Dinastia Qin

por William Morton em China - História e Cultura (1986), Editora Zahar; Rio de Janeiro


A impressionante conquista da velha China dos reinos separados foi realizada pelo Estado de Qin com rapidez e completada em 221 a.C. O Estado de Qin (pronunciado "tchin", que nos deu o presente nome da China) teve uma dupla vantagem: na teoria - a filosofia pragmática e cruel do Legismo - e, na prática - uma organização militar eficiente, sob o comando de líderes fortes, que possuíam cavalaria e armas de ferro, mais aperfeiçoadas, ambas criações comparativamente novas para a época. Embora as fases finais desse domínio tivessem sido rápidas, a preparação exigia um tempo muito longo.

Dinastia dos Qin

O poder dos Qin inicia-se com lorde Shang no período compreendido entre os anos de 361 e 338 a.C., data de sua morte. No nível superior da sociedade, suas reformas visaram a estabelecer uma nova aristocracia de homens premiados por seus feitos bélicos, ocupando o lugar das antigas famílias cujo domínio era hereditário; nos níveis inferiores, um sistema de recompensas e punições severas, a formação de grupos responsáveis uns pelos outros e a rigorosa delação de atos delituosos às autoridades haviam fortalecido o controle estatal sobre toda a população. Um século mais tarde, quando o futuro imperador de toda a China, Qin Shi Huangdi, subiu ao trono de Qin em 246, pôde contar com a competência de um ex-mercador, Lu Buwei, na qualidade de administrador-chefe; este último foi, por sua vez, substituído por um legista proeminente, Li Si, que aplicou o modelo Qin de controle em toda a China. Os métodos de reorganização e fortalecimento da autoridade central sobre os reinos independentes foram assim levados a cabo e aplicados numa esfera limitada, por um pequeno número de dirigentes, antes da conquista militar dos Qin.

Quando a vitória se tornou completa, todas as armas dos que não pertenciam ao exército Qin foram confiscadas e seu metal, fundido. A quantidade foi suficiente para construir 12 estátuas gigantescas na nova capital, Xianyang. Para mostrar sua intenção de iniciar uma administração inteiramente nova, o soberano adotou o título ambicioso de Shi Huangdi, o "Primeiro Imperador". O país foi dividido, primeiro, em 36 e, depois, em 48 comandos, ou distritos militares, cada qual com três funcionários que tinham a função de fiscalizar uns aos outros: um governador civil, um governador militar e um representante direto do governo central. Todos os funcionários eram metodicamente divididos em 18 ordens hierárquicas. Criaram-se impostos e leis uniformes para toda a China, sem levar em conta as antigas fronteiras.

A diferença capital na organização das massas sob os Qin foi que o povo se viu libertado da sua antiga fidelidade a senhores feudais individuais e colocado sob o controle direto do novo governo central. Isso fez com que o governo pudesse lançar mão de um potencial humano até então desconhecido, não só no que dizia respeito ao exército, como também a um contingente de trabalhadores forçados. Essa abundância de mão-de-obra possibilitou a construção de uma rede de estradas que se irradiavam da capital. Tal como no Império Romano, essas estradas, abertas a princípio com fins estratégicos, eram igualmente úteis para o comércio. Rasgaram-se canais para irrigação e transporte, e tomaram-se medidas para aumentar a produção agrícola. Para enfrentar a ameaça das tribos nômades do Norte, pesadelo constante ao longo de toda a história chinesa, trechos de uma muralha defensiva já construídos por três dos antigos reinos foram fortalecidos, ligados e estendidos, para formar a célebre Grande Muralha da China, um dos mais ambiciosos projetos de construção já realizados por qualquer civilização. Depois de erguida, ela estendia-se do Sudoeste do Gansu à Manchúria meridional, numa distância de 2.240 km; uma série de melhoramentos foram efetuados pelas dinastias subseqüentes.

Desembaraçado de qualquer respeito pelo passado e ansioso por impor uniformidade lógica ao país como um todo, o que já foi assinalado a respeito das medidas tomadas nos campos da lei e da tributação, o imperador Qin procedeu à padronização de pesos e medidas e adotou um sistema monetário único - a moeda redonda de cobre, com um orifício quadrado no centro, que continuou sendo a moeda-padrão até os tempos modernos. Foram assim eliminadas numerosas formas de moeda de manuseio mais incômodo, que tinham circulado em diferentes regiões na época dos Zhou. A forma de escrita foi igualmente uniformizada, assim como a distância entre eixos das carroças. Esta última medida, ao invés do que possa parecer, revestiu-se de grande importância no solo argiloso e solto do Norte da China, onde os sulcos abertos pelas rodas dos carros ganham tal profundidade que toda a superfície não-pavimentada da estrada pode desaparecer abaixo do nível das terras circundantes. Assim, as diferentes distâncias entre eixos exigiam, até então, a transferência de mercadorias de uns veículos para outros nas fronteiras dos antigos Estados.

Mas foi na área do pensamento que a nova política de uniformização provocou a maior oposição, que na época se manteve latente, mas que veio à tona com os eruditos nas dinastias subseqüentes e se refletiu no azedume duradouro contra o regime dos Qin. Objetivando fazer uma limpeza total que varresse o passado e desfizesse antigas lealdades aos Estados anteriores, o ministro-chefe, Li Si, conseguiu que, em 213, Qin Shi Huangdi, baixasse um decreto que ordenava a queima de todos os livros, exceto os dedicados a assuntos práticos, como agricultura, adivinhação e medicina. Os eruditos que desobedecessem à ordem seriam executados. Parece que de fato alguns deles fora enterrados vivos.

Com o poderoso exército que organizara, Qin Shi Huangdi não apenas assegurou suas fronteiras no Norte, como ainda as estendeu até o extremo sul. Antes da conquistada China, os Qin já haviam atacado e conquistado territórios em Sichuan no Sudoeste. Os exércitos movimentaram-se, então, para o sul, até Hanói. Apoderaram-se do litoral em torno da moderna Cantão (Guangzhou) e conquistaram as regiões perto de Fuzhou e Guilin.

Ao consolidar assim o seu domínio e ao estender as fronteiras da China até quase a sua atual posição, o primeiro imperador Qin demonstrara uma energia demoníaca e alcançara um êxito fenomenal. Mas, quanto mais centralizado se tornava o império, mais vulnerável era à fraqueza no centro do poder. Essa fraqueza veio à tona com a morte do primeiro imperador, em 210 a.C. Ele estava, ironicamente, em viagem às regiões orientais em busca de mágicos daoístas para que estes lhe fornecessem o elixir da imortalidade. Li Si e o eunuco-chefe, Zhao Gao, mantiveram sua morte em segredo até retornarem à capital, a fim de colocarem no trono, como segundo imperador, um herdeiro mais moço, o qual, julgavam eles, seria mais flexível às suas ambições. Mas houve um desentendimento entre eles e Li Si foi eliminado; quando o terceiro imperador subiu ao trono, mandou assassinar Zhao Gao. A dinastia dos Qin, apesar de sua força, não pôde sobreviver à dizimação de seus líderes. Quando, em 206, teve que enfrentar a rebelião popular, desmoronou. O primeiro imperador jactara-se de que sua dinastia duraria 10 mil gerações; na verdade tudo terminou em 15 anos.

Qin Shi Huangdi, o primeiro imperador, não gozou de bom conceito junto aos historiadores confucianos e, na verdade, foi em muitos aspectos um tirano cruel. Vários milhares de homens, por exemplo, morreram durante a construção da Grande Muralha. Mas ele estabeleceu as principais bases para o futuro desenvolvimento do Império. Em especial, criou um reino unificado e centralizado que nunca mais deixou de ser o ideal chinês para o império. Ao proteger o Legismo, influenciou toda a futura concepção chinesa a respeito da lei. A lei, sob esse ponto de vista, não deveria ser, de modo algum, uma consagração do costume - ele destruiu os direitos hereditários e os costumes - nem, simplesmente, um meio de dirimir disputas, nem uma expressão da vontade comum, pois o desejo dos governados contava pouco. "Afastada qualquer interpretação divergente, [a lei era] um meio de dividir hierarquicamente os indivíduos, possuindo uma função de balança geral de dignidade e indignidade, de mérito ou descrédito. [Era] ao mesmo tempo o instrumento todo-poderoso que permitia orientar as atividades de todos na direção mais favorável ao poder do Estado e à tranqüilidade pública" [J. Gernet - Le Monde Chinois. p. 79.]. Qin Shi Huangdi sintetizou sua idéia a respeito da sua própria realização, quando mandou gravar numa estela as seguintes palavras: "Trouxe ordem às massas e submeti atos e realidades a esse teste: tudo tem o nome que lhe é apropriado." [ibid.] A promulgação de regras uniformes e de critérios objetivos deveria pôr um ponto final à dúvida, à divisão e ao conflito. Mas, num aspecto, que Mêncio havia, muito tempo antes, declarado essencial, a dinastia Qin fracassara: ela já não contava com o apoio e a confiança do povo, dando, assim, provas de que perdera o Mandato Celeste.


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