a significação de cada signo (hsiang).
Embora não se justifique inteiramente a afirmação de que os diagramas são os caracteres chineses originais, pode-se tomar pelo menos corno certo que a sua natureza se assemelha à dos caracteres chineses. A criação dos diagramas atendia aos objetivos divinatórios, mas devem ter existido limites preestabelecidos para as possíveis combinações destinadas a tais objetivos. Cada combinação é um signo possível. "O céu indica a boa e a má sorte por meio de signos, cuja significação é decifrada pelos sábios”. Esses "sábios" devem ter sido os heróis da história cultural, como Pao Hsi Shih, a quem foi atribuída a invenção dos diagramas. Pode-se dizer que os signos não simbolizam apenas algo externo, mas indicam também as possíveis modificações. Por exemplo: foi a partir do diagrama yi que se inventaram os implementos agrícolas, e o diagrama li inspirou a invenção das redes de pescar. O Dr. Hu Shih disse muito acertadamente: "Confúcio pensava que, com a gênese dos signos, vieram as coisas. Os signos são os arquétipos primevos, segundo os quais foram modeladas as coisas".
De acordo com o antigo pensamento chinês, primeiro vieram os signos e depois engendraram-se e desenvolveram-se as coisas. Essa afirmação difere bastante da ocidental. Embora as idéias platônicas apresentem uma semelhança superficial com ela, é preciso lembrar que as "idéias" de Platão têm existência própria, o que já não é verdade no caso dos oito diagramas. Como vimos, o pensamento ocidental está firmemente baseado na idéia de substância. Há, por conseguinte, necessidade de um substratum, e o resultado final dessa corrente de pensamento dá origem à idéia de "matéria pura". Uma das características da Filosofia ocidental é penetrar nos bastidores de uma coisa, enquanto a característica do pensamento chinês é a atenção exclusiva às implicações correlacionais entre os diferentes signos, como yin e yang, ho ("involução") e p'i ("evolução"). É também em virtude desse fato que não existe nenhum vestígio da idéia de substância no pensamento chinês. Observe-se que a presença de uma idéia dá origem a formas de palavras para expressá-la. Na China, não existe a palavra substância. Palavras como l'i ("corpo") e yung ("função"), neng ("conhecendo") e so ("conhecido"), quando usadas para expressar sujeito e objeto, decorrem da tradução das escrituras budistas. Para o espírito chinês, não faz a menor diferença que exista ou não um substratum supremo subjacente a todas as coisas. Por serem ideográficos os caractcres chineses, o pensamento chinês só toma conhecimento dos signos e das relações entre eles.
Deve ter ficado evidente, até agora, que não somente existe uma estreita relação entre a Lógica e a linguagem, como também que um sistema lógico deve pressupor uma filosofia, isto é, uma cosmologia e uma filosofia de vida. A Cosmologia chinesa pode ser chamada "significismo" ou "pressagismo". O caráter chinês hsiang, que se traduz por "signo", tem todos os significados das palavras "fenômeno", "símbolo" e "presságio", devendo-se, porém, observar' que por trás de hsiang não estão implícitas determinadas coisas concretas. Seu significado diz respeito apenas aos assuntos humanos. De modo que um signo tem como objetivo transmitir lições ao povo e, conseqüentemente, todos os fenômenos do firmamento, como as estrelas e os cometas, são considerados maus presságios. A Cosmogonia chinesa, caracterizada pelo augurismo, é essencialmente um guia prático para a existência humana. Também neste ponto ela difere da ocidental. Pode ser verdadeiro que na Filosofia do Ocidente a Cosmologia represente um passo preliminar em direção à filosofia de vida, mas as duas não podem ser confundidas. O pensamento chinês, pelo contrário, não estabelece nenhuma distinção entre o cosmo e os problemas todos da existência humana.
De acordo com a tradição ocidental, a Filosofia pode ser classificada em Cosmologia, antologia e filosofia de vida. Na China, há apenas a Cosmogonia e a filosofia de vida, sem antologia nem Cosmologia propriamente dita e mesmo a Cosmogonia é compreendida na filosofia de vida. Isto, em virtude do descaso pela lei de identidade por parte dos pensadores chineses. Até certas expressões contidas no Lao Tzu como t'ien ti ken (céu, terra, raiz) e tao chi (caminho, curso) dizem respeito apenas à origem do universo. Com o desenvolvimento posterior no Chuang Tzu, uma sentença como: "que objeto seja feito ou não o seja; ele permanece o mesmo", presta-se a ser freqüentemente apontada como semelhante à "substância" ocidental. Não obstante a meta do Chuang Tzu é exclusivamente "o grau adequado de ajustamento". Por conseguinte, sua identificação do cosmo com o eu é apenas uma espécie de experiência mística. Em outras palavras, ele se interessa mais pela "participação" ou "transdução" (12) que pelo problema da existência. O livro Chuang Tzu tem uma origem mista. Não é improvável que os sábios de Wei e Chin tenham feito inserções e alterações; é evidente, porém, que as concepções do autor são mais ou menos idênticas às dos hindus.
O conhecimento subseqüente, tardio, do problema da substância por parte dos chineses deveu-se à influência da Índia. Os sistemas éticos das dinastias Sung e Ming não passam de reações contra o Budismo. Afirma-se com freqüência que a Filosofia ocidental teve início com a noção de substância, de que se libertou mais tarde, enquanto a China originalmente a desconheceu, tendo-a adquirido posteriormente. Essa aquisição se fez através do contato cultural, fato que suscita problemas cuja discussão não cabe aqui. O nosso problema é saber se existem ou não forças originais que ainda servem de base ao pensamento chinês; saber, por exemplo, se o espírito chinês ainda se caracteriza pelo desinteresse face à noção de substância. Tudo leva a crer que, a despeito das inúmeras influências ocidentais, é o que ainda acontece.
VIII
Como a noção de substância se relaciona com a noção de causalidade, as Ciências ainda são determinadas, em sua maior parte, pelo conceito de causalidade. Nesta altura, é preciso dizer que Kant foi o primeiro a revelar o mistério do pensamento ocidental. Ninguém jamais o superou, nem mesmo em nossos dias. Ele coloca a idéia de reciprocidade entre as idéias de substância e de causalidade de modo a tornar as três interdependentes. Por conseguinte, onde há causalidade deve haver reciprocidade, e onde há reciprocidade deve haver substância. Nenhuma das três pode ser dispensada. Daí podemos depreender que a idéia de causalidade deriva da de substância. Esta mesma causalidade, posteriormente combinada com a substância, dá origem à idéia do átomo. Nisto se baseia a nossa tese de que, no pensamento ocidental, religião, Ciência e materialismo são interdependentes, posição que não é adotada pelos atuais pensadores chineses.
De um modo geral, existem no Ocidente duas formas de religião, a do tipo grego arcaico e a do tipo cristão. A primeira nem foi monopolizada pelos gregos, nem é exclusivamente ocidental. Assemelha-se à da existência chinesa primitiva. A tal respeito, cumpre lembrar que na mitologia grega existem potencialidades materialistas. E a religião primitiva da China, como a de todas as sociedades primitivas, ligava-se estreitamente à Natureza. Mas, ao desenvolver-se a Teologia, foi preciso dar-lhe como fundamento a idéia de substância. A idéia de um Ser Supremo ou Criador está intimamente relacionada com a idéia de substância. Além disso, ela também se prende estreitamente à noção de identidade. A Metafísica, que se baseia na substância, é religião. Uma Realidade Suprema é, em essência, Deus. Pode-se assim sustentar que a filosofia metafísica ou ontológica é um tipo de pensamento religioso. A Lógica caracterizada pela lei de identidade serve de fundamento para esse tipo de raciocínio religioso. Finalmente, pode-se dizer que a antologia em Filosofia, a idéia de Deus em religião, e a lei de identidade em Lógica são, essencialmente, uma coisa só.
Spengler (13) mostrou que "não existe Ciência Natural sem uma religião anterior". Whitehead também sustenta que o desenvolvimento da Ciência moderna relacionou-se intimamente com as convicções religiosas da Idade Média. Na medida em que a Ciência está relacionada com a religião, deve-se compreender que na cultura ocidental ambas representam apenas duas correntes diferentes de uma mesma fonte. Não são tão opostas quanto geralmente se supõe. Isto, porém, não deverá ser interpretado em termos causais; uma não determina a outra, sendo ambas desenvolvimentos paralelos de uma fonte comum.. Dessa maneira, embora a Ciência e a religião superficialmente se contraponham, a natureza íntima de ambas não é oposta.
Além disso, Spengler nos fez notar que a Cosmologia católica e o materialismo não são coisas diferentes e sim uma mesma coisa, expressa em terminologias diferentes. Deixando de lado o Catolicismo, podemos dizer que o pensamento materialista se fundamenta na noção de átomo, e que a noção de átomo está relacionada com as noções de substância e de causalidade. Pode-se afirmar que existem, no pensamento ocidental, três categorias fundamentais: substância, causalidade e átomo. A religião tem como fundamento a substância. Com a causalidade, desenvolveu-se a Ciência, e dos átomos decorreu o materialismo. Por trás dessas três categorias, há uma outra a ligá-las: a da identidade. O filósofo francês Meyerson prestou-nos um serviço quando observou que todas as teorias e investigações científicas dizem respeito à identidade (14). Compreende-se facilmente que com a identidade deve haver substância; com a substância, deve haver causalidade; e o átomo fica entre as duas. Assim, o pensamento ocidental tem essencialmente como base essas quatro categorias. Sem compreender a importância e a prioridade de tais categorias, não nos é possível chegar a compreender a fundo a cultura e o pensamento ocidentais.
Por outro lado, a cultura chinesa não tem a menor relação com as categorias acima mencionadas. Comecemos pela vida religiosa na China antiga. Ela não era muito diferente da dos antigos gregos. Contudo, as concepções religiosas não se associavam, na China, aos rituais de adoração e à instituição de templos oficiais. Não é certo que tenham existido outras divindades, antes do aparecimento do conceito de Céu. Mas, mesmo no que diz respeito ao Céu e a Deus, os chineses jamais cogitaram deles de maneira primordial. Quando falamos em Céu, temos em mente apenas a Providência, vista simplesmente como a manifestação do Céu. Em outras palavras, os chineses se interessam pela vontade do Céu, sem se deterem de maneira especial no próprio Céu, porque, de acordo com o ponto de vista chinês, a vontade do Céu é o próprio Céu, e cogitar do Céu sem dar atenção à sua vontade seria logicamente inconcebível na China. O Céu e a vontade do Céu são uma coisa só. Não há um primeiro, que é o Céu, e depois a manifestação de sua vontade. Sendo idênticos o Céu e sua vontade, os chineses jamais consideraram o Céu como uma entidade, e não sendo uma entidade, tampouco é uma substância. De modo que o Céu chinês não tem nenhuma relação com a substância ocidental. A adivinhação serve de ponte, por sobre o abismo, entre o Homem e o Céu. Os chineses só estão interessados em conhecer a vontade do Céu, a fim de buscar a boa sorte e de evitar o infortúnio. Quanto à natureza do Céu como tal, eles se mantêm indiferentes. Esse fato demonstra que os chineses não aplicaram a categoria de substância à noção de Céu e não consideraram o Céu como suprema essência fundamental do universo.
Outro aspecto interessante é o de que a maioria das formulações referentes à vontade do Céu no Shang Shu nada mais são do que indicações sobre a transferência do poder político entre as diferentes dinastias ou de uma dinastia para outra. O poder político alienava-se na China de duas maneiras: a hereditária e a revolucionária. Quando era violada a lei hereditária, originava-se uma revolução. Os casos de transferência hereditária não suscitavam conturbações, mas precisava haver uma justificativa para as revoluções, e essa justificativa era encontrada na vontade do Céu. Uma transferência revolucionária acarreta grandes conseqüências políticas e sociais. O fato de ela ser atribuída à vontade do Céu constitui uma prova de que toda as grandes mudanças ficam além do controle da vontade humana, e de que a vontade do Céu só se manifesta na vida política e social. É exatamente o oposto do que acontece no Ocidente, onde o conceito de substância serve de fundamento para a ênfase atribuída ao pensamento religioso.
Sob este aspecto, pode-se dizer alguma coisa a respeito das transformações e influências da vida religiosa na China e no Ocidente. No Ocidente, o tipo grego de vida religiosa chegou ao fim por ocasião da unificação do Império Romano, mas a nova forma de religião sobreviveu à decadência do feudalismo. Conseqüentemente, religião e política representam, no Ocidente, duas correntes. A vida religiosa na China, em muitos pontos semelhante à da Grécia, constituiu um poderoso esteio do feudalismo, que era similar ao europeu. Na época do Ch'un Ch'iu, o feudalismo foi abalado, o que sem dúvida alguma repercutiu no pensamento do povo. Daí certas expressões como: "O caminho do Céu é distante, o caminho humano é próximo"; "O que disse o Céu? No entanto as quatro estações funcionam regularmente”. O Confucionismo, sem eliminar a doutrina do Céu, deixou-a fora dos assuntos humanos. Esse tipo de pensamento tendia a reduzir a influência das convicções religiosas na China, e mais tarde houve apenas política e não religião. A mesma tendência se manifestou no pensamento, e podemos recapitular dizendo que a lei de identidade na Lógica, a proposição tipo "sujeito-predicado" na estrutura da frase e a categoria de substância em Filosofia têm, como fundo comum, o pensamento religioso. Isto é característico da cultura ocidental. A lógica de correlação, a classificação não-exclusiva, a definição analógica têm, como fundo comum, o pensamento político. O que é característico da cultura chinesa.
IX
Esses dois tipos de pensamento diferem não somente quanto às respectivas categorias e leis básicas de Lógica, como também quanto às atitudes. Ao propor uma pergunta a respeito de uma coisa qualquer, é característico da mentalidade ocidental interrogar: "O que é?" e em seguida: "Como se deveria reagir diante disso?" A mentalidade chinesa não dá ênfase a o que e sim ao como. O pensamento Ocidental se caracteriza pela "atitude de prioridade do o quê" e o chinês pela "atitude de prioridade do como". Em outras palavras, os ocidentais usam o "quê" para personificar e absorver o "como". O "como" deve ser determinado pelo "quê". Os chineses, por sua vez, usam o "como" implicando o "quê". O tipo de pensamento do "quê" pode-se desenvolver passando da religião para a Ciência. É esta uma das características do pensamento científico. O tipo de pensamento que se caracteriza pela ênfase no "como" só se pode desenvolver na esfera sócio-política, particularmente em conexão com o problema da Ética. O desinteresse pelo "quê" responde pelo desinteresse pela Epistemologia, ou pela ausência desta na China.
Pode-se assim explicar que o pensamento chinês sempre se volte para os assuntos humanos, descurando a Natureza. Alega-se com freqüência que na Filosofia chinesa existem controvérsias entre o nominalismo e o realismo e o problema da relação entre o Homem e a Natureza, implicando-se com isto que a Filosofia chinesa assemelha-se à Filosofia ocidental. Não é o que acontece, em verdade. O interesse chinês pelo problema do nominalismo e do realismo, assim como pelo problema da relação entre o Homem e a Natureza, volta-se para o pensamento sócio-político e para a filosofia de vida.
O pensamento chinês e o ocidental também diferem quanto à questão da inferência. O silogismo, cujo fundamento está na lei de identidade, é a forma de inferência na Lógica ocidental, enquanto os chineses recorrem à analogia em lugar da inferência. A fórmula acima mencionada, jen che jen jeh (Humanidade assim como Homem), representa um tipo de raciocínio analógico. Outros exemplos, colhidos em Mêncio, vêm mais a propósito; a saber: "A bondade da natureza humana (é) como a tendência da água a descer pela vertente"; e: "Vida não significa Natureza, assim como branco significa branco? A brancura de uma pena branca não significa a brancura da neve branca? E a brancura da neve, não significa a brancura do jade branco?...E se assim é, será a natureza do cão semelhante à do homem?" Em Mêncio, esses exemplos são por demais numerosos para se fazerem necessárias outras citações. Em seu Mencius on lhe Mind, I. A. Richards contrapôs esse tipo de argumentação ao ocidental. O tipo chinês pode ser qualificado de "lógica de analogia". Essa lógica, na realidade, embora não se possa aplicar adequadamente ao pensamento científico, é amplamente utilizado nas argumentações sócio-políticas. A argumentação analógica é, de fato, uma das características do pensamento político. Pode-se considerar o marxismo como um dos melhores exemplos. A fórmula "tese-antítese-síntese", a ser aplicada a todo processo histórico, é de natureza analógica. Da mesma maneira podemos considerar a transformação da semente em árvore como a antítese da semente. Desta forma, também a teoria da luta de classes constitui uma argumentação por analogia. Sem entrar aqui na crítica ao que há de falacioso no marxismo, será proveitoso observar neste ponto que a filosofia marxista é de natureza política.
X
O tipo de pensamento que se interessa antes de tudo pela política também pode apresentar algumas conexões com a linguagem. Assim, Confúcio era favorável à "retificação dos nomes" ou cheng ming. A retificação dos nomes não foi defendida por Confúcio por motivos de lógica, e sim como um recurso para manter a ordem da sociedade. Daí a afirmação: "Quando os nomes não são corretos, a linguagem não está de acordo com a verdade das coisas. Quando a linguagem não está de acordo com a verdade das coisas, os negócios não podem ser empreendidos com êxito. Quando os negócios não podem ser empreendidos com êxito, os bons usos e a música não prosperam”. A função da retificação dos nomes é discernir o que fica em cima e o que fica em baixo, é determinar o superior e o inferior e distinguir o bem do mal. Sua meta está nos assuntos humanos, mais do que na lógica, Por exemplo, matar um rei é qualificado de crime ou shih, ficando aí implícita uma violação do superior pelo inferior. A morte de um inferior por um superior é denominada execução ou chan, o que implica que o executado foi justamente punido, de acordo com a lei. Com referência ao imperador, viajar é hsing ou "favorecer". "Vir diretamente" é Iai e "vir para instalar-se" é Iai kuei. Ir dos distritos locais para o governo central é "subir" ou shang, como nas expressões "subir em direção ao oeste" e "subir em direção ao norte". E ir do governo central para os distritos locais é "descer" ou hsia. É como em "descer para o sul" ou "descer para o leste". Existem distinções parecidas em inglês, como se pode verificar nas traduções ("to go up", "to go down"), mas a ênfase que se lhes empresta não é tão óbvia e sistemática. Para o Dr. Hu Shih, essas distinções todas são apenas derivadas das partes do discurso com funções gramaticais. Observa ademais: "Ao retificar os nomes, Confúcio tornou-se o primeiro lógico da China”. Mas, como vimos, não é isto o que acontece.
Poderíamos encontrar outras provas para efeito de um paralelo com as transformações gramaticais no Ocidente. Tomemos a palavra inglesa sense, por exemplo. Suas modificações podem assumir as seguintes formas: senses (senso, juízo), sensation (sensação), sensational (sensacional), sensible (sensato), sensibility (sensibilidade), sensum, sensa (sentimentos, pensamentos), sensationalism (sensacionalismo, sensualismo), senseless (sem sentido), sensitive (sensitivo), sensitivity (sensibilidade), sensibly (sensatamente), sensory (sensorial), sensorium (sensório) etc. Todas essas formas derivam de uma mesma raiz. Em virtude do uso de flexões, casos, ou outras formas gramaticais, a "forma" constitui um elemento essencial para o pensamento do Ocidente. A despeito do fato de a concepção aristotélica de "forma" poder ser diferente da baconiana, e da "forma" de Bacon poder -diferir da de Kant, pode-se observar que existe em todos esses pensadores algo de básico e uniforme, a saber: a ênfase na idéia de "forma". Os caracteres chineses são ideográficos; apesar de terem radicais ou p'ien p'ang, não têm raízes. Os radicais são utilizados apenas com finalidade classificatória; por exemplo, certas palavras pertencem ao domínio da água e outras ao domínio das plantas. Sempre que aparece uma idéia nova, é preciso inventar uma palavra nova, a qual não será simplesmente derivada de uma raiz. Os ideogramas chineses não ficam sujeitos a transformações gramaticais; não há flexão, declinação nem conjugação.
Como a criação de palavras novas deve-se basear nas necessidades da sociedade, será interessante observar que a maioria dos termos chineses vem de dois setores ou domínios: um deles, o parentesco, ilustrado por po (irmão mais velho do pai), shu (irmão mais novo do pai), t'ang (primo por parte de pai), piao e yi nu outros tipos de primos; os outros vêm do domínio da Ética, ilustrados por chung (lealdade), hsiao (piedade filial), lien (frugalidade nas necessidades) e chien (frugalidade nos dispêndios). Todas as delicadas nuanças da terminologia chinesa nesses dois campos poderão ficar agrupadas nos termos ingleses brothers (irmãos), uncles (tios), cousins (primos), frugality (frugalidade). Esse agrupamento se justifica no Ocidente, mas na China todas as diferenças têm de ser preservadas em virtude de seu significado social e todos os finos matizes da terminologia chinesa podem ser atribuídos à retificação dos nomes.
Seria preciso explicar também por que motivo o tipo de pensamento que se volta para a política empresta maior valor à lógica de correlação. A razão está no fato de que, nos fenômenos sociais, tudo pode ser considerado em termos de correlações, como macho e fêmea, marido e mulher, pai e filho, o governante e o governado, o civil e o militar, e assim por diante. É curto o passo que leva deste domínio para o da Cosmologia. Por exemplo: nós dizemos "estando o Céu em cima e a Terra embaixo, o universo está determinado". Além disso, as questões políticas podem ter implicações cosmológicas; por exemplo, dos princípios positivo (yang) e negativo (yin) do cosmo podemos extrair o princípio de evolução e involução que está por trás do universo e das questões humanas, e que se desenvolverá finalmente em conceitos corno os de governo adequado ou desordem nos assuntos políticos. Será conveniente lembrar que esse tipo de raciocínio é característico do pensamento político e social.
Até mesmo aí, entretanto, existe uma diferença entre a China e o Ocidente. É bem verdade que, sendo essencialmente uma filosofia voltada para as questões sociais e políticas, o marxismo eliminou a lei de identidade e propôs a lei da oposição no raciocínio. Mas o que o separa do pensamento chinês é o fato de que, enquanto o marxismo enfatiza a oposição e portanto a luta de classes, o pensamento chinês enfatiza o resultado ou ajustamento dessa oposição. Quando Mêncio afirma: "os trabalhadores intelectuais governam enquanto os trabalhadores manuais são governados", a ênfase está na divisão do trabalho, tornando-se assim possível a ajuda mútua, tal como ele a concebia. Em contraposição à lógica de correlação dos chineses, o tipo marxista de lógica pode ser qualificado de "lógica de oposição".
XI
Estamos agora em condições de discutir a relação existente entre as categorias lógicas, por um lado, e a natureza humana, por outro. Face a um dado acontecimento, podemos ter interpretações diferentes. Por exemplo, o pôr-do-sol é um fenômeno observado, com relação ao qual podem existir diferentes interpretações, a saber: o Sol descamba por trás da Terra em direção ao oeste, ou a Terra gira para leste. Por conseguinte, identidade, substância e causalidade são interpretações, ou conceitos empregados no ato da interpretação, e esses mesmos conceitos são de natureza interpretativa.
Pode-se perguntar, porém, de onde surgem tais interpretações, e corno é que se tornam válidas? Podemos ir buscar a terminologia em Pareto, sem acompanhá-lo nas demais implicações. De acordo com ele, há "resíduos" e "derivações". Os primeiros são os impulsos emocionais e os últimos as manifestações exteriores ou racionalizações. É possível uma distinção entre dois tipos de resíduos, isto é, o "resíduo de persistência" e o "resíduo de dominância". A partir do "resíduo de persistência", desenvolve-se o pensamento religioso; e a categoria de substância, a proposição sujeito-predicado, a Lógica caracterizada pela lei de identidade assim como o decorrente conceito de causalidade constituem derivações desse "resíduo de persistência". Do "resíduo de dominância" vêm o pensamento social, as teorias políticas e as instituições concretas delas decorrentes. Todas as derivações vêm de resíduos cujas raízes se encontram nos impulsos emocionais. Para exprimir esses impulsos emocionais existem todos os desenvolvimentos, ou derivações, políticos e religiosos. Aos que se interessam pelo estudo da cultura não é lícito esquecer que esses resíduos, a persistência e a dominância, são características universais do Homem. E deve-se ter como certo que não é apenas nos campos político e social mas também nos campos lingüístico e mental que se podem observar as características universais do Homem. O motivo da existência de diferenças culturais entre a China e o Ocidente parece estar simplesmente no desenvolvimento e no subdesenvolvimento das derivações segundo certas linhas de força. Não que os chineses sejam destituídos de "resíduo de persistência" e sim que, em sua cultura original ou em suas derivações, esse resíduo não se desenvolveu. Mas, uma vez em contato com a Índia, os chineses receberam-lhe calorosamente a religião, porque o Budismo suscitou o "resíduo de persistência" adormecido em sua própria natureza. Sendo a cultura chinesa subdesenvolvida sob este aspecto, o Budismo encontrou na China uma segunda pátria.
Também não se pode dizer que os ocidentais não tenham "resíduo de dominância". A Filosofia ocidental é indiscutivelmente uma transformação da religião. Como sabemos, em seu estudo do conhecimento, Kant ofereceu uma justificativa teórica para a existência da substância. Mas sua Crítica da Razão Pura deu margem à sua Crítica da Razão Prática. Se no conhecimento a substância não fica revelada, é certamente na conduta que ela se realiza. Sob esses aspectos, embora tentando analisar o pensamento ocidental, Kant fica por ele limitado. Sua atitude, não nos esqueçamos, é a atitude ocidental tradicionalista: a utilização da religião como recurso indireto para abordar a sociedade e a política. Partindo daí, observe-se que toda a Metafísica ocidental é de natureza essencialmente sócio-política. Mas essa relação não é assim tão evidente. Um dos méritos do marxismo foi captar com clareza tal aspecto. É pena, entretanto, que sua concepção seja por demais estreita, ao tomar as classes pela sociedade. A Metafísica foi considerada corno mera racionalização do pensamento social e político. O aspecto puramente teórico da Filosofia ocidental é tão-somente uma forma disfarçada do pensamento sócio-político. Esta observação talvez pareça exagerada mas, na realidade, a Filosofia faz parte da cultura e a cultura sempre constitui uma configuração total. Política, sociedade e existência humana não podem ser separadas da Filosofia. Alega-se com freqüência que a Filosofia se interessa antes de tudo pelo desenredar dos segredos do universo, mas esse ponto de vista parece bastante superficial. São geralmente duas as atitudes assumidas diante dos problemas sociais e políticos do presente. Uma delas consiste em procurar conservar, a outra em modificar as condições. O marxismo talvez tenha ido longe demais ao identificar idealismo e conservadorismo, materialismo e revolucionarismo, mas não se pode negar o fato de que idealismo e materialismo estejam ligados à sociedade e à política.
É sobre esta base que as concepções da escola de Viena, as de Carnap, por exemplo, deveriam ser reconsideradas. Carnap considera "nonsense" todas as proposições filosóficas, visto não serem elas suscetíveis de verificação. Não é necessário lembrar que o conhecimento humano contém muito coisa não suscetível de ser verificada; e não se pode dizer que o que não é verificável não seja verdadeiro. A célebre frase de Rousseau "O homem nasce livre" não pode ser verificada. Todavia, ela contribuiu para a Independência Americana e para a Revolução Francesa. O pensamento social não se interessa pela verificação. Não é verificável, mas é realizável. É este o fundamento da "Determinação do Homem a combater a Natureza", como se diz na China. O pensamento metafísico ocidental é tão-somente uma teoria sócio-política sob outra forma. E a Filosofia tem, por conseguinte, essa natureza não verificável, mas realizável.
Antes de concluir o presente ensaio, terei de formular sucintamente a minha teoria pessoal do conhecimento. A meu ver, o conhecimento humano deve ser examinado em quatro grupos, cada um deles penetrando os demais e deles dependendo. O primeiro é o da "estrutura" externa, responsável pela sensação imediata. Sendo o mundo externo simplesmente "estrutura", só podemos conhecer-lhe as "propriedades matemáticas", para nos valermos de uma expressão de Russell. Da sua natureza qualitativa, nada sabemos. Deve-se, porém, salientar que essas propriedades matemáticas não são estáticas e rígidas, e sim flexíveis e modificáveis. O segundo grupo é o dos sensa, para empregar a terminologia do neo-realismo. Nossa sensação é uma coisa curiosa. Embora suscitada externamente, ela difere, quanto à natureza, do universo externo. Pode-se dizer que entre ambos existe correspondência mas não identidade. Por natureza, a sensação é algo independente. O terceiro grupo consiste de "construções". Os objetos geralmente percebidos, como mesas, cadeiras, casas, amigos, etc. são "construções". Essas construções são com freqüência e ingenuamente consideradas como coisas que têm uma existência própria e independente. São, porém, na verdade, coisas construídas através das percepções do observador. O quarto grupo é o que já analisamos como "interpretação". Esses quatro grupos são interdependentes. (15) Comparativamente falando, os dois primeiros se relacionam mais estreitamente com o mundo exterior, sendo, por conseguinte, mais objetivos, enquanto os dois últimos se relacionam mais estreitamente com o mundo interior, sendo portanto mais subjetivos. O processo que leva dos dois últimos aos dos primeiros pode ser denominado processo de "ligação", enquanto o oposto pode ser designado como processo de "desligamento". O conhecimento teórico é um processo de desligamento. Depois do desligamento, o conhecimento teórico ainda permanece como uma base invisível para o conhecimento positivístico. O problema da validade só se manifesta depois do processo de desligamento. Em virtude da possibilidade da existência de diversas interpretações, suscita-se a questão de saber qual a correta e qual a errônea, ou qual é razoável e qual não o é. (Na realidade, do ponto de vista cultural, existe apenas diferença, e não certo ou errado.) E esta é uma das características do conhecimento teórico, ao qual pertencem a Filosofia, o pensamento social, as teorias políticas e todas as convicções religiosas.
Para concluir, podemos dizer que analisamos, pela urdem, os seguintes pontos, a fim de mostrar que a cultura humana (16) constitui um todo. Primeiro, o que é Filosofia ocidental? Segundo, qual a relação entre linguagem e pensamento? Terceiro, qual é a relação entre Lógica e Filosofia? Quarto, qual a relação entre Filosofia, sociedade, política e religião? Quinto, qual a relação entre conhecimento teórico e conhecimento perceptivo? Sexto, qual a relação entre natureza humana e cultura (entre "resíduos" e "derivações")? Sétimo, qual a diferença entre os processos mentais chineses e os ocidentais? Todas essas questões foram analisadas do ponto de vista filosófico; se elas tiverem algum significado para a Sociologia, sua avaliação e crítica deverão caber aos sociólogos.
Se o leitor tiver tido a paciência de acompanhar toda a nossa análise, talvez lhe tenha parecido que o autor descambou para o ecletismo. Há, porém, ecletismo e ecletismo. Se o ecletismo se revelar útil, oferecendo uma visão mais sintética de todos os problemas tratados, não terão cabimento muitos pedidos de desculpas.
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1. Confrontar com a análise de Charles Morris dos "signos pós-lingüístico em seus "Comments on Mysticism and Its Language", ETC., 9-3-8, outono de 1951. N. de TC.
2. Vilfredo Pareto, The Mind and Society, tr. Andrew Bongiomo e Arthur Livingston (Nova Iorque, 1935), I, 8 ss.
3. Rudolf Carnap, The Logical Syntax of Language (Londres 1937), p. 277.
4. Alfred North Whitehead, Adventures in Ideas (Nova Iorque 1933), c. 9.
5. Samuel Alexander, Space, Time and Deity (Londres, 1920).
6. Consultar S. I. Hayakawa, "What is Meant by Aristotelian Structure of Language?" ETC., 5.225.230, Verão 1948. N. de ETC.
7. O primeiro caráter é usado para indicar "A", o terceiro, para indicar "B" (numa enumeração); o caráter do meio significa "relacionar", "conectar"; uma "carruagem" sobre um "pé" indicando movimento, no pictograma original.
8. Sobre a estrutura sujeito-predicado, consultar A. Korzybski, Science and Sanity: An introduction to Non-Aristotelian Systems and General Semantics), (Lancaster, Pa., 1933), pp. 62, 85, 92, 131, 189, 190, 224, 306, 371. Sobre a "substância", consultar A. J. Ayer, Language, Truth and Logic (Nova Iorque, 1936), pp. 28, 32-3, 50, 195.
9. Este ponto de vista difere do da escola de Viena no sentido de que, para aquela escola, uma vez claramente definida a linguagem, alguns problemas deixam de existir. A meu ver, entretanto, existem problemas decorrentes da linguagem que indicam impulsos emotivos, os quais não podem ser eliminados.
10. As regras da "contradição" e do "terceiro excluído" são simples corolários da lei de identidade.
11. Emotivo e fleumático, afirmativo e resignado, feliz e infeliz.
12. São termos colhidos em Jean Piaget, The Child's Conception of the World (Nova Iorque e Londres, 1929).
13. Oswald Spengler, The Decline of the West (Londres, 1926-28), I, 380.
14. Émile Meyerson, ldentity and Reality (Nova Iorque, 1930).
15. (Confrontar Korzybski, op. cit., Capítulo XIV, "On Abstracting". Nota de ETC.) 16. A cultura, em nossa análise, se restringe ao aspecto mental. Estando fora do escopo deste ensaio, seu aspecto material não é aqui analisado. Não se deve, entretanto, considerar como implícito que a cultura não tenha aspectos materiais.
[Fim]


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