
A filosofia grega nasce sob a égide do verbo "ser". O ser humano é o agente filosófico, "medida de todas as coisas" dizia Protágoras, o centro de tudo e manancial da sabedoria, segundo Sócrates. Para os que entendem a Filosofia como um fenômeno ocidental, esta característica a torna especial, e norteia a construção do saber especulativo e cientifico.
Se acaso nos perguntarmos se o mesmo ocorreu na China, constataremos com espanto que os chineses nunca deram ao verbo "ser" tal importância. Isso os desqualificaria para terem o que chamamos de "filosofia", e creio que a tentativa de nos esforçamos para provar que os chineses a tem seria uma armadilha perversa de aprisioná-lo em nossas categorias de saber. Como já afirmei em outros textos, o pensamento chinês não precisa provar que e filosófico, mas é urgente para o ocidente torná-lo um objeto filosófico (e, quiçá, considerá-lo filosofia) sem o que corremos o risco fatal de um solipsismo eterno. Aliás, é mais do que curioso que hoje, em plena olimpíada, narradores diversos e supostos pensadores insistam sempre em que a China é um mundo fechado. Tal acusação é no mínimo hipócrita, tendo em vista que estas mesmas pessoas querem que os chineses pensem como nós! Ou seja, mantém-se vivo o eterno preconceito e total falta de consciência sobre o direito à diversidade, alteridade, pluralidade, blá, blá, blá que tanto insistem os "sábios democratas" do ocidente. Se eles prestassem um pouco mais de atenção ao que a China simplesmente foi (e é), entenderiam de que modo opera o raciocínio filosófico e social desta civilização.
Posto que considero válido incluir o pensamento chinês como uma forma de filosofia, por conseguinte o objetivo deste texto trata de analisar uma de suas peculiaridades fundamentais: como se constrói uma estrutura de pensar filosófica sem o verbo ser? Ressaltemos, ele existia, e continua a existir, mas não passa de um verbo auxiliar, e nunca foi promovido a conceito. Zhang Dainian, autor de Keys Concepts in chinese philosophy simplesmente não o inclui, e esta (des)consideração faz todo o sentido em relação as formas de pensar chinesa.
Assim sendo, investigar este breve tema pode ser relevante para compreendermos as suas conseqüências em relação ao pensamento chinês. Uma outra construção, desprovida de uma primordialidade no "eu" e algo realmente a "se pensar" (com perdão do trocadilho filosófico).

O chinês, tanto antigo quanto moderno, dispensa a ênfase no verbo "ser", senão como auxiliar. Podemos simplesmente dizer "eu professor" no sentido de "sou". Caso estejamos em algum lugar, o verbo "zai' cumpre a função de localizá-lo, tal como "eu estou no banco". No entanto, seu sentido é geográfico e circunstancial, não servindo ao propósito, por exemplo, de afirmar "eu estou doente". Tal seria dito simplesmente como "eu doente". Esta objetividade desconcerta, mas simplifica sobremaneira o ato de comunicar.
Não é necessário usar o verbo "ser". Na realidade, o verbo "ser" não existe no chinês clássico. Em inglês, numa sentença de definição, é absolutamente indispensável esse verbo. No chinês clássico, uma definição emprega duas palavras "vazias", Che e yeh. Por exemplo, uma definição de ren (humanidade) assumiria a seguinte forma: ren che jen yeh. O segundo ren é um caráter diferente que significa "homem". Em outras palavras, a sentença define por analogia, dizendo, com efeito, "humanidade é a qualidade do homem". (Yu, 1977)
Decorrente disso, o chinês (e agora focaremos principalmente o clássico, origem e base de nossa analise) tornou-se uma língua rica e ao mesmo tempo lacônica. Este paradoxo se manifesta neste esforço de concisão, de expressar breve e completamente um pensamento. Um exemplo magno disso é a tradição proverbial, em que uma frase simples busca capturar e exprimir uma idéia por inteiro. Tal situação levou sábios como Confúcio a tentarem inclusive "retificar os nomes", e num esforço gramatical inédito, defender uma adequação das palavras aos seus sentidos mais estritos.
Obviamente que esta proposta era de difícil aplicação, mas colocou os chineses numa posição fundamental para o surgimento de um pensamento filosófico, que é a construção de conceitos - ou, no caso, como uma palavra pode conquistar e representar um conjunto de idéias ou propostas teóricas. Xunzi, um dos seguidores de Confúcio, advogou a continuidade do movimento, e até mesmo a escola legista o adotou - em seu caso, porém, para regular o uso dos meios de comunicação e restringir as formas de expressão intelectual. No entanto, as condições para a "aventura conceitual" estavam criadas, e já nos séculos seguintes a China veria surgir, por exemplo, dicionários conceituais como o Shuowen jiezi e o Erya durante o período Han.
Mas e o verbo "ser"? E o individuo como motor da ação? Novamente, a China encontrou a resposta para essa duvida (que nunca existiu) em sua dialética que opõe e, ao mesmo tempo, incorpora o individuo na natureza. Nos discursos filosóficos chineses, o ser humano se dissolve num sistema ecológico total, se integra, sendo ao mesmo tempo um agente ativo e passivo de toda mutação universal. Suas possibilidades individuais não são apagadas, mas o que marca a sua existência e a inserção numa categoria total que é construída por suas semelhanças e analogias: a dos seres humanos.
O pensamento chinês e o ocidental também diferem quanto à questão da inferência. O silogismo, cujo fundamento está na lei de identidade, é a forma de inferência na Lógica ocidental, enquanto os chineses recorrem à analogia em lugar da inferência. [...] Outros exemplos, colhidos em Mêncio, vêm mais a propósito; a saber: "A bondade da natureza humana (é) como a tendência da água a descer pela vertente"; e: "Vida não significa Natureza, assim como branco significa branco? A brancura de uma pena branca não significa a brancura da neve branca? E a brancura da neve, não significa a brancura do jade branco?...E se assim é, será a natureza do cão semelhante à do homem?" Em Mêncio, esses exemplos são por demais numerosos para se fazerem necessárias outras citações. Em seu Mencius on the Mind, I. A. Richards contrapôs esse tipo de argumentação ao ocidental. O tipo chinês pode ser qualificado de "lógica de analogia". Essa lógica, na realidade, embora não se possa aplicar adequadamente ao pensamento científico, é amplamente utilizado nas argumentações sócio-políticas. A argumentação analógica é, de fato, uma das características do pensamento político. Pode-se considerar o marxismo como um dos melhores exemplos. A fórmula "tese-antítese-síntese", a ser aplicada a todo processo histórico, é de natureza analógica. Da mesma maneira podemos considerar a transformação da semente em árvore como a antítese da semente. (Chang, 1977)
Por conta disso, os textos filosóficos guardam formas de expressão muito próprias, e até mesmo os pronomes são empregados em função do coletivo. Dawson, em seu A New Introduction to Classical Chinese (1985) indica a presença constante do pronome wu, por exemplo, que significa algo como primeira pessoa de um plural num tom vago. Assim, quando um dialogo ocorre, e uma praxe literária iniciar o período com "[o] Mestre diz [disse]"; e no seguir, "pensamos que" ou ainda "[em] tempos antigos, pessoas...". Tudo é coletivo. A ação só se centra no individuo estritamente dito para que ele se integre nesta estrutura no qual está inserido.
Sem o padrão sujeito-predicado na estrutura da sentença, o chinês não desenvolveu a noção de lei da identidade na Lógica, nem o conceito de substância em Filosofia. E sem esses conceitos, não poderia haver noção de causalidade, nem de Ciência. O chinês desenvolve, em lugar disso, uma Lógica correlacional, um pensamento analógico e um raciocínio relacional que, apesar de inadequados para a Ciência, são extremamente úteis em teoria sociopolítica. É por isso que, primacialmente, a Filosofia chinesa é uma Filosofia da vida. (Yu, 1977)
Isso remete o pensamento chinês a uma oportunidade única: a de já nascer universalista. Grande parte dos críticos gosta de insistir (e confundir) na atitude cultural dos chineses em serem reservados, fechados e coletivistas. Ora, numa sociedade que se entende gregária, a noção do individualismo egoísta ocidental se apaga, ou esbarra na força do social. O individuo não é estimulado a sobressair de forma autônoma (mas podemos nos perguntar se o capitalismo também não gosta de massacrar a livre iniciativa do ser humano), mas no caso chinês, ele é inversamente estimulado a integrar-se, a participar do ato de vivenciar a humanidade em sociedade. Conseqüentemente, os chineses consideravam que qualquer um poderia "vir a ser" chinês sem problema algum, mas proporcionalmente, mantinham o paradoxo de que qualquer ser humano poderia conceber o mesmo pelo simples fato de SER humano. Logo, o agir e o pensar filosófico são da natureza humana, nela residem e tem partida. Por outro lado, os chineses, assim sendo, não são dados a uma interpretação política “democrática”.
Este raciocínio consolida-se no conceito fundamental de "humanidade" (Ren) que Confúcio tanto defendia como linha central de sua doutrina. Todos poderiam atingir esta concepção de humanismo, e o próprio mestre dizia que o comportamento de alguém consistia justamente em não perder estes princípios universais de sabedoria independente do contexto. Não foi ele quem disse "entre os estrangeiros, aja como estrangeiro, entre os daqui, aja como os daqui"? E ainda, que "entre os quatro mares todos somos irmãos"?
A ausência do verbo ser como centro do raciocínio filosófico deslocou então a reflexão sobre a ação humana de um suposto egoísmo realista para um comunitarismo propositivo. Toda e qualquer forma de pensar na China já nasce tendo como requisito básico de prova sua universalidade, naturalidade e coletividade. A exceção não e é nem poderia ser considerada regra, no Maximo um exemplo ou referência - mas seu valor critico sempre seria minimizado.
A consideração do indivíduo
A vinda do Budismo a China propôs uma reversão deste quadro, mas para a própria sorte dos budistas, a religião se adaptou a esta imbatível idéia de universalidade chinesa. Hanyu, o critico fatal do budismo durante o período Tang, demonstrou por um simples exercício de lógica que uma individualidade extrema seria uma injustiça cósmica. Afinal, se alguém tem que meditar para alcançar o nirvana, outro alguém tem que trabalhar para sustentá-lo. Seria justo então alguém se libertar à custa de outro?
Os pensadores chineses tiveram que se debruçar, no entanto, sobre a questão da individualidade para explicá-la em contraste a concepção universalista. Este problema se consignou na formulação do conceito de shi (propensão) ou, do potencial que cada ser humano tem por efeito da criação. Lembremos - se ha um principio imutável, ele tem que ser regulado por algo mutável; logo, se ha um conjunto de elementos que nos tornam humanos, e se isso for imutável, então, obrigatoriamente devemos vir ao mundo diferenciados, pois a manifestação do processo DEVE ser mutável.
Com base nisso, Dong Zhongshu (da época Han) defendia que as singularidades são derivadas das conformações do Qi (energia) no ser humano. Isso seria uma regra valida para todos. No período Song, quando estas discussões se deslocam para o plano da mente, autores como os irmãos Zheng e Zhuxi apontam para a identidade dos mesmos processos mentais como referencia de simetria, e não de separação.
O apontamento estético
A percepção do ser gregário, coletivo e integrado se manifesta de forma plena da pintura chinesa. J. Riviere (1979) caracterizou de forma brilhante como o ser humano "desaparece" na paisagem chinesa:
A influência da Natureza ambiente é fundamental no temperamento chinês; a estética desta arte porá no primeiro plano das suas pesquisas o conjunto desta Natureza: a paisagem, as flores, os animais; o personagem humano acrescenta-se finalmente como um elemento a mais, porém sem qualquer caráter predominante. A harmonia com as forças naturais, a procura do ritmo da Vida cósmica, as grandes sínteses nos seus esquemas preestabelecidos dos objetos, dos seres, das coisas do universo, a concordância dos sons, das cores, das partes do corpo, dos elementos do cosmos, formam a base do pensamento chinês.
Sua inserção é indicada, pois, pela sua completa dissolução no natural. Ao ser aceito na manifestação do cosmo, o individuo alcança todas as suas potencialidades, justamente por plasmar-se com ela. A mimesis é completa, e tal é sua realização.
Como dizia Lin Yutang, o mais difícil é ser justamente um eremita na cidade. A natureza do ser humano, por ser universalista, deseja ela própria a integração. Apenas o egoísmo em impor um ponto de vista pode destruir isso.
A vivência chinesa
Vandermeersch, em seu texto "O Homem e o Mundo na Visão dos Chineses", declara que
O homem chinês e um ser essencialmente social. Herdeiro dos esforços de dezenas de gerações, esta inscrito numa longa história de que e beneficiário e que tem a obrigação de prolongar. Rodeado, do nascimento ate a morte, por uma multidão de seres, deve, para existir em paz, evitar a to do o custo as contradições e os confrontos com aqueles que o rodeiam. Sabendo a que ponto a sociedade está sujeita a variações, tem um longo habito de reserva. Tem cuidado para não dar uma opinião demasiado categórica ou para não se deixar limitar por declarações que o definiriam e o impediriam em seguida de modificar a sua opinião. O homem chinês tem por outro lado uma muito viva consciência da hierarquia e do respeito que ela implica, como tem a preocupação duma observação fiel dos rituais, especialmente na ocasião dos casamentos e dos funerais. Em relação aos pais como em relação aos senhores, o homem chinês, tanto por convicção como por tradição, faz questão de marcar a sua deferência e o seu reconhecimento, e é capaz de grande dedicação a esse respeito. Enfim o homem chinês sabe que, para a sua «sobrevivência» ou o seu «progresso» nesta sociedade tão densa e tão dura, precisa de tecer incansavelmente os laços com pessoas capazes de o ajudar no presente ou no futuro. Este cultivar das «relações» (guanxi) surge como uma das componentes essenciais da vida social chinesa.
Se compreendermos esta afirmação, entenderemos por conseguinte que a China - e os chineses - estão longe de serem "totalitários" por natureza como muitos críticos gostam de afirmar. Na verdade, sua compreensão é integradora, e defende que o agente proponente se dissolva em sua paisagem. Na China tente agir como chinês, tal como se espera que no Brasil os visitantes ajam como brasileiros. Adaptar-se e tanto se perder quanto se encontrar num meio "estranho". Ao mesmo tempo, e descobrir a total possibilidade de ser humano em sua plenitude. Numa civilização em que o verbo ser não foi considerado como o ponto de partida da construção filosófica, as formas de raciocinar dirigem-se inevitavelmente a tentativa de pensar de modo estrutural e holístico, buscando formas de associação que expliquem ou aludam às multifacetadas manifestações da natureza. Este pensamento, naturalmente aberto a "prova pela maioria" mas, ao mesmo tempo, pragmático em buscar reproduzir a tudo de forma eficaz, torna-se então uma fonte fértil para imaginarmos outros modos de filosofar, e nos presta aquela bela rasteira tão necessária para abalar de modo sadio as nossas velhas certezas.
Para Ler:
Chang, Tung Sun A Teoria do Conhecimento de um Filósofo Chinês em Campos, H. (org.) Ideograma. São Paulo: Cultrix, 1977.
Dawson, R. A New Introduction to Classical Chinese. Oxford: OUP, 1985.
Hansen, C. Concepts Articles em http://www.hku.hk/philodep/ch/concepts.htm
Jullien, F. La China da que pensar. Madrid: Anthropos, 2003.
Riviere, J. Arte Oriental. Rio de Janeiro: Salvat, 1979.
Vandermeersch, L. Sabedorias Chinesas. Lisboa: Piaget, 2005.
Yu, Kuang Chu Interação entre Linguagem e Pensamento em Chinês em Campos, H. (org.) Ideograma. São Paulo: Cultrix, 1977.
Zhang, D.N. Key Concepts in Chinese Philosophy. Yale: Yale University press, 2002.
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