Dinastia Zhou Anterior

por Artur Cotterell em Históra Cultural da China (2000), Editora Gradiva; Lisboa


A dinastia dos Primeiros Zhou (1027-771 a. C.)

A casa real dos Zhou proclamava-se descendente de Houji, «aquele que manda no milho miúdo», ao passo que outro clã importante reportava a sua ancestralidade à mãe deste, Jiang Yuan. De ambos os clãs, que se misturaram pelo casamento, sabe-se que foram buscar os seus nomes a afluentes do rio Wei, núcleo central da cultura Yangshao. Foi possivelmente a conjugação duma base económica mais firme ali existente com um residual vigor semibárbaro que permitiu a substituição da dinastia dos Shang pela dos Zhou, sem prejuízo da versão tradicional da justa usurpação de Wu. Uma vez que a primeira data certa da cronologia chinesa é 841 a. C., quando a rebelião contra um rei Zhou deu origem a uma regência que é possível datar com rigor, há várias hipóteses para o fim da civilização dos Shang. Por uma questão de simplicidade, aceita-se 1027 a. C. como data da captura de Anyang.

Apesar do ódio generalizado de que era alvo o último dos reis Shang, só depois da morte de Wu foi efectivamente fundada a casa real dos Zhou. A pessoa responsável por esse evento foi o seu irmão mais novo, Tan, duque de Zhou, que foi regente durante a menoridade do novo rei. Bem relacionado com a nobreza Shang por força dos muitos anos que na sua juventude passou na corte dos Shang, este estadista ancião foi grandemente elogiado pela sensatez da sua governação. Olhando retrospectivamente da crescente confusão do Período da Primavera e Outono para esses primeiros anos, muitos letrados, entre os quais o filósofo Confúcio, a consideraram a era ideal. Tan esmagou uma rebelião, instituiu leis, instaurou uma burocracia central, organizou escolas por todo o reino e mostrou o devido respeito pela dinastia derrubada, providenciando a continuidade dos sacrifícios ancestrais. O seu gesto mais conciliatório consistiu em arranjar emprego para os altos funcionários dos Shang, precedente que, por ocasião das subsequentes mudanças de dinastia libertou os letrados de qualquer devoção escravizante a uma casa real.

A proclamação de Wu, registada no Livro da História, enuncia oito objectivos do governo dos Zhou: «primeiro a comida; a seguir, a riqueza e os artigos de conveniência; terceiro, os sacrifícios; quarto, as obras públicas; quinto a instrução; sexto, a punição dos crimes; sétimo, a cortesia devida aos hóspedes; e, finalmente, o exército.» Estes objectivos governamentais devem ter orientado Tan, homem com tanta energia que mal conseguia tomar um banho sem desatar a correr no meio dele, segurando na mão os longos cabelos molhados, para ir consultar algum alto funcionário sobre assuntos de estado. Mas o que mais impres-sionou as gerações posteriores foi o tacto com que instruiu o jovem rei quanto aos seus deveres. Apesar de ser tio do monarca, a grandeza da sua personalidade exigia de Tan que mostrasse a máxima reverência pelo rapaz que ocupava o trono. Como iria corrigir o que havia de errado na mente do rei sem de algum modo transgredir a etiqueta da corte? Recorreu a um expediente tipicamente chinês, a instrução moral de outra pessoa, o seu filho. Tan dava-lhe, na presença do rei, lições sobre o que dele se esperava quando fosse duque e, quando o rei fazia alguma coisa mal, mandava vergastar o filho, como se fosse ele o culpado.

Uma certa timidez terá levado os primeiros reis Zhou a adoptarem uma política de assimilação, se bem que, na subjugação da populosa planície oriental, os Zhou tenham levado o sistema feudal à maturidade plena. Príncipes e parentes reais foram investidos como senhores das terras baixas do rio Amarelo, sendo a princípio a sua autoridade mantida por guarnições de guerreiros Zhou. Estes vassalos deviam obediência ao rei, que se autodenominou Filho do Céu, como no tempo dos Shang.

A nobreza estava dividida em graus: duque, conde e barão; a pequena nobreza, os «filhos de senhores», servia o rei e os senhores feudais. A apoiar todo o sistema havia o labor dos camponeses, que produziam um excedente agrícola (a primeira necessidade do governo), forneciam mão-de-obra não remunerada para as obras públicas (a quarta) e prestavam serviço militar sazonal nas forças reais (a oitava), de tal modo que a classe dos escravos, em evidência no tempo dos reis Shang, praticamente desapareceu. A consciência da necessidade imperiosa de recursos humanos, de «massas populares», encontra expressão em documentos da dinastia dos Primeiros Zhou. A proclamação de Wu, que atrás citámos, é bem específica no que toca à necessidade de cooperação activa entre a humanidade e os poderes superiores. Embora se reconheça que

O Céu e a Terra são os progenitores de todas as criaturas, e de todas as criaturas o homem é a mais dotada ... o Céu [teve de] ajudar as pessoas inferiores, dando-lhes governantes e professores, para serem capazes de ajudar Shangdi a assegurar a tranquilidade dos quatro cantos do reino ... [Além disso] o Primeiro Homem [depois que] ofereceu especial sacrifício ao Céu e prestou os devidos serviços à Terra, leva as multidões a executarem a vontade de Shangdi. O Céu tem consideração pela gente inferior. O que ela quiser, o Céu faz. Por isso, o Filho do Céu precisa da ajuda dela para limpar tudo o que há para limpar para cá dos quatro mares.

É tão fascinante a ideia humanista aqui implícita que se misturou com o credo religioso e assim haveria de continuar na teoria política pelo menos até ao fim do império. As rebeliões e os presságios naturais não perturbavam o rei vertical: nem os poderes que lhe estavam por cima nem as «massas» que lhe estavam por baixo iriam tentar fazer mal a um rei vertical, porque «o Céu não tinha outros favoritos que não fossem os virtuosos».

O germe da ideia do papel do povo na manutenção duma sociedade ordenada poderá ter surgido da sensibilidade dos Zhou logo após terem conquistado os Shang. Um édito contra a embriaguez aponta para a existência de preocupação com os efeitos emolientes duma vida de luxúria; prescrevia-se a pena de morte para príncipes e plebeus com o vício do vinho. A extensão do poder dos Zhou ao vale inferior do rio Amarelo acabou por provocar os problemas que os primeiros reis Zhou terão receado. Com o passar do tempo, a hostilidade local aos suseranos Zhou diminuiu e os laços de parentesco que os ligavam à sua terra de origem, no rio Wei, atenuaram-se. Não tardou que se começassem a recrutar funcionários no seio de importantes famílias locais, tendo como resultado o reforço da consciência de pertença a um lugar, que fomentava a criação de estados separados. O crescimento demográfico e o desenvolvimento económico foram outros tantos factores de pressão sobre a estrutura feudal. Curiosamente, foi nesta altura que a concepção chinesa de pertencer a uma civilização única se exprimiu no nome dado à sua terra, o Império do Meio (Zhongguo).

O ideal do feudalismo está expresso no Livro das Odes. A propriedade rural feudal é representada como um quadro de paz e prosperidade, onde existem relações cordiais entre nobres e plebeus, não obstante as pesadas obrigações impostas àqueles que amanhavam a terra. Porém, até mesmo nesta glorificação dum mundo feudal é plenamente reconhecida a importância fundamental dos trabalhadores do campo para a civilização chinesa, sendo o seu bem-estar garantido na prática pela construção de aldeias cercadas de muros de lama, que lhes proporcionavam abrigo no Inverno e protecção contra os saqueadores. Também a compaixão pelos que sofrem marca presença nas tradições históricas. Em 984 a. C. uma insurreição generalizada contra o quinto rei Zhou, Mu, fracassou quando «o chefe rebelde, ao deparar-se-lhe o exército real a marchar na sua direcção, teve pena do povo que chefiava e bateu em retirada sem o enfrentar». Mas a era da dinastia dos Primeiros Zhou não foi totalmente isenta de conflitos. Há registo de expedições militares contra as belicosas tribos bárbaras das estepes, bem como contra os povos mais avançados que viviam nos vales dos rios Huai e Yangzi. A alabarda de bronze e a cidade fortificada continuavam a ser os principais instrumentos de guerra, mas há cada vez mais documentos arqueológicos que indicam que tanto o trabalho com metais como a construção de cidades começavam a tornar-se vulgares entre os povos que estavam fora do domínio dos Zhou, o que significa implicitamente que a relativa calma de que se gozou até 771 a. C. se ficou a dever a uma superior organização. A área que devia vassalagem ao rei Zhou cobria as províncias de Shaanxi, Shanxi, Henan, Hebei e Shandong.

As primeiras dificuldades internas fizeram-se sentir durante o reinado de Li, o décimo rei Zhou. «Extremamente cruel e destituído de remorsos na forma como tratava quem se lhe opusesse», diz-se que Li deixou que as desconfianças que sentia em relação aos principais membros da nobreza o levassem a confiar num mágico «que tinha a pretensão de ser capaz, pelos seus dotes mágicos, de apontar quem quer que, perto ou longe do palácio, dissesse mal do rei». O reinado assente no terror prolongou-se por três anos. Até que em 841 a. C. o povo se ergueu em rebelião, desterrou o rei para exílio perpétuo e quase pôs fim à dinastia. Só a firmeza e o sacrifício auto-imposto dum nobre proeminente, o duque de Zhao, salvou o herdeiro do trono: para apaziguar a multidão e salvar a casa real, o nobre entregou a essa mesma multidão — para grande fúria dela — o seu próprio filho, que tinha mais ou menos a idade do príncipe. Embora a dinastia tenha recuperado forças e em 788 a. C. já fosse suficientemente forte para evitar ser severamente derrotada por guerreiros de tribos bárbaras que viviam nas províncias de Sichuan e Gansu, o reinado do décimo segundo rei Zhou conduziu a um tal desastre que o feudalismo entrou em declínio irreversível. Este rei, de seu nome You, era, segundo os livros de história, «um homem profundamente mau e sem princípios». Em 771 a. C., a capital de Hao, perto, a oeste, da moderna Xi’an, na província de Shaanxi, foi saqueada por uma aliança de membros de tribos bárbaras e parentes da rainha, que tinha sido afastada devido à preferência de You por uma certa concubina. O rei foi assassinado, mas, mais uma vez com a ajuda de grandes vassalos, a dinastia sobreviveu à catástrofe, embora tivesse sido necessário fundar uma nova capital com localização mais segura em Luoyang, a alguma distância, na direcção do rio Amarelo. O prestígio real foi dizimado e o poder autêntico, a energia autêntica passou para as mãos dos nobres que detinham os maiores feudos e eram independentes de tudo menos de nome. «Outro acto de insensatez», que, diz a tradição, contribuiu para diminuir a autoridade da coroa, «foi a nobilitação do chefe do povo Qin. Em sinal de gratidão por ter mandado soldados seus fazer-lhe guarda a caminho da nova capital, Ping (filho da rainha rejeitada) não só elevou o chefe à condição de nobre, como lhe deu terras suficientes para sustentar o seu novo estatuto, terras das quais a cidade mais importante era a antiga capital, que o rei acabara de abandonar.» Deste guardião da marcha para ocidente viria a descender o Primeiro Imperador da China.

Retrospectivamente, foi fácil para os historiadores da China antiga concluir que a decisão «trouxe grandes perigos para o Império do Meio», pela simples razão de que «os próprios deveres que o nobilitado Qin seria chamado a cumprir iriam inevitavelmente aumentar-lhe a ambição, já que as aptidões militares do seu povo não tinham possibilidade de se desenvolver nas lutas constantes com os membros tribais que faziam surtidas contra a fronteira oeste». Mas a inevitabilidade da decisão resultou da extrema debilidade do trono. Em 707 a. C., a alteração da realidade política tornou-se transparente para todos na derrota humilhante infligida às forças reais por um território minúsculo que antes estivera sob a suserania dos Zhou. A era da harmonia feudal tinha acabado com o ataque dos nómadas selvagens a Hao, deixando a pairar no espírito dos Chineses uma permanente ansiedade em relação à ameaça de ataques montados vindos do norte.


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