Texto de Análise - Sobre Sima Qian

O maior historiador chinês antigo foi, sem dúvida, Sima Qian. Ele compôs uma obra imortal, o Shiji (Registros Históricos), que se tornou o modelo das Histórias Oficiais, escritas sempre na dinastia seguinte, a respeito da dinastia antecedente. A primeira "História Oficial" foi a dos Han Anteriores (Qian Han Shu), trabalho realizado por Ban Gu no período dos Han Posteriores e que versa sobre a História do período imediatamente precedente ao seu.
Sima Qian teria nascido em -145 ou -135 e morrido em -85. Descendia de uma família aristocrática (Sima: "Comandante das Cavalariças" - Ministro da Guerra - nome de uma função tornada sobrenome familiar, de acordo com o uso) do Estado de Qin (Shenxi), país natal de Shi Huangdi e berço do legismo. O pai de Sima Qian, Sima Tan, ocupara a função, na corte Han, de Tangongshi ("Duque-Grande Astrólogo" ou Analista), ligada à observação da correspondência entre os fenômenos celestes e o calendário oficial. Apesar do título pomposo, o cargo não era de muita importância na época Han, embora o direito ao acesso livre à biblioteca e aos arquivos imperiais fosse de muita utilidade para quem pretendesse escrever uma obra histórica. Esse foi o caso de Sima Tan, que idealizou e começou o "Shiji", morrendo, entretanto, no início do trabalho e legando a Sima Qian tanto a função de Taigongshi quanto o encargo de terminar o "Shiji". A obra ocupou vinte anos da vida de Sima Qian e divide-se em cinco grandes seções: "Benji" ("Anais de Base"), consistente em doze capítulos sobre as casas reais anteriores à dos Han e sobre as vidas dos próprios imperadores Han; "Nian Biao" ("Tabelas Cronológicas"), dez capítulos que enumeram, por ordem de datas, acontecimentos importantes do passado; "Zhi" ("Tratados"), oito capítulos a respeito de assuntos vários, tais como os ritos, a música, a astronomia, a religião e a economia; "Shi Jia" ("Famílias Hereditárias"), trinta capítulos sobre os anais históricos dos Estados feudais anteriores aos Qin, e "Liezhuan" ("Biografias"), setenta capítulos concernentes à vida de personagens historicamente célebres ou a povos estrangeiros com os quais a China tivera contactos. O "Shiji", escrito com o objetivo de transmitir e não inovar (no espírito de Confúcio), é uma compilação de todo o material histórico da China existente na época de Sima Qian. Sua única preocupação foi apresentar um quadro de toda a História da China, desde as origens até o reinado de Han Wudi, baseando-se em tradições orais, textos, arquivos e testemunhos contemporâneos. Sima Qian não cita suas fontes no trabalho, mas simplesmente copia o material histórico com inteira fidelidade. Unicamente na seção das "Biografias" (Liezhuan) é que constatamos alguma originalidade, pois tratava-se das vidas de personagens contemporâneos seus; nas outras seções, Sima Qian é apenas um frio compilador de documentos. Em conseqüência, temos hoje um trabalho de imenso valor, que nos fornece a coleção completa das fontes históricas consideradas como autênticas pelos chineses nos últimos séculos antes de nossa era. O "Shiji" foi magnificamente traduzido para o francês por Edouard Chavannes (de 1895 a 1905), com o titulo de "Les Mémoires Historiques de Se-Ma Ts'ien". Sima Qian foi, além disso, um grande explorador, pois quando jovem percorreu todas as províncias da China de então. Vivendo sob o governo de Han Wudi, que tinha uma legislação penal extremamente severa, Sima Qian viu-se envolvido num crime de lesa-majestade, por haver defendido um general (Li Ling), que caíra em desgraça perante o Imperador. Seu castigo foi a castração, à qual os homens de honra de seu tempo fugiam cometendo suicídio. Sima Qian não se matou, porque desejava terminar o "Shiji", mas essa mutilação psicologicamente o amargurou pelo restante de seus dias. Sima Qian estabeleceu as bases da historiografia na China e seus métodos foram imitados nas dinastias seguintes. Sua obra é ainda indispensável nas pesquisas da moderna Sinologia.

Ricardo Joppert O Alicerce Cultural da China. Rio de Janeiro: Avenir, 1979

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