Dinastia Han Posterior

por William Morton em China - História e Cultura (1986), Editora Zahar; Rio de Janeiro


O novo governante que devolveu o poder aos Han era, ele próprio, um membro da família imperial original, a casa de Liu, e recebeu o epíteto de Guang Wudi, o "Brilhante Imperador Marcial" (25-57 d.C.). Líder vigoroso, sufocou a revolta dos "Sobrancelhas Vermelhas" e libertou muitos que haviam sido reduzidos à escravidão durante o período de agitação. As guerras tinham eliminado numerosos aristocratas e latifundiários, o que teve o efeito de melhorar a arrecadação direta de impostos pelo Estado. O novo imperador, partindo da estaca zero, não tinha na corte tantos funcionários e dependentes a quem manter. O tesouro recuperou-se e, sob seu pulso firme, o governo alcançou um certo grau de estabilidade. O sistema de irrigação do rio Wei fora destruído e a velha capital, Changan, tinha sido severamente castigada. Por outro lado, os imperadores do período dos Han posteriores, apesar do que se afirmou, foram forçados a depender, em larga medida, da classe dos proprietários de terra, cujo centro de gravidade se situava mais para o leste. Por todas essas razões, Guang Wudi mudou sua sede de Changan mais para o leste, para Luoyang, fundando o período que se conhece como da dinastia dos Han posteriores ou Oriental.

O segundo imperador, agora assente em bases mais firmes, voltou suas atenções para a recuperação do domínio sobre a Ásia central. Para dar execução a seus planos, contou com um dos maiores generais chineses, Ban Chao. O apogeu do anterior poderio chinês na Ásia central e no Noroeste verificara-se em 59 a.C., com a nomeação de um Protetor-Geral das Regiões Ocidentais. Mas o cargo - e com ele o controle chinês - decaíra aos poucos em importância, sobretudo durante o tumultuado período associado ao fim dos Han anteriores. Ban Chao, a partir de 73 d.C., usou de todos os meios diplomáticos e militares ao seu alcance para reafirmar e consolidar o domínio chinês; quando, em 91, foi nomeado Protetor-Geral das Regiões Ocidentais, ele já estava em condições de controlar toda a bacia do Tarim desde o seu quartel-general situado no limite norte da região, em Kucha. Em 76, Ban foi afastado durante breve período, por motivos políticos, mas logrou persuadir o imperador de que precisaria apenas de um reduzido quadro de oficiais e homens experientes chineses para organizar forças locais fiéis contra os Estados ainda não submetidos. Essa política, pacientemente executada ao longo de 17anos, foi extremamente bem-sucedida e o próprio Ban Chao granjeou o respeito de numerosas tribos, graças às suas qualidades de estadista.

Em sua maior expedição, Ban Chao conduziu um exército de 70 mil homens através das montanhas Tian Shan até o mar Cáspio, ou seja, até quase as fronteiras da Europa, sem encontrar nenhuma resistência séria. Depois de cobrir essa prodigiosa distância, mais de 6 mil quilômetros desde Luoyang, enviou um representante à Pártia, à Mesopotâmia e ao Império Romano, então (em 97 d.C.) governado pelo imperador Nerva. O enviado informou que a Pártia era um país que produzia excelentes soldados. Dirigiu-se em seguida, pela rota das caravanas, para as margens do golfo Pérsico. Amendrontado por uma lenda de marinheiros que afirmava que os que se aventuravam pelo golfo Pérsico e pelo oceano Índico poderiam precisar de três meses a dois anos para a viagem e que muitos, em virtude de alguma propriedade do mar, morriam de saudades da pátria, o emissário desistiu da tentativa de chegar ao mundo romano. É provável que os partos fizessem todo o possível para evitar uma estreita ligação entre os poderosos chineses e seus inimigos tradicionais, os romanos. Além disso, o comércio da seda era rendoso para todos os que pudessem permanecer como intermediários, e especialmente para os partos. Mas, através de informações trazidas por Ban Chao, que retomou à China em 102, e pelos gregos que visitaram a China em 166 e 226, é evidente que os chineses sabiam mais sobre Roma do que os romanos sabiam sobre a China. As histórias dinásticas dos Han posteriores e de dinastias menores subseqüentes aludem sumariamente a esses fatos:



O povo de Daqin (Roma) tem historiadores e intérpretes de línguas estrangeiras, tal como os Han. As muralhas de suas cidades são de pedra. Eles usam cabelo curto, vestem roupas bordadas e deslocam-se em carros muito pequenos. Os governantes desempenham suas funções durante um curto espaço de tempo e são escolhidos entre os homens mais valorosos. Quando as coisas não vão bem, são substituídos. [Há aí um anacronismo, pois trata-se de uma referência aos cônsules da época da República.] O povo de Daqin possui elevada estatura.(...) Vestem-se diferentemente dos chineses. Sua terra produz ouro e prata, todas as espécies de bens preciosos, âmbar, vidro e ovos gigantes (ovos de avestruz). Da China, através de Anxi (Pártia), eles obtêm a seda que transformam em fina gaze. Os mágicos de Daqin (sírios?) são os melhores do mundo. Sabem engolir fogo e fazer malabarismos com várias bolas. Os Daqin são honestos. Os preços são tabelados e os cereais custam sempre barato. Os silos e o tesouro público estão sempre repletos. O povo de Anxi impede-os de comunicar-se conosco por terra; além disso, as estradas são infestadas de leões, o que torna necessário viajar em caravana e com escolta militar. Os daqin primeiramente enviaram emissários à nossa terra (em 166 d.C.). Desde então, seus mercadores têm feito freqüentes viagens a Rinan (Tonquim).

[Citado em C.P. Fitzgerald - China: A Short Cultural History, p. 195.]



O relato pode ser sumário, mas está basicamente correto. A ignorância romana sobre a China, por outro lado, era profunda. Os romanos associavam a China a pouco mais do que à seda, a tal ponto que o adjetivo sericus, "chinês", derivado do substantivo Seres, veio a significar, por transferência, "sedoso" (sericos pullvilos: pequenas almofadas de seda: Horácio, Epodos, 8: 15). Horácio menciona os chineses em vários contextos geográficos amplamente separados, associados com a Pártia, a Bactriana e o rio Don, na Rússia atual. Na verdade, ele estava escrevendo poesia e não geografia exata. Além disso, apreciava a inteligência dos contrastes inesperados. Mas permanece a impressão de que Horácio e seus leitores se mostravam extremamente vagos, para não dizer confusos, a respeito da localização da China, e ignorantes sobre seus costumes. O mais gritante erro a respeito dos chineses vem do escritor Lucano, que foi executado por Nero em 66 d.C. Lucano coloca os chineses nas nascentes do Nilo e os faz vizinhos dos etíopes.

Os dois grandes impérios da China e de Roma mantinham, pois, contatos através do comércio da seda, mas jamais se encontraram realmente. Os indícios de contato são tênues e mostram apenas um intercâmbio mínimo. Duas moedas antoninas foram encontradas em Phnam, um porto no delta do Mekong, que era um entreposto florescente para o comércio ultramarino na dinastia dos Han, mas isso não prova a presença de romanos ali. Em 42 a.C. soldados chineses no antigo reino helenístico da Sogdiana derrotaram um grupo do Xiong-nu e de tropas estrangeiras que, possivelmente, eram soldados romanos capturados. Pinturas da batalha foram anexadas a um relatório enviado ao imperador chinês; essa era uma prática que os romanos observavam em suas vitórias, mas nunca foi costume chinês. Uma cidade existiu na própria China depois de 79 a.C., chamada Li Jian. Este é o nome que os chineses davam a Alexandria, e os métodos da nomenclatura chinesa indicariam que a cidade era habitada por pessoas vindas de Alexandria, no mundo romano. A não ser por esses pequenos fatos, o mundo greco-romano e a China e seus satélites existiram como entidades separadas, cada uma considerando a si própria o centro do mundo civilizado. O intercâmbio entre a Europa e a Ásia oriental iria começar, de maneira muito reduzida, no período medieval, mas só se tornaria culturalmente significativo a partir do século XIX.

Voltando ao desenrolar dos acontecimentos no período dos Han posteriores, os reinados dos três primeiros imperadores, até 88 d.C., foram marcados por solidariedade interna e expansão externa ou, melhor dizendo, recomeço dessa expansão. Depois disso, porém, os problemas aumentaram e iniciou-se a decadência. A situação na fronteira norte mostrou diferenças interessantes, se comparada à existente no período dos Han anteriores. As tribos semi-sedentárias, influenciadas pela civilização chinesa, formaram uma região-tampão que protegia a China propriamente dita. Não houve incursões maiores de povos bélicos independentes no Extremo Norte ou no Oeste. As dificuldades surgiram, na verdade, nas tribos incorporadas sob os Han anteriores na própria China. Algumas eram formadas por antigos nômades, enquanto outras eram constituídas de montanheses de origem tibetana. Ambos os grupos sentiram-se explorados pela burocracia chinesa. A China, em sua capacidade "civilizadora", estava sempre tentando transformar os reinos dependentes nos chamados "territórios militares" e, em seguida, em "regiões administrativas" comuns, como as do resto de seu território. Se fosse possível converter os recém-chegados em agricultores, poderiam ser tributados, recrutados para o exército e obrigados a contribuir com um mês por ano de trabalho compulsório (corvéia). 'Aqueles que se recordavam da liberdade de uma antiga vida nômade (e esqueciam suas provações) revoltavam-se contra todo esse processo, ainda mais quando viam seus agressivos primos, além-fronteiras do império, receberem presentes valiosos com que os faziam ficar quietos. (De fato, para manter a paz com esses vizinhos, gastavam-se vultosas somas: 8 mil rolos de seda em 51 a.C., elevados para 30 mil rolos em I d.C.; dos 10 bilhões de caixas [ou moedas de cobre] de receita governamental, cerca de um terço era gasto com essa diplomacia de "ajuda externa".) Não surpreende, portanto, que os ex-nômades explorados dentro das fronteiras do império estivessem freqüentemente em pé de guerra.

Essa intranqüilidade e o recuo de antigas colônias fronteiriças deu origem à migração de muitos camponeses, que buscavam refúgio e emprego junto aos grandes proprietários. Estes tornavam-se mais ricos e poderosos do que nunca dentro do Estado. O próprio Guang Wudi, antes de tornar-se imperador, possuía um vasto território circundado de uma muralha com portas. Tinha seu próprio mercado e um exército privado para defendê-lo. A irrigação, a criação de gado e os viveiros de peixes em tais propriedades propiciavam-lhes completa independência econômica em tempos difíceis.

Se os únicos fatores importantes na estrutura social dos Han posteriores tivessem sido os funcionários terratenentes e a enorme massa de camponeses, a situação poderia ter permanecido estável, como o foi durante os três primeiros reinados. Mas os eunucos da corte ascenderam ao poder como cruéis rivais dos funcionários e, em 135 d.C., foi-lhes dado o direito de adotar filhos. A medida deu a esses infelizes oriundos de uma classe mais baixa da sociedade um incentivo para formar famílias e legar riqueza e poder. Seria um estudo interessante para a nova disciplina da psico-história examinar como a carência sexual dos eunucos palacianos, freqüentemente voluntária por razões de carreira, acendia sua ambição e aumentava o furor com que combatiam os funcionários privilegiados, em luta por riqueza, posição e um lugar ao sol.

Um grupo de funcionários e donos de terras tramou uma conjura contra os eunucos em 167 mas foi desmascarada e os conspiradores afastados de seus cargos e mandados para o exílio. As famílias latifundiárias tinham em suas propriedades rurais as bases do seu poder local, nas quais se sentiam normalmente seguras. Mas importantes revoltas agrárias, em 184, ameaçaram-nas no campo, e os camponeses, sem qualquer status político oficial, mostraram ser capazes de ameaçar todo o sistema estatal pelo peso numérico, puro e simples, somado à sua força militar. Nessa situação, os eunucos retomaram temporariamente ao poder mas foram derrotados, de modo decisivo, em 189, numa vigorosa ação armada sob o comando de um general da Guarda Imperial que mandou massacrar mais de 2 mil eunucos.

A crise agrária de 184 foi semelhante mas muito mais grave do que a da revolta dos "Sobrancelhas Vermelhas", a qual apressou o fim do pequeno interregno de poder de Wang Mang. Aumentaram imensamente os bandos de camponeses errantes, em conseqüência das enchentes na bacia inferior do rio Amarelo. Esses homens desesperados encontraram um foco e um propósito no movimento daoísta conhecido como os Turbantes Amarelos. Dado que não havia lugar num Estado autocrátIco para que movimentos dissidentes se expressassem de forma política, nessa e em muitas outras crises subseqüentes, o descontentamento geral e a oposição combinavam-se sob uma égide religiosa. A rebelião dos Turbantes Amarelos foi comandada pelo patriarca de uma seita daoísta conhecida como os Taiping, um certo Zhang Jiao, ajudado por seus dois irmãos. Esse líder era evidentemente uma figura carismática, a quem se atribuíam poderes de cura, bem como o talento e a energia para o comando militar. Como grassavam epidemias em conseqüência das enchentes, seu poder de cura atraiu muitos adeptos. O título da seita, Taiping, "grande paz", sugeria uma idade de ouro onde os homens seriam todos iguais, viveriam em paz e compartilhariam os bens materiais. Por isso as comunidades dos Turbantes Amarelos passavam muito tempo em observâncias religiosas, jejuns de purificação e confissão pública de pecados. Esses encontros religiosos incluíam , transes coletivos, acompanhados de música e de prostrações incessantes. A histeria coletiva assim induzida terminava muitas vezes em orgias em que homens e mulheres "misturavam seus bafos" (he qi).

Quando os Turbantes Amarelos passaram à revolta aberta em 184, não tardou a haver 360 mil homens em armas e, em 188, a rebelião tinha-se estendido desde o Shandong na China oriental até o Shanxi, na parte oriental do país. Ao mesmo tempo, outra rebelião de características semelhantes irrompeu em 190, estabelecendo, durante certo tempo, um Estado independente na parte sul do Shaanxi e no Sichuan. Essa revolta ficou conhecida como a dos "Cinco Celamins de Arroz", cujo nome deriva da quantidade de arroz com que os membros precisavam contribuir para os cofres comuns. Aboliram a propriedade privada, instituíram a distribuição gratuita de cereais aos viajantes e construíram "albergues da igualdade", onde estes últimos podiam comer sem pagar nada. Encorajaram os membros a se purificarem dos pecados através de trabalho na manutenção das estradas. Essa! medida é uma variante interessante da corvéia usual imposta pelo governo, agora., cumprida pelos camponeses com um certo grau de livre-arbítrio, mas sob sanção religiosa. A expiação parece ter sido um forte incentivo, uma vez que essas seitas acreditavam que as doenças resultavam do pecado. Embora o centro dos "Cinco Celamins de Arroz"[Celamin, antiga medida de capacidade para cereais, equivalente à 16.8 parte de um alqueire, ou cerca de 2 litros] se localizasse no Oeste da China, talvez valha a pena observar que o Shandong e a área costeira do Nordeste, que por tanto tempo se destacaram com seu entusiasmo pela mágica daoísta e com a revolta dos Turbantes Amarelos, foi também a região, antes do regime comunista, em que seitas milenares e fundamentalistas cristãs assumiram as formas mais extremas.

Essas rebeliões enfraqueceram seriamente a dinastia dos Han posteriores, já debilitada por facções na corte, pois três grandes famílias aliadas a imperatrizes tinham dominado a situação de 88 d.C. a 144 d.C. O fim chegou em razão da rivalidade de generais a quem se conferiram grandes poderes para enfrentar as revoltas camponesas. Dong Zhuo saqueou e queimou a capital em 190, o que acarretou a perda da Biblioteca Imperial e dos arquivos dos Han. Sua crueldade excessiva causou seu assassinato, e o poder supremo no Norte passou às mãos do famoso general Cao Cao, filho adotivo de um eunuco. O império então dividiu-se em três regiões geográficas naturais, Cao Cao governando o reino de Wei no Norte; Liu Bei, o reino de Shu-Han no Sichuan, no Oeste, e Sun Chuan, o Sul e o vale do baixo Yangzi, num reino chamado Wu. Iniciou-se, assim, a era dos Três Reinos (220-280 d.C.) e um longo período em que o império unificado não era mais do que um sonho.


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