Para o pensamento chinês, os princípios da organização do Estado não são sociológicos mas cosmológicos. O Estado não é uma emanação do corpo social, guarnece este com os mecanismos adequados de governo, dos quais o conjunto do dispositivo e as regras de funcionamento são deduzidos da lei do Céu. Esta lei governa com efeito todos os movimentos, toda a dinâmica do conjunto ao universo, quer se trate do mundo físico (estações, meteoros, astros, montes, rios), do mundo dos seres vivos (crescimento, reprodução e morte, saúde e doença), do mundo dos indivíduos (temperamento, carácter, qualidades e defeitos intelectuais e morais) e do mundo das sociedades humanas: equilíbrio e desequilíbrios, paz e guerra, ordem pública e desordens. - No centro desta visão cosmológica do Estado encontra-se a muito notável concepção do mandato do Céu. A este cabe fundamentar a legitimidade da soberania sobre a delegação que o Céu concede com o seu supremo poder àquele que, entre os homens, surge como mais qualificado para fazer respeitar a lei em todo lado. O soberano é, assim, antes de mais nada, o mandatário do Céu, suposto honrar este como o seu pai, o que faz do imperador o Filho do Céu.
Como corolário do princípio do mandato celeste, foi estabelecido o conceito de mudança de mandato, que serve para informar do retirar do Céu do mandato confiado a um primeiro soberano fundador de dinastia quando os sucessores deste, desviando-se da lei do Céu, se tomaram indignos da. soberania. O Céu recupera então o seu mandato para o confiar a um novo soberano, reconhecido no herói que deu provas da sua fidelidade à lei do Céu arriscando tudo para derrubar o soberano indigno.
Foi aplicando os princípios da mudança de mandato às alterações dinásticas que os teóricos chineses da história política explicaram a substituição das dinastias umas pelas outras, o que nem sempre acontecia sem problemas. Como, por exemplo, explicar o aparecimento na história das dinastias universalmente acusadas, como a dos Qin, estabelecida depois do desaparecimento da última dinastia real, a dos Zhou, como primeira dinastia imperial antes dos Han, mas por processos ditátoriais que os fizeram em seguida odiá-los para sempre?
Referindo-se por extrapolação ao conceito da mudança de mandato a teoria cosmológica calendário dos embolismos: assim como a lei do Céu comporta, na sucessão dos anos luni-solares normais de trezentos e sessenta e cinco dias, afastamentos naturais que é preciso de vez em quando compensar com a intercalação de períodos embolísmicos constituídos por décimos terceiros meses lunares fora do ciclo, assim o Céu deixa por vezes, entre as dinastias regularmente mandatadas por ele, um espaço que se preenche com o aparecimento de uma distância irregular que não pode pretender a legitimidade. Acontece o mesmo com os períodos da história chinesa em que várias dinastias coexisti- ram no império destruído. Por exemplo, eis como Wang Yínglin (1223-1293), grande erudito da época Song, estabelece a sucessão legítima das dinastias depois dos Han e até aos Song, através da multiplicidade das linhagens soberanas das épocas dos Três Reinos e das Seis Dinastias e depois, uma vez passado o regresso à unicidade dinástica sob os Sui e os Tang, de novo através da multiplicidade das linhagens soberanas da época das Cinco Dinastias: os Cao Wi (elemento da terra), os Jin (elemento do fogo), os Chen (regresso ao elemento da terra), os Wei do Norte {elemento da água), os Wei orientais (prolongando a dinastia precedente como um período embolísmico), os Zhou posteriores (elemento da madeira), os Tang (regresso ao elemento da terra), os Tang posteriores (ainda o elemento da terra), os Shi Jin (elemento do metal) os Liu Han (elemento da água) e os Guo Zhou (elemento do fogo).
Notemos ainda aqui que a expressão de mudança de mandato foi retomada no fim do século XIX pelos revolucionários chineses para traduzirem na sua língua o conceito político puramente ocidental de revolução.
A teoria cosmo lógica do Estado conheceu muitos Qutros desenvolvimentos. Assim, as mudanças dinásticas, como mudanças de mandato celeste, foram postas em relação com q alternância da predominância de cada um dos cinco elementos. Também o fim da dinastia Zhou foi ligado ao fim da predominância cósmica do fogo, elemento do qual esta dinastia detinha misticamente a sua soberania, quando emergiu a predominância do elemento da água, que tem o poder de apagar o fogo e donde surgia misticamente o poder do país de Qin.
Num outro plano, a organização dos poderes públicos devia ser estruturalmente decalcada daquela que comanda o funcionamento do universo para ser eficaz. Assim, o mais antigo cânon administrativo chinês, o da administração dos Zhou, prevê que o governo deve ser organizado em seis departamentos, que se referem respectivamente ao Céu, à Terra e às quatro estações e que os serviços dependentes desses departamentos devem no total ser em número de trezentos e sessenta, idêntico ao dos dias do ano.
Claro que ao longo do tempo se esbateu o desenho primitivo de uma visão do mundo estreitamente tributária da cosmologia divinatória arcaica. A partir do século VII começa e ser posta em causa a explicação das mudanças dinásticas pela alternância da predominância de cada um dos cinco elementos. Mas toda uma simbologia da racionalidade cósmica do poder de Estado não deixou de ser minuciosamente mantida pelo ritualismo. É por isso que, no Estado imperial, as execuções capitais, por exemplo, não podiam ter lugar em princípio senão no Outono, estação do elemento do metal, sob a dependência do qual estava antigamente colocado o emprego das armas, tanto na execução dos altos feitos como na guerra.
Foi esta racionalidade cósmica que impediu sempre imaginar uma outra forma de Estado sem ser o Estado monárquico: da mesma maneira que existe um só Céu acima dos dez mil seres do universo, também não poderia haver mais do que um imperador na terra inteira, repetem à saciedade os autores. Na generalidade, esta racionalidade cósmica ocultou completamente a natureza do Estado, qualquer que fosse a sua forma, monárquica ou outra, como organismo imanente na realidade do próprio corpo social.
Miribel, J. e Vandermeersch, L. Sabedorias chinesas. Lisboa: Instituto Piaget, 2004 p. 91-103
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