O Neo-taoísmo, por D. H. Smith

Enquanto o tauísmo religioso estava a ganhar domínio sobre as massas e a competir com o budismo pela obediência delas, um renascimento do tauísmo filosófico dava-se entre os intelectuais. Estes movimentos entre 220 e 420 AD tem sido caracterizado como um escape da realidade feito por homens que achavam impossível servir governos corruptos e que se retiravam dos seus cargos para encontrarem liberdade e segurança numa procura de valores transcendentes. Mas foi mais do que isso. Foi um protesto contra o escolasticismo árido da dinastia Han e uma tentativa de promover o estudo critico, o livre inquérito e o pensamento independente. Foi uma tentativa de cada um escapar do valor convencional e de procurar por si próprio o significado da realidade fundamental.
A Escola das Conversações Puras (Ch’ing T’an) é mais bem exemplificada nos Sete Sábios do Bosque de Bambu (c. 210-63 AD) que viviam em Honan e se encontravam para conversar, beber, fazer música e escrever poesia, com intimo desprezo pelas convenções sociais normais. Um deles, de nome Chi K’ang, tinha uma quinta luxuosa onde havia um magnífico bosque de bambus e onde ele e os seus amigos freqüentemente passeavam e conversavam. Repudiavam todas as posições mundanas, a honra, a fama e a ambição, e procuravam espontaneidade de ação seguindo o impulso do momento. Entravam em conversação até que, conforme diziam, alcançavam o Inominável, e então “paravam de falar e silenciosamente compreendiam-se uns aos outros com um sorriso”. Cultivavam a crença de que a integridade pessoal de uma pessoa dependia da conformidade com a natureza. Defendiam tornar-se uno com o universo e transcender todas as distinções de bem e mal, riqueza ou pobreza, posição social alta ou baixa.
Essa espontaneidade e falta de convencionalismo, esse repúdio dos padrões de moralidade ordinariamente aceites eram muitas vezes acompanhados de uma grande sensibilidade para com a Natureza. Este aspecto do tauísmo havia de ser a inspiração de algumas das melhores poesias líricas e algumas das mais belas pinturas.
O renascimento do tauísmo filosófico está associado com a obra de Wang Pi (falecido em 249 AD), Ho Yen (falecido em 249 AD) e Kuo Hsiang (falecido em 312 AD). Wang Pi, que escreveu famosos comentários sobre o Tao Tê Ching e o 1 Ching, encontrou a última realidade no “não-ser” original (pên wu). Este “não ser” está em perfeita concordância com um princípio fundamental que governa e une todos os objetivos, conceitos e acontecimentos particulares. Kuo Hsiang, alargando e desenvolvendo um comentário anterior sobre Chuang-tzu de Hsiang Hsiu (221-c. 330 AD), via na Natureza (tzu jan), com as suas espontâneas transformações, a única realidade. Ele negava a existência de um Criador e impelia o naturalismo tauísta para a sua conclusão lógica. Cada coisa da natureza agia conforme o seu próprio princípio e bastava-se.
Esses homens tomaram as velhas teorias tauístas quanto a seguir a natureza, a espontaneidade, o determinismo e a relatividade, e deram-lhes uma nova interpretação. Atacavam a idéia de um “sábio” se tornar eremita ou asceta. O verdadeiro sábio conserva-se no meio dos afazeres mas responde-lhes com naturalidade e espontaneidade perfeitas. Confúcio, mais do que Lao-tzu ou Chuang-tzu, era o seu ideal de um sábio perfeito, porque, enquanto eles falavam de não-ser, Confúcio realizava-o. Conforme W. T. Chan escreve:
“Nem Wang Pi nem Kuo Hsiang consideravam Lao-tzu ou Chuang-tzu sábios. O seu sábio era Confúcio. Isto parece espantoso, mas a razão não é realmente difícil de se procurar. Para Kuo Hsiang a pessoa especialmente ideal era um sábio que é “sábio por dentro e majestoso por fora” e que viaja tanto no mundo transcendente como no mundano. De acordo com os neo-tauistas, Lao-tzu e Chuang-tzu viajavam somente no mundo transcendente e eram por isso parciais, enquanto que Confúcio era verdadeiramente sábio por dentro e majestoso por fora” (18).
A contribuição desses neo-taúistas foi muito grande porque eles forneceram ao tauísmo uma base intelectual e metafísica sem a qual nenhum sistema religioso pode passar. As suas idéias tiveram indubitavelmente uma considerável influência sobre o budismo, conforme este se desenvolveu na China, e mais tarde, o neoconfucionismo da dinastia Sung tomou e desenvolveu muitos dos seus conceitos fundamentais.
O Desenvolvimento Ulterior do Tauísmo Religioso
O tauísmo, como religião, estabeleceu-se numa ocasião em que o budismo se infiltrava na China. De principio, o budismo parece ter sido aceite como uma doutrina estrangeira com grandes semelhanças com o tauísmo. Deram-se contatos amigáveis em que os tauístas assistiam à tradução dos textos budistas e os termos tauístas eram aproveitados para explicar os conceitos budistas. Mas, como a influência do budismo cresceu rapidamente, a fricção e a hostilidade aumentaram. Os chefes de ambas as religiões, atentos ao fato de que a liberdade de propagar os seus respectivos credos, de atrair a população, e de construir templos e mosteiros, estava em grande parte sob o controle da autoridade política, procuravam, por todos os meios ao seu alcance, ganhar o patrocínio e o apoio dos imperadores supersticiosos. Freqüentemente entravam em ácida controvérsia, tentando provar a superioridade do seu próprio sistema sobre o do rival. Os tauístas não se opunham à excitante perseguição dos budistas e sabiam apontar as crenças e práticas budistas que eram inimigas da maneira chinesa de viver.
Ao mesmo tempo, o tauísmo não se opunha a pedir emprestado ao budismo. As escolas Mahayana de budismo tinham adotado a crença numa existência pessoal contínua, ou por meio de transmigração para os animais ou outras entidades vivas, ou por transferência para um dos numerosos céus ou infernos onde as almas seriam recompensadas conforme a sua conduta na terra. Este conceito de um futuro estado foi agarrado pelo espírito chinês e incorporado no tauísmo. O tauísmo pediu pois emprestados ao budismo a estrutura geral do seu mundo do além. O número de juizes infernais foi fixado em dez, um dos quais se sentava à entrada da outra vida para dirigir cada uma das almas para o seu apropriado lugar de tormento, oito presidiam aos diferentes infernos, enquanto o décimo se sentava à saída, no julgamento, e despedia os que tivessem completado a sua pena ao longo dos vários caminhos de transmigração.
Diante dos ensinamentos budistas de que havia inumeráveis budas e bodhisattvas cuja misericórdia encorajava os fiéis e cujo mérito lhes garantia salvação, os tauístas proclamavam que os seus imortais eram instrutores divinos que ensinavam aos adeptos tauístas que seguissem as suas passadas. E agora começavam a povoar o seu universo com uma hierarquia de deuses que competiam com o panteão budista.
Os tauístas, a fim de provarem a antiguidade e por isso a superioridade da sua religião, colocaram o nascimento de Lao-tzu antes da criação do céu e da terra. Eles proclamavam que a criação tinha resultado da sua separação do caos, e que, tal como o Buda, Lao-tzu tinha atravessado várias encarnações. Como não tinham deuses de misericórdia que respondessem às orações do povo pela proteção e a salvação, a vaga figura de Huang-Lao foi substituída por um trio de “Veneráveis Celestiais” (T’ien Tsun) que se elevavam muito acima da esfera humana e nunca tinham encarnado como homens. O maior deles era Yiian Shih T’ien Tsun que se interessava pela salvação de todos os homens. Abaixo desses “Veneráveis Celestiais” estava toda uma hoste de divindades superiores e inferiores cada qual com o seu posto próprio -deuses, gênios, heróis falecidos, homens bons e mulheres virtuosas, os espíritos das estrelas e das forças elementares tais como o trovão e o relâmpago. Todos se tornaram objetos de culto, mesmo as deusas da varíola e do sarampo. Todos recebiam uma parte das atenções. (19)
Embora o tauísmo, tal como o budismo, não tivesse autoridade permanente central à qual todos os crentes tauístas se submetessem, o tauísmo foi organizado em distritos presididos por sacerdotes ou Tao Shih. Alguns destes padres eram itinerantes, mas durante os séculos V e VI a vida monástica aumentou. Os padres podiam casar e ter filhos e o seu posto tornou-se hereditário. Abaixo dos padres, pequenos grupos de “anciãos” assistiam à realização das cerimônias e à coleta dos impostos. A manutenção dos sacerdotes vinha de duas fontes principais, o “banquete” realizado anualmente e também em ocasiões especiais tais como nascimento ou morte, quando se presenteava o padre com uma certa quantidade de dinheiro, e “o imposto celestial do arroz” de cinco medidas de arroz oferecidas no sétimo dia do sétimo mês.
Foi no século V que um tauísta chamado K’ou Ch’en-chih obteve as graças do imperador da dinastia nortenha Wei, T’ai Wu Ti (424-52 AD), e pôde instituir várias reformas, purificando o tauísmo de alguns dos seus mais grosseiros elementos e frisando a importância de boas obras e de higiene. Ele assumiu o antigo título de T’ien Shih ou “Mestre Celestial” e sob a sua influência o tauísmo foi proclamado a religião oficial do império em 44 AD. Durante o século VI, em imitação do budismo, os padres tauístas que viviam em mosteiros tornaram-se celibatários, e foram fundados conventos para freiras. Os mosteiros tauístas começaram a lançar certificados que afirmavam que os seus possuidores eram monges ordenados que haviam atingido uma certa eficiência. Tais certificados que também foram lançados pelos mosteiros budistas eram de grande valor, visto livrar os monges do serviço militar, corvée e muitas formas de impostos. Abusos inevitáveis no lançamento desses certificados levaram o governo da dinastia T’ang a assumir controle sobre a ordenação e o lançamento dos mesmos certificados.
Quando Li Shih-min fundou a dinastia T’ang em 618 AD, os tauístas apressaram-se a sugerir que ele era um descendente de Lao-tzu que possuía o mesmo sobrenome de “Li”. Os tauístas alcançaram grande favor imperial e tinham precedência na corte, e embora o próprio Li Shih-min se inclinasse para o budismo, muitos dos seus sucessores tornaram-se patronos ativos do tauísmo. Eles conferiram títulos e dignidades a Lao-tzu, e a Hsüan Tsung (712-56 AD) ordenaram que se construísse um templo tauísta em cada cidade, e que cada família nobre possuísse um exemplar do Tao Tê Ching. (20) Durante o seu reinado, o Tao Tê Ching, Chuang -tzu e Lieh-tzu foram considerados clássicos, e durante um tempo aceites como estudos próprios para os exames do serviço civil. Quando em 840 AD, Wu Tsung subiu ao trono, logo foi influenciado pelos padres e alquimistas tauístas. E através das maquinações de conselheiros tauístas, Wu Tsung instituiu uma feroz perseguição a todas as religiões “estrangeiras” e especialmente ao budismo.
A norma da religião tauísta estava, por esse tempo, completamente estabelecida, e poucas mudanças fundamentais haviam de se dar nos séculos subseqüentes. Durante a dinastia Sung (c. 960-1280) Yü Huang ou “O Imperador de Jade” salientou-se como divindade tauísta suprema e a sua imagem começou gradualmente a tomar um lugar central no salão principal dos templos tauístas. O considerado descendente de Chang Ling (21) foi venerado como T’ien Shih ou o “Mestre Celestial” e recebeu uma vasta propriedade hereditária na montanha do Dragão e do Tigre em Kiangsi. Uma seita do tauísmo, grande e influente, continuou a reconhecer os seus descendentes como chefes titulares da igreja tauísta até ao século XX. Os imperadores Sung patrocinaram a compilação do Cânone Tauísta que foi catalogado no século X e impresso em 1019. Foi também, provavelmente, no século XI que uma das obras mais populares tauístas foi composta, conhecida pelo T’ai Shang Kan Ying P’ien, um curto resumo da moralidade tauísta. As sociedades de caridade e os mosteiros consideravam uma obra de mérito distribuir esse curto tratado gratuitamente, o qual observava que as virtudes e os pecados do homem são regularmente comunicados para o céu e que a vida do homem é drasticamente abreviada pelo pecado. Pela realização de numerosas boas ações, a vida não só era prolongada como até as pessoas podiam tornar-se imortais.
Embora se tenham registrado oitenta e seis seitas tauístas, os padres tauístas podem dividir-se aproximadamente em dois grupos. Há os que procuram a “realização perfeita” retirando-se do mundo, por meio da ênfase quanto às técnicas higiênicas, à meditação, ao ascetismo rigoroso e à prática de ginásticas e de controle de respiração. Estes padres, em teoria, vivem uma vida de celibato, são vegetarianos e abstêm-se de álcool. Depois há os sequazes dos Mestres Celestiais da Montanha do Dragão e do Tigre, que não vivem em mosteiros mas andam por entre as massas a realizar cerimônias religiosas, a vender amuletos, a ler as sortes e a demonstrar artes mágicas. Estes casam e passam o cargo e as artes aos filhos. Crê-se que são grandes feiticeiros e são chamados pelos camponeses supersticiosos em casos de doença ou de desgraça.
Com o aparecimento do neoconfucionismo, o tauísmo, como religião, começou a perder o domínio que tinha tido sobre as classes superiores. W. T. Chan chega a escrever: “Durante o último milênio não tem havido padres tauístas proeminentes, nem filósofos nem professores”. (22) Os escolares continuaram a estudar as obras filosóficas do tauísmo, mas desprezavam o budismo e o tauísmo religioso como superstições próprias somente para iludir o povo comum. Gradualmente, pelo menos tanto quanto se refere à religião dos camponeses, o budismo e o tauísmo perderam muito da sua distinção. Submergiram numa massa incoerente de crenças e práticas de aldeia em que o valor de um deus ou do seu representante sacerdotal era medido pelo resultado obtido. Contudo, o tauísmo ainda se manteve influente através das sociedades laicas vegetarianas promovidas para encorajamento mútuo da fé religiosa, da meditação, do estudo e das boas obras, e das sociedades secretas entre os camponeses que davam uma sanção religiosa à atividade revolucionária nos tempos de agitação. A maioria dos padres tauístas, com a sua cura pela fé, o espiritismo e a predição do destino são pouco mais do que charlatões ignorantes, embora haja ainda muitas exceções notáveis.

Notas
18. W. T. Chan, A Source Book in Chinese Philosophy, Princeton, 1963, p. 333.
19. J. Dyer Ball, Things Chinese, 58 ed., Xangai, 1925, p. 635.
20. Holmes Welch, The Parting of the Way, p. 152.
21. Holmes Welch, The Parting of the Way, p. 144. Maspero, Mélanges Posthumes, vol. 2, pp. 179 ff.
22. W. T. Chan, Religious Trends in Modern China, New York, 1953, p. 153.


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