Lendas e Mitos Primitivos, por William Watson

Os começos da civilização da China apresentam problemas que são um desafio ao pré-historiador do Velho Mundo. Sabendo-se atualmente que começaram a surgir comunidades agrícolas na Ásia Ocidental logo após do ano 10.000 a.C., e que, na mesma região, esta em desenvolvimento desde o quarto milênio a.C. uma cultura que dispunha de escrita e de literatura, põem-se naturalmente as perguntas: a antiga civilização da China será da mesma idade? W as suas origens foram produto de fatores independentes ou derivados? Nenhuma das questões, como William Watson acentua no presente livro, é suscetível de solução, mesmo aproximada. Na última década, estabeleceu-se pelo carbono 14 a cronologia do Próximo Oriente, mas até agora não foi ainda estabelecida qualquer data para a China, embora as do Japão sugiram que algumas inovações tecnológicas, tais como o fabrico de cerâmica, devam ser tão antigas no Leste Asiático continental como no Oeste. E, quando se trata de relações expressas em cultura material, não é senão antes dos meados do segundo milênio a.C. que podemos admitir, com certa confiança, a presença de alguns elementos intrusivos do Oeste numa cultura já grandemente desenvolvida e caracteristicamente chinesa.
Na requintada cultura da dinastia Shang, que dispunha de literatura e fazia uso de objetos de bronze, aparece, como elemento apropriado de uma sociedade com aristocracia de guerreiros, o carro puxado a cavalos como engenho de guerra. A combinação da perfeição técnica na construção de um veículo de rodas de raio, leve e forte, com a domesticação do cavalo como animal de tiro rápido e seguro, de que resultou a guerra feita em carros, parece ter ocorrido algures na Anatólia e na Síria Setentrional, por alturas do século XVIII a.C. Os carros Shang refletirão a adoção, alguns séculos depois da sua criação, de um novo motivo de pompa e de guerra vindo do Oeste, e o seu enterramento juntamente com os seus ostentes como elemento de prestígio será o eco de um hábito que se havia de continuar na Europa bárbara, até para além dos fins da Idade do Ferro pré-romana. A encantadora enumeração dos ornamentos e arreios do carro céltico das primitivas histórias de heróis da Irlanda tem seu êmulo, no outro extremo do Velho Mundo, numa poesia chinesa que remonta, pelo menos, aos séculos VII ou VIII a.C.:
O delicado carro de guerra com a sua caixa rasa,
A lança curva com suas cinco faces,
Os passadores, as guardas laterais,
Os tirantes entrançados, os cubos alongados,
Puxados pelos nossos vistosos cavalos.
Inovação tecnológica e requinte são, logo desde o começo da metalurgia, características da cultura chinesa. Quando se encontram trabalhos de bronze da dinastia Shang da metade final do segundo milênio a.C., são já inacreditavelmente aperfeiçoados e únicos na utilização de moldes complexos de fundição, e, quando se chega aos trabalhos em ferro do VII ou VI séculos, verificamos que as técnicas de fundição do metal já eram perfeitamente dominadas. Na Europa, a técnica do ferro martelado ou forjado precedeu, por toda parte, a do metal fundido, que só foi tentada nos fins da Idade Média, enquanto na China tinha já sido erigido, por altura da conquista normanda da Inglaterra, um pagode de ferro fundido com 21 metros de altura! O carro beneficiou também do desenvolvimento de importantes melhoramentos técnicos na tração, nomeadamente a prática de dar forma côncava às rodas para garantir uma maior largura e quiçá maior robustez, o que já aparece nos séculos IV e III a.C. Também a modificação do arreio do cavalo, num tipo que é o antepassado da atual molhelha rígida européia, não aparece muito depois.
Neste livro faz-se a história da China Primitiva até a dinastia Chou. Parece que foi durante o período Chou oriental, nos séculos VIII ou VII a.C., que os Gregos começaram a ouvir confusas narrativas de viajantes acerca de uma nação de vegetarianos pacíficos, filósofos e virtuosos, para além do Vento Norte, transformando os próprios Chineses nos mitos Hiperbóreos. Por alturas do século VI, as colônias helênicas do mar Negro tinham já estabelecido os contatos que permitiram a vinda da seda chinesa até os túmulos da Idade do Ferro do Sul da Germânia, pelo que, a partir daí, cada um destes dois grandes mundos da Antigüidade estaria ciente da existência do outro.
Lenda e história - Mitologia
A história da China é, no fundo, a história de um único povo, com uma única língua e um sistema de escrita que, em princípio, não mudou desde o início, há cerca de três mil anos. Ninguém se impressionou tanto com a Antigüidade da sua tradição cultural como os próprios Chineses. Os confucionistas reivindicavam ter baseado a sua filosofia política e moral no caráter e nas leis dos primitivos reis da dinastia Chou. A lista ortodoxa de governantes chineses que se supõem terem governado todo o país começa com um ano do calendário que corresponde ao ano 2852 a.C. Vem primeiro o período dos Cinco Chefes. Muitos dos reis têm um caráter plenamente lendário, sendo-lhes atribuídos reinados inverossimilmente longos. A idéia que hoje formamos da história primitiva e lendária e da mitologia primitiva da raça chinesa é, em grande parte, resultante dos comentários e interpretação dos confucionistas. A sua grande preocupação foi a de projetar o sistema dinástico para tempos o mais recuados possível. Se a existência de imperadores governando toda a China na mais remota antigüidade justificou o papel de Shih Huang Ti, o primeiro unificador da China e dos imperadores que se lhe seguiram da Casa de Han, a função dos seus ministros e de outros servidores era poderoso precedente a justificar o monopólio do serviço civil, finalidade dos confucionistas. Por isso, o ingênuo encanto que geralmente encontramos no mito e na lenda desvanece-se, na China, nos corredores climatizados de uma burocracia imaginária. Só se consegue uma imagem corrigida dessa construção fictícia do passado através do exame rigoroso das numerosas alusões aos heróis e aos notáveis que sobreviveram na vasta literatura e escaparam à distorção confucianista, e pela avaliação dos textos alusivos e por vezes crípticos de obras como o Shan hai ching (Clássico das Montanhas e Mares) e do Ch´u ts´u (Poesia do Estado de Ch´u).
De toda a rica mitologia que aí se nos depara apenas podemos dar aqui alguns exemplos sugestivos. À cabeça dos Três Soberanos era geralmente colocado Fu Hsi, que, no período Han, fora canonizado como o mais antigo. Chegou a ser descrito com corpo de dragão e cabeça de homem; o seu nascimento, à semelhança do dos fundadores de grandes dinastias, foi miraculoso: a mãe concebeu-o colocando-se sobre a pegada de um gigante. Inventou os Oito Trigramas, nos quais se baseava um sistema de adivinhação que os confucionistas adotaram no seu cânone (I Ching); igualmente inventou as redes e ensinou o seu uso na caça e na pesca. Em exame mais cuidadoso não se encontra, porém, prova concreta de uma genuína origem mitológica de Fu Hsi, conforme é descrito. É possível que tenha sido invenção dos confucianistas com a intenção de sufocar o clamor dos taoistas. Na sua filosofia estes fizeram largo uso do mito natural e dos conceitos animistas, sendo sérios competidores dos confucianistas nos cargos e influência no governo. Nü Wa, uma mulher posta ao lado de Fu Hsi como irmã ou esposa, usava cinza de juncos para secar uma inundação e pedras de cinco cores para tapar um buraco no céu; e fixara o firmamento em quatro pilares feitos das pernas de uma tartaruga gigantesca. Seria, provavelmente, uma deusa cujos atributos estavam ligados ao domínio da chuva e das inundações. Dos Cinco Chefes, Shen Nung ensinou as artes da agricultura, do comércio e da medicina, tendo inclusivamente inventado uma cítara de cinco cordas (ch´in). Yen Ti tem as marcas de um antepassado tribal. Huang Ti, que aparece em primeiro lugar nas maioria das listas dos Cinco Chefes, escreve-se com caracteres que significam “imperador amarelo” e, como tal, é provavelmente uma criação dos taoistas. Mas Huang Ti, escrito de outra maneira, era o nome do deus supremo que dominava sobre os deuses venerados no período Shang.
Ao interpretar tais fragmentos mitológicos, os investigadores sugeriram que muitas das personagens teriam como origem antepassados ou divindades locais, depois absorvidas pelas histórias e crenças do povo Han, à medida que se formou pela junção das tribos aparentadas e, posteriormente, à medida que se formou pela junção das tribos aparentadas e, posteriormente, à medida que estendia os seus domínios unindo-se a tribos, de parentesco menos chegado, que habitavam os territórios do Sueste e do Sul. São três os pontos característicos da mitologia: a recorrência e a semelhança das histórias das inundações, a ausência de qualquer conceito de mundo subterrâneo e a falta de um mito da Criação que pertença claramente à China Central e ao povo Han em sentido estrito. É lógico procurar na bacia inferior do rio Amarelo a origem e as alusões locais às lendas das inundações. Pensa-se que histórias de inundações ligeiramente diferentes ligadas à lendas dinásticas das Casas de Hsia e de Shang se explicam por serem oriundas, respectivamente, das regiões ao sul e ao norte do delta do rio Amarelo, em regiões tradicionalmente associadas com os começos das duas linhas dinásticas. Yü, sucessor de Shun, o último favorito confucionista dos Cinco Chefes, recebera ordem para dominar uma terrível inundação que seu pai não conseguira controlar, incorrendo na condenação pelo imperador Yao. Yü foi bem sucedido e fundou, mais tarde, a dinastia de Hsia. No entanto, existem alusões a Yü, de caráter totêmico tribal e de culto local, pelo que persiste certa ambigüidade no que respeita aos papéis que pai e filho teriam desempenhado na inundação. Igualmente um herói de inundações não menos famoso, Kung Kung, é mencionado em diversos textos, breves e dispersos, que nos deixam na incerteza se ele teria provocado a inundação, se a teria intencionalmente agravado ou se apenas a sustara, o que, aliás, principalmente se lhe atribui. Foi Kung Kung quem lutou contra Chuan Hsiu (um dos Cinco Chefes, normalmente colocado em segundo lugar) pelo governo do império. Foi derrotado, não sem primeiro ter dobrado a montanha de Pu Chou, que sustentava o céu, batendo-lhe com a própria cabeça, do que resultou terem os céus ficado descaídos no noroeste, originando, para as estrelas, movimento de oriente para noroeste e, para os rios, um curso em sentido oposto.
O único mito autêntico da Criação, conservado na antiga literatura chinesa, parece ter sido adotado da área meridional de povos não chineses, cuja assimilação à cultura Han se processava gradualmente desde os tempos mais remotos e que até hoje ainda não se completou. A história refere-se à P´an Ku, descrito como “um cão de muitas cores” que se diz ter nascido do caos primitivo e que, ao morrer, teria dado origem à China e ao universo que a rodeia. A lenda dos serviços prestados por P´an Ku ao imperador Kao Hsin (também chamado Ti K´u, um dos Cinco Chefes) na derrota dos bárbaros do Sul, e do seu casamento com a filha do imperador, registra mitologicamente a mais remota penetração chinesa no Sul, enxertando assim uma significativa tradição local no mito Han.
As dinastias primitivas Aos primitivos e lendários chefes seguem-se as dinastias de Hsia, Shang e Chou. A primeira é nebulosa, referida apenas nos textos mais discutíveis, e a verdade da sua existência tem sido posta em dúvida pelos historiadores. A história respectiva parece ter sido refeita (se não feita) depois da época de Confúcio, inclusive, a citação de um verdadeiro eclipse do Sol no quinto ano do terceiro rei Hsia (2186 a.C. pela cronologia confucionista) testemunhará apenas a precisão dos astrônomos Han ou Chou, tardios, em cálculo retrospectivo. É, no entanto, geralmente aceite que certa dose de verdade está incorporada na lenda e na tradição relativas a Hsia, pelo menos quanto à existência de tal casa reinante e à sua localização na parte sul do curso inferior do rio Amarelo. Mas, se Hsia existiu, a sua relação no tempo com a primeira e verdadeiramente histórica dinastia, a Shang, é incerta. Terá sido apenas contemporânea. Não é possível também atribuir qualquer material arqueológico a um “período Hsia”. É só com Shang que o trabalho do arqueólogo se junta ao do historiador para iluminar o brilhante primeiro capítulo da história da China. O caráter histórico da dinastia Shang foi dramaticamente provado, há uma geração, pela escavação da capital, em Anyang, no Honão Setentrional. Os primeiros séculos da dinastia Chou, que reinou a partir de 1207 a.C. (ou 1122 a.C., segundo a cronologia ortodoxa), são conhecidos principalmente através de escritos históricos, e a partir de 842 a.C. os seus acontecimentos são datados com exatidão. A primeira e a segunda dinastia Han (207 a.C. – 220 d.C.) governaram uma China unida de extensão quase igual à do território atual.


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