Dinastia Zhou - Primaveras e Outonos, Estados Combatentes

por Artur Cotterell em Históra Cultural da China (2000), Editora Gradiva; Lisboa


O Período da Primavera e Outono e o dos Reinos Combatentes (770-221 a. C.)

O declínio feudal

O início do declínio do feudalismo, bem como o movimento no sentido da unidade, é visível no período da Primavera e Outono (770-481 a. C.), nome que recebeu de anais assim chamados. É nesta altura que se verifica o primeiro enfraquecimento do princípio da hereditariedade, sendo a própria casa real dos Zhou a vítima mais visível dessa mudança. O Livro da História dá-nos uma visão clara das circunstâncias de extrema carência em que ficou o Filho do Céu depois de, em 771 a. C., os nobres se terem aliado contra os invasores bárbaros. Apesar de todos os grandes senhores terem declarado a sua lealdade ao trono, o novo rei não pôde deixar de reconhecer a dependência em que ficara da «benevolência de todos, sem a qual a Terra não goza de paz». As ofertas de arcos e flechas que fez aos mais destacados membros da nobreza são sinal duma flagrante falta de força, na medida em que representam o reconhecimento do direito a punir quem desobedecesse a ordens reais. A pouco e pouco, esta devolução de autoridade deixou os reis Zhou com uma função apenas religiosa e um reino empobrecido a rodear Luoyang. Com efeito, os achados arqueológicos mostram o crescimento de centros de poder independentes nas grandes quantidades de bronzes descobertos em diversos pontos da cidade fortificada e nos túmulos sumptuosos, cujas inscrições não se referem já ao monarca Zhou, mas proclamam os nomes dos nobres para os quais foram feitos.

Com o declínio das obrigações feudais e a erosão do poder central, os chefes dos estados emergentes lutavam entre si pela conquista de território e competiam para atrair artífices e agricultores. A oeste, os primitivos Qin incentivavam a imigração de estados rivais oferecendo casas e isenção do serviço militar. Um estado de guerra permanente, ora entre os próprios Chineses, ora com os Bárbaros invasores vindos das estepes do Norte, provocou uma redução substancial no número de estados. Segundo o Livro dos Ritos (Liji), existia durante o período da Primeira Dinastia dos Zhou (1027-771 a. C.) um total de 1763 feudos. No princípio do século vii a. C. já só havia 200 territórios feudais; por volta de 500 a. C., esse número tinha caído para menos de 20. Durante o período dos Reinos Combatentes (481-221 a. C.), as lutas intestinas tornaram-se tão ferozes e intensas que só sete estados feudais conseguiam reunir recursos suficientes para fazer a guerra. Impotente, o monarca Zhou, via duas grandes potências, Qin e Chu, ainda incompletamente sinizadas, conquistarem território tirando partido das lutas entre os estados feudais mais antigos. Em 221 a. C., a força de Qin foi suficiente para destruir todos os seus rivais e unificar toda a antiga China num só império. Em 256 a. C., o último rei Zhou foi brutalmente expulso do trono pelas tropas de Qin.

Antes da ascensão dos Qin ao poder foi ensaiado um método alternativo de governo, o sistema hegemónico (ba), que manteve até ao século v a. C. uma aparência de ordem. O primeiro hegémon foi Huan, duque de Qi (684-642 a. C.), próspero estado do Nordeste, na actual província de Shandong. Apesar de a sua força económica assentar solidamente no sal, no ferro e na irrigação, a elevação à liderança do Império do Meio ficou a dever-se às medidas enérgicas que Huan tomou para enfrentar as invasões dos Bárbaros e as rivalidades entre estados. A conselho do seu primeiro-ministro Guan Zhong (falecido em 645 a. C.), Huan convocou conferências para discutir matérias de interesse mútuo, tais como a partilha de rios, e formaram-se alianças contra estados truculentos como o semibárbaro Chu, do Sul. Os signatários dos acordos celebrados nesses encontros comprometiam-se a punir a rebeldia, defendendo o princípio da herança, reconhecendo o valor, respeitando a velhice, protegendo as crianças e os estranhos, escolhendo funcionários talentosos em vez de privilegiar os cargos hereditários, abstendo-se de mandar matar funcionários e evitando actos de provocação, tais como a construção de barreiras, a colocação sem aviso prévio de marcos fronteiriços e a restrição da venda de cereais. Mas estas boas intenções tinham de ser apoiadas pela força: nos vinte e dois anos em que foi hegémon, Huan entrou em guerra nada menos que vinte e oito vezes.

Huan sempre proclamou agir em nome do Filho do Céu, mas as suas solenes declarações eram afinal uma capa para ocultar as suas próprias políticas. Embora preferisse resolver os problemas pela via diplomática em vez de pela do campo de batalha, os acontecimentos da sua própria vida reflectem as incertezas daquele tempo. A violência rodeou a sua ascensão ao poder e seguiu-se à sua morte, em 642 a. C. Teve de matar o irmão logo no início do seu reinado e a luta entre os seus filhos atrasou o funeral ao ponto de o corpo ficar num estado lastimável. Saíam vermes a rastejar da sala em que estava depositado e a carne estava de tal modo putrefacta que os preparativos para o enterro não podiam ser feitos de dia.

Todavia, enquanto primeiro hegémon, Huan esforçou-se por dar sentido político àquilo que foi um grande ponto de viragem na história antiga da China. E foi bem apoiado por Guan Zhong, que ele poupou como um apoiante do seu irmão — uma flecha disparada pelo ministro durante a sangrenta luta pela sucessão bateu na fivela do cinto de Huan. Muito embora as observações associadas ao seu nome só muito depois de ter deixado de ser ministro tenham sido registadas por escrito, as ideias de Guang Zhong terão sido de importância decisiva para o pensamento político chinês, dado que a promoção que faz do papel do legislador não só constitui uma antecipação das ideias dos legistas, em particular de Shang Yang (c. 390-338 a. C.) e Han Fei Zi (c. 280-233 a. C.), como aponta também no sentido da ordem centralizada do império, que Qin inaugurou em 221 a. C. Mas Guan Zhong preocupou-se também com as condições de vida da população rural. O crescimento das vilas e cidades, baseadas nas fortalezas da nobreza, absorvia os excedentes de alimentos e mão-de-obra do campo, pelo que o habitante da cidade vivia sempre melhor. Diz-se que um artesão ou um comerciante podia ganhar num só dia dinheiro suficiente para viver durante cinco dias, ao passo que um trabalhador do campo podia trabalhar o ano inteiro sem conseguir ganhar o suficiente para se sustentar. Apanhado entre o cobrador de impostos, o agiota e a meteorologia, o sacrificado camponês não conseguia sobreviver sem o apoio do estado. Como terá salientado Guan Zhong:

Quando as pessoas vivem bem, são felizes nas suas aldeias e dão valor às suas casas. Satisfeitas com a suas aldeias e dando valor às suas casas, respeitam os seus superiores e receiam cometer crimes. Quando respeitam os seus superiores e receiam cometer crimes, são fáceis de governar. Quando são pobres, provocam distúrbios nos campos e mostram pouco respeito pelas suas casas. Quando os campos estão agitados e as pessoas não estão preocupadas com as suas casas, ousam mostrar desrespeito pelos superiores e infringem as leis, são difíceis de governar. É por isso que os estados bem ordenados são sempre prósperos, ao passo que os estados desordenados são sempre pobres. Portanto, o bom governante é aquele que começa por enriquecer o povo para depois lhe impor o seu governo.

Garantir a subsistência do povo constituía uma das acções essenciais do governo, porque era ele a base de sustentação do estado. Ao contrário dos pensadores legistas, Guan Zhong não desprezava a gente comum nem acreditava que fosse necessário recorrer a terríveis castigos para manter a situação controlada, mas esperava obediência completa aos desejos do poder.

O próprio duque Huan, admitia Guan Zhong, não estava isento de censura moral. A sua avareza, alcoolismo e lascívia eram bem conhecidos, «porém não eram faltas cruciais», na medida em que não afectavam a sua capacidade de reinar. Até o severo Confúcio disse aos seus discípulos, cerca de um século depois, que as campanhas do hegémon contra os nómadas do Norte tinham salvo a civilização chinesa. «Mas, se dependesse de Guan Zhong», dizia, «estaríamos agora a usar roupa abotoada ao lado e cabelo a cair pelas costas abaixo.» Podia ter acrescentado que Huan era um protector da cultura e a sua capital, Linzi, um agradável local de residência de letrados. Mas poucos estados podiam ombrear com a magnificência de Qi. Muitos deles limitavam-se a pouco mais do que um grande palácio feudal, situado na cidade fortificada que albergava o templo ancestral. Em territórios maiores, a casa reinante partilhava o poder com os seus principais apoiantes, a quem conferia terras e cargos, e tinha ao seu serviço uma classe de cavaleiros, os shi, cujos antepassados eram altos funcionários ou nobres. Os shi recebiam a mesma formação que os seus superiores, nomeadamente os Seis Saberes: maneiras, música, manejo do arco, condução de carro de guerra, escrita e aritmética. Eram normalmente pequenos proprietários que ocupavam cargos menores. O crescimento desta classe a partir de 770 a. C., em consequência do apagamento das distinções feudais e do desaparecimento de muitos estados, alterou o equilíbrio da sociedade e conduziu a que, no império, os shi se tornassem, conjuntamente com os agricultores (nong), o esteio da civilização chinesa. Nos ensinamentos de Confúcio, ele próprio, sem dúvida, de família shi, o orgulho e a lealdade da classe eram glorificados como as virtudes morais que enformavam o essencial do carácter do homem educado.

A luta familiar pela sucessão, em 642 a. C., arruinou Qi e permitiu que a hegemonia passasse primeiro para o vizinho Song e depois, em 636 a. C., para Jin, o maior estado de todos até que, em 403 a. C., as perturbações internas vieram dividi-lo em três unidades separadas: Han, Wei e Zhao. Jin englobava vastas partes das actuais províncias de Shenxi, Hebei e Henan e o seu duque sentiu-se com força suficiente para convocar e demitir sem cerimónia o rei Zhou. Idêntica falta de respeito pelas hierarquias se manifesta na intriga e violência que campeavam no seio dos próprios estados concorrentes, numa tendência para a desordem que se tornou ainda mais pronunciada durante o período dos Reinos Combatentes que se seguiu.

Um dos primeiros registos de batalha é a derrota infligida a Chu pelo hegémon Wen, duque de Jin, em Chengpu, no ano de 632 a. C. Durante o Inverno de 633 a. C., o exército de Chu tinha sitiado Shangqiu, capital dos Song, na altura aliado dos Jin, e na Primavera seguinte Wen comandou uma força constituída por soldados de diversos estados do Norte contra os sitiantes. Na povoação fronteiriça de Chengpu, Wen aplicou um golpe estratégico que fez cair o comandante Chu numa posição de perigoso avanço, após o que apanhou as tropas deste, desguarnecidas, num movimento de tenaz feito pela infantaria e os carros de combate. A táctica vitoriosa foi executada a coberto duma nuvem de poeira levantada pelos carros que arrastavam árvores. O registo histórico põe ênfase no cerimonial e na adivinhação, ritual que antecedeu o início da batalha, se bem que a qualidade do comando militar tenha evidentemente desempenhado um papel fundamental na vitória arrasadora. Depois Wen deu conta da sua boa sorte ao rei Zhou, em Luoyang, presenteando-o com 1000 prisioneiros Chu e 100 carros.

O aparato de guerra da época continha o equivalente chinês da cavalaria. Sem prejuízo de respeitar procedimentos previamente definidos ao entrar em batalha, os nobres recorriam à adivinhação para determinar se deviam ou não lutar. Acreditava-se que tudo se passava sob as vistas dos antepassados, sem cuja ajuda nunca se podia ter a certeza da vitória. Há registos de peças votivas ancestrais levadas para o campo de batalha e sabe-se que era costume, antes da batalha, invocar «os espíritos dos antigos governantes», pedindo-lhes protecção contra as armas inimigas. Uma vez tomada a decisão de entrar em guerra, os nobres desencadeavam surtidas arrojadas e envolviam-se em duelos de arco e flecha de cima de bigas velozes. Antes da batalha de Pi, em 595 a. C., três heróis Chu provocaram as linhas Jin: um conduzia a biga, o segundo lançava as flechas, o terceiro, com uma lança comprida, protegia os cavalos contra os soldados apeados. Perseguidos por um esquadrão de bigas Jin, os aventureiros Chu encetavam uma retirada arriscada quando um veado se lhes atravessou na frente e eles trespassaram-no com a última lança que tinham. Acto contínuo pararam e presentearam com o animal os seus perseguidores, que aceitaram o presente e cancelaram a perseguição. Ao consentir que a biga Chu fugisse, os nobres Jin reconheceram a bravura e o cavalheirismo do inimigo.

Mas não iriam durar muito estas escaramuças amaneiradas. O abandono da biga perante as setas mortíferas disparadas pelas bestas veio no século iv a. C. destruir os laços entre a aristocracia e a guerra. As batalhas transformaram-se em grandes confrontos de infantaria, grossas colunas de homens protegidos por armaduras e apoiados por besteiros, cavalaria e bigas. As escavações feitas a partir de 1976 no monte Li, local onde se encontra o túmulo do Primeiro Imperador, vieram revelar o ponto a que chegou a sofisticação do armamento e das armaduras. Vários milhares de guerreiros de terracota em tamanho natural aí foram colocados, entre 221 e 209 a. C., em câmaras subterrâneas, aparentemente dispostos em formação de batalha. Colunas de soldados de infantaria apresentam-se modeladas envergando cotas de malha de ferro, indo ao pormenor de se ver a cabeça dos rebites. Esse tipo de protecção representa um progresso notável em relação aos capotes acolchoados ou às peles curtidas de tubarão ou de outros animais que se usavam em vida do hegémon Huan. Mas o mais significativo de tudo é a vanguarda do exército de terracota — três filas de besteiros cujas armas tinham um alcance estimado em 200 metros. As pesadas setas que disparavam teriam rapidamente transformado em passadores os escudos dos soldados macedónios ou romanos seus contemporâneos.

Durante os dois séculos anteriores à unificação da China, em 221 a. C., a guerra era um assunto não só profissional e sério, mas também muito caro, e os estados mais importantes, para absorver os seus vizinhos mais pequenos, tinham de desviar mais recursos para fins militares. Os poderosos estados dos Qin e dos Chu conseguiam pôr em campo para cima de 1 milhão de soldados cada um. Como o núcleo duro dos exércitos dos Reinos Combatentes era constituído por tropas regulares, oficiais e soldados altamente treinados e bem equipados, os soberanos preocupavam-se em proteger aquilo que era um investimento considerável. A Arte da Guerra (Zhanshu), de Sun Zi, o mais antigo tratado militar que se conhece no mundo, relata quão severo era o código de disciplina do século v a. C. Quando um oficial dos Chu cometia a proeza de cortar um par de cabeças dos Qin antes de um ataque, era ele próprio decapitado por ter agido sem ordens. Como salientava o general Chu: «Estou certo de que é um oficial capaz, mas é desobediente.» No entanto, foi o estado dos Qin o primeiro a interromper o poder da aristocracia hereditária dentro do exército ao promover apenas os bravos e os capazes aos mais altos postos de 350 a. C. em diante. A partir daí, o exército passou a ser apenas uma máquina de guerra sem quaisquer propósitos de demonstração de nobreza. A sua crueldade era agora indisfarçável: «o sangue para os tambores» deixou de ser a execução cerimonial de meia dúzia de prisioneiros no fim da batalha quando, em 260 a. C., em Chang Ping, os generais Qin ordenaram a chacina de 400 000 prisioneiros Zhao. Por muito horroroso que este acto de violência tenha parecido na altura, a degradação máxima do estatuto dos militares na sociedade chinesa só iria acontecer mais tarde pelas mãos do confucianismo, nomeadamente no tempo dos imperadores da Primeira Dinastia dos Han.

A ascensão dos Qin

Antes de se desintegrar em três estados separados em 403 a. C., Jin estava já sob a ameaça de dois grandes rivais: o país dos Qin, a oeste, e o dos Chu, a sul. A verdade é que a intensa luta entre estes dois estados parcialmente sinizados continha em si a força propulsora que esteve na base do movimento que haveria de conduzir à unificação imperial. Dos dois contendores, os Qin eram os mais bem colocados depois do colapso dos Ji, dado que entre os outros estados do Norte (Qi, Yan, Zhao, Han, Wei, Song e Lu) não havia grande unidade de propósitos e no estuário do Yangzi os Chu tiveram de se haver com as forças beligerantes dos Yue e Wu. Só em 333 a. C. os Chu conseguiram uma vitória concludente sobre esses estados e consolidaram o seu flanco oriental, quando os Qin já se tinham reorganizado completamente sob a liderança de Shang Yang (falecido em 338 a. C.) e estavam prontos para passar à ofensiva. Em 330 a. C. os Qin estenderam a sua fronteira oriental até à margem do rio Amarelo, à custa dos Wei, e em 316 a. C. uma expedição para sudoeste proporcionou a anexação de Shu, grande parte da moderna província de Sichuan. Além de cercar os Chu, a conquista de Shu acrescentou recursos valiosos aos Qin graças aos sistemas de irrigação instalados na planície de Chengdu, que lhe valeram nas histórias o nome de «mar-em-terra».

O mérito do gigantesco projecto do rio Min, que transformou o potencial agrícola da planície de Chengdu, é atribuído a Li Ping, que foi nomeado governador em 250 a. C. Sendo embora improvável que Li Ping tenha vivido o suficiente para ver a obra completa, é indubitável que assistiu, em 246 a. C., à coroação do jovem de 13 anos Zheng, o futuro Primeiro Imperador, como rei dos Qin. Sob a superintendência do filho de Li Ping, o sistema de regularização das águas entrou em funcionamento pleno muito antes da unificação imperial, ocorrida em 221 a. C., e de facto a contribuição que os seus canais de irrigação deram para a economia do estado pode ter ajudado a fazer pender para o lado dos Qin a balança do poder. O sistema de irrigação assenta na divisão do rio Min em dois braços expressamente cavados por meio de um obstáculo de pedras empilhadas: um deles, seguindo o antigo curso do rio, transporta também trânsito de barcos e actua como canal de cheias; o outro, rasgado ao longo da encosta duma montanha, é dedicado inteiramente à irrigação. O presente do indicativo é aqui usado de propósito, na medida em que a prosperi-dade actual da província de Sichuan continua a assentar no sistema de Li Ping.

Transparentes para Sima Qian, historiador Han, foram os benefícios da engenharia de irrigação. Olhando retrospectivamente para a vitória dos Qin sobre os outros estados feudais, da perspectiva do reinado do imperador dos Han, Wu Di, Sima Qian compreendeu a importância fundamental do aumento da produtividade agrícola e da capacidade de abastecimento para a manutenção da supremacia militar, embora a sua atenção tenha sido captada pela intriga que envolveu a construção de um segundo sistema de conservação da água, o canal de Chengkuo. Relata Sima Qian

como o soberano do estado feudal de Han pretendia impedir a expansão oriental dos Qin exaurindo-os com projectos. Por isso enviou o engenheiro hidráulico, Cheng Kuo, ao rei dos Qin para o convencer de que se deveria abrir um canal entre os rios Jing e Luo. O canal proposto teria o comprimento de 300 li e seria usado para irrigação. O projecto já estava meio executado quando a trama foi descoberta. O rei dos Qin só não mandou matar Cheng Kuo porque este teve um argumento que o convenceu: «Embora este plano tivesse por finalidade fazer-vos mal, a verdade é que, se ele for concluído, trará grandes vantagens para o vosso reino.» E o rei deu ordens para a conclusão das obras. Uma vez terminado, o canal permitiu irrigar 40 000 ch’ing de terras pobres com água carregada de sedimentos ricos. A produção dos campos aumentou espectacularmente e os Qin viram crescer a sua riqueza e a sua força, até que acabaram por conquistar toda a China. O canal recebeu o nome de Cheng Kuo, que o construiu.

O estratagema virou-se dolorosamente contra o seu autor; os Han acabavam de colocar nas mãos dos Qin os meios para a futura vitória. O aumento da produção de cereais daquela vasta área do vale do rio Wei, de cerca de 227 000 hectares, permitiu alimentar mais soldados e a vantagem estratégica do canal este/oeste foi uma grande melhoria nas comunicações. O canal de Chengkuo, aberto em 246 a. C., transformou o território dos Qin na primeira área económica fundamental, um local onde a produtividade agrícola e as facilidades de transporte permitiam um fornecimento de cereais de tal maneira superior ao de outras áreas que quem dominasse aquela dominaria a China inteira. Este ponto foi notado por Ban Gu, que escreveu a sua História dos Primeiros Han (Qian Han Shu) em finais do século i a. C. O vale do rio Wei era,

na abundância das suas plantas em flor e em fruto, a mais fértil das nove regiões. Nas suas barreiras naturais de protecção e defesa é o refúgio mais inexpugnável que há. Por isso a sua influência se estendeu em seis direcções, pelo que foi por três vezes a sede do poder imperial.

As três dinastias a que Ban Gu se refere são a dos Zhou, que daí lançou o derrube vitorioso da dinastia dos Shang; a dos Qin, que criou o império unificado; e a dos Han, cujos primeiros 200 anos de reinado se centraram em Chang’an, cidade situada do outro lado do Wei, em frente da antiga capital dos Qin, Xianyang. A última dinastia que teve a sua capital no vale do rio Wei foi a dos Tang (618-906).

No relato da construção do canal de Cheng Kuo é interessante notar que o rei dos Han assumiu a vontade dos Qin de adoptar obras públicas a uma escala maior do que qualquer outro estado. A fama de inovação deve ter sido uma herança do ministério de Shang Yang, de que se falará a seguir; mas não se deve perder de vista que o projecto era tão vasto que até o rei dos Qin hesitou ao ter conhecimento da conspiração, mas quem o convenceu a continuar foi o engenheiro, que talvez só no decurso do trabalho se tenha apercebido do que ele poderia significar para os Qin, uma vez concluído. Outra versão da entrevista atribui a Cheng Kuo as seguintes palavras: «Com este expediente prolonguei por alguns anos a vida do estado dos Han, mas estou a concluir um sistema que irá sustentar o estado dos Qin por dez mil gerações.»

Como o ensino praticamente não existia no primitivo país dos Qin, os seus governantes tiveram de ir procurar fora de fronteiras os talentos de que precisavam. Cheng Kuo foi apenas um de uma longa lista de distintos conselheiros estrangeiros, entre os quais se incluía Shang Yang, eminente ministro que exerceu funções de 356 a 338 a. C., e também o arquitecto da vitória definitiva do Primeiro Imperador, Li Si. Oriundos dum pequeno feudo situado nas terras altas do rio Wei, a oeste do antigo domínio feudal dos Zhou, os Qin viram-se com a responsabilidade de defender a fronteira ocidental, depois de em 770 a. C. a capital ter sido transferida para Luoyang. Segundo certa tradição, a casa dos Qin descendia dum negociante de cavalos, o que provavelmente implicaria ascendência não chinesa, e já em 266 a. C. um nobre de Wei notava que «os Qin têm os costumes das tribos Jong e Di. Têm o coração dum tigre ou dum lobo. São gananciosos e indignos de confiança. São ignorantes das boas maneiras, das relações correctas e do recto comportamento. Mal surge uma oportunidade de ganho, tratam os familiares como se simples animais fossem». Mas as origens bárbaras não bastam para explicar a relutância da corte dos Qin em adoptar a etiqueta feudal. Aparentemente, os próprios dinastas Zhou comandaram um povo meio bárbaro, meio civilizado contra os Shang, mas, enquanto o reino dos Zhou se caracterizou pelo cerimonial, embora pouco mais do que um arremedo durante a estada em Luoyang, o estado dos Qin eximia-se às pretensões aristocráticas e concentrava-se nas tarefas práticas, como o aperfeiçoamento da agricultura e da metalurgia. Talvez a experiência da fronteira tenha estado na origem desta atitude mais terra-a-terra, já que a casa dos Qin herdou as terras dum monarca caído em desgraça e a necessidade de dominar os bárbaros intrusos. Construir uma base de poder não era apenas uma necessidade premente, era a própria condição de sobrevivência, que não deixava tempo para mais nada. Os Qin viram-se reduzidos aos seus próprios recursos e por isso o seu soberano recebeu de braços abertos as reformas que Shang Yang se propunha introduzir para delas tirar o máximo partido em favor do estado.

Mas foi o extremo rigor das reformas de Shang Yang que suscitou a admiração e o terror dos seus contemporâneos, não a intenção fundamental dessas reformas. Um novo espírito de governo, uma obsessão pela eficiência sem atender à moralidade tradicional, presidiram já às acções dos príncipes na agitação crescente do século iv a. C. O seu advento é normalmente relacionado com Shen Buhai (c. 400-337 a. C.), homem de origem humilde que durante muitos anos foi o principal conselheiro de Han. Os seus escritos fragmentários versam sobre a eficiência na administração e apontam no sentido de um estado burocrático. Um século depois, o filósofo Han Fei Zi resumia a teoria de governo de Shen Buhai na nomeação de funcionários em função da sua competência, na exigência de que estes cumprissem as obrigações inerentes ao cargo, na apreciação da valia de todos os ministros e no controlo da justiça. Embora salientasse o papel do governante, Shen Buhai não advogava o uso do poder irrestrito nem os castigos severos, ao contrário do sanguíneo legista Shang Yang, mas, mesmo assim, o rigor com que as punições eram aplicadas em Hanan ainda hoje causa arrepios. Quando, uma vez, o rei se embriagou e adormeceu num lugar frio, o guarda da coroa pôs-lhe um casaco por cima. Ao voltar a si, o rei perguntou quem o tinha coberto e, perante a resposta, castigou o guarda da roupa, mas mandou matar o guarda da coroa, na observância do princípio de que ultrapassar as funções dum cargo era pior do que ser negligente.

Chegado ao país dos Qin vindo de Wei, onde Gongsun Yang ou Shang Yang nascera, neto duma concubina real, este candidato a reformador encontrou em 356 a. C. um rei disposto a operar mudanças de longo alcance. Quando, cinco anos antes, o rei Xiao chegara ao trono, convidara para a corte homens capazes, mas os conselhos que lhe davam não pareciam trazer nada de novo. Apercebendo-se da impaciência do rei em relação a conselhos que insistiam nas tradições, usos e costumes, Shang Yang recomendou uma completa ruptura com o passado. «Um homem sábio», dizia ele, «cria as leis, mas um homem inútil é dominado por elas; um homem de talento reforma os ritos, mas um homem inútil é escravizado por eles. Com um homem controlado pelas leis é inútil discutir mudanças; com um homem escravizado pelos ritos é inútil discutir reformas. Que Vossa Alteza não hesite.» Impressionado pelo intelecto e pela determinação de Shang Yang, o soberano dos Qin concluiu: «Devemos ser orientados nos nossos planos pelas necessidades do momento — disso não tenho qualquer dúvida.»

Investido de pulso livre, Shang Yang introduziu um novo código de leis com o objectivo de reforçar o poderio militar dos Qin. Procurou reduzir a influência da aristocracia, desmembrar os clãs poderosos e libertar os camponeses da servidão; em lugar dos vínculos tradicionais instituiu a responsabilidade colectiva como método de manutenção da ordem. Foi assim que Shang Yang

ordenou que o povo se organizasse em grupos de cinco e dez famílias, que mutuamente vigiavam o comportamento de cada uma. Aqueles que não denunciassem os culpados seriam cortados ao meio; aqueles que denunciassem os culpados recebiam a mesma recompensa que era dada a quem decapitava um inimigo; aqueles que encobrissem um culpado recebiam o mesmo castigo que era dado a quem se rendia a um inimigo. Famílias com dois ou mais filhos crescidos que não vivessem em casas separadas tinham de pagar imposto a dobrar. Quem se distinguisse em batalha recebia do rei títulos, por estrita ordem de mérito. Quem se envolvesse em conflitos privados era punido de acordo com a gravidade da ofensa. Toda a gente tinha de colaborar nas tarefas fundamentais da agricultura e da tecelagem e só quem produzisse uma grande quantidade de cereal ou de seda ficava isento de trabalhar nas obras públicas. Aqueles que se ocupavam do comércio eram escravizados, juntamente com os miseráveis e os preguiçosos. Os de linhagem nobre que não tivessem valor militar perdiam o estatuto de nobreza. A hierarquia social estava claramente definida e a cada estrato era dada a sua quota-parte de campos, casas, criados, concubinas e roupas. Quem tivesse valor era distinguido com honrarias, ao passo que quem não tivesse valor algum, mesmo que fosse rico, não tinha direito a qualquer distinção.

A aplicação destas regras não foi de modo algum fácil, mas a contestação cessou quando o próprio herdeiro do trono delas foi vítima. Quando o príncipe herdeiro transgrediu uma das leis, Shang Yang defendeu que ele devia sofrer pelo menos um castigo simbólico. Por isso, o rei Xiao aceitou que o guarda do príncipe fosse despromovido e a cara do tutor do príncipe tatuada, presumivelmente com base em que estes nobres tinham partilhado com o príncipe a responsabilidade pelo mau comportamento.

Tal fanatismo custou caro a Shang Yang. Detestado, e temido tanto pelos nobres como pela gente comum, esteve seguro enquanto o seu protector se manteve no trono, mas, depois da morte de Xiao, em 338 a. C., os inimigos de Shang Yang rapidamente o acusaram de sedição e mandaram oficiais para o prender. Há na história da sua tentativa de fuga uma maravilhosa ironia. O ex-primeiro ministro começou por tentar esconder-se numa obscura estalagem, mas o estalajadeiro, ignorando a sua identidade, disse-lhe que com as novas leis não se atrevia a aceitar um homem sem autorização, com medo de ser punido. Foi assim que Shang Yang sentiu na pele a dureza do seu próprio código de leis. Percebendo que a sua fuga do país dos Qin era igualmente impossível por causa da fama que tinha, regressou às terras dos Shang que lhe tinham sido dadas em recompensa pelo serviço militar prestado contra o seu reino natal de Wei e aí se preparou para resistir. A derrota e a desonra iriam ser o seu destino, porque, para servir de exemplo aos rebeldes, o cadáver de Shang Yang foi despedaçado por bigas e todos os membros da sua família sofreram morte violenta.

O confucianista Sima Qian achou que «o mau fim que Shang Yang finalmente encontrou em Qin foi simplesmente o que ele merecia». No seu Livro da História (Shiji), o historiador enumera as faltas do reformador legista como sendo a desonestidade, a manha, a incapacidade de aceitar os pontos de vista dos outros e a desumanidade. Mas, como historiador honesto que era, Sima Qian regista os feitos do ministério de Shang Yang:

Ao cabo de dez anos o povo de Qin estava calmo. Nada que se perdesse na estrada era apanhado e guardado, os montes estavam livres dos ladrões, todas as famílias prosperavam, os homens batiam-se com bravura no campo de batalha, mas evitavam rixas de portas adentro, e as vilas e aldeias eram bem governadas.

O que isto significava, no entanto, era a sujeição do estado às necessidades do rei, um ideal totalitário. «Antigamente», comentava Shang Yang, «quem conseguia pôr o reino na ordem era quem considerasse sua principal missão pôr na ordem o seu próprio povo; quem conseguia vencer o mais forte dos inimigos era quem considerasse sua principal missão conquistar o seu próprio povo.» Está aqui patente o pressuposto legista de um antagonismo entre governados e governante, entre o povo e o estado. Shang Yang acreditava que era preciso que fosse pior para as pessoas cair nas mãos da polícia do que ir para a guerra.

Ao acentuar a tendência da época para a governação autoritária e o despotismo, Shang Yang transformou os relativamente atrasados Qin num dos mais poderosos estados feudais. E a queda de Shang Yang não implicou a abolição das suas reformas, porque os reis Qin não desconheciam as vantagens políticas e militares do poder centralizado, duma burocracia disciplinada e dum exército forte. O facto de lhes ter sido possível comportar-se de forma cada vez mais totalitária, até acabarem na autoridade irrestrita do Primeiro Imperador, deverá significar, no caso dos Qin, que a falta duma tradição feudal desenvolvida excluía qualquer oposição autêntica ao trono. Ao regressar duma visita ao reino dos Qin, cerca de 246 a. C., o filósofo confuciano heterodoxo Xun Zi escreveu que o povo tinha medo dos funcionários, não se viam ritos e cerimónias humanizantes, não se tocava música e não havia qualquer espécie de actividade intelectual. «Os simples e toscos habitantes», diz Xun Zi, «só podem obter benefícios dos seus superiores distinguindo-se em combate. E as recompensas aumentam na proporção do feito. Assim, um homem que regresse da batalha com cinco cabeças de inimigos é feito senhor de cinco famílias nas suas redondezas.» Esta dedicação inequívoca aos objectivos legistas alcançou a sua máxima vitória em 221 a. C., com pesados custos. Como Aristóteles sensatamente referiu a propósito do patético fracasso de Esparta na política grega após a derrota de Atenas em 404 a. C., um treinamento exclusivamente militar não constitui preparação para a paz e, em última análise, foi em si mesma causa da derrota. Os Espartanos «não apreciam o lazer e nunca se entregam a qualquer tipo de actividade superior à guerra ... aqueles que, como os Espartanos, se especializam numa e ignoram as outras na sua educação transformam os homens em máquinas.» De idêntica maneira, as insuficiências duma hierarquia militar perturbaram o império Qin, uma vez desaparecido o pulso forte do seu fundador. O Segundo Imperador viu-se em 209 a. C. ameaçado por súbditos empurrados para a rebelião aberta pelo comportamento prepotente dos governadores provinciais dos Qin.

A experiência dos rivais dos Qin no Sul, durante o período dos Reinos Combatentes, foi menos satisfatória. Apesar de ser o último estado feudal a ter um hegémon entre 613 a. C. e 591 a. C., Chu não pôde evitar envolver-se numa luta longa e desgastante com Wu e Yue. Wu, em particular, fazia trabalhar a cabeça dos Chu, sabido como era que os opositores exilados instruíam as suas forças armadas nas mais modernas técnicas da guerra. Há de facto vários relatos nas histórias sobre nobres que se tinham posto em fuga para as montanhas a sul do delta de Yangzi e ajudavam os não chineses a organizarem-se politicamente. Descobertas recentes de bronzes de estilo Zhou em locais situados ao longo da fronteira da província de Anhui reforçam a ideia de que o desenvolvimento cultural terá sido estimulado pela chegada de uma classe superior vinda do norte. Um exilado Chu se destaca como arquétipo da vingança: Wu Zixu. Fugido à ira injusta do rei Chu, que lhe tinha morto o pai e o irmão, Wu Zixu devotou todas as suas energias a provocar uma guerra entre Wu e Chu. Em 506 a. C. teve a satisfação de ver as tropas de Wu saquearem Ying, a capital do reino Chu, mas o seu verdadeiro prazer chegou quando testemunhou a humilhação do rei Chu, que foi obrigado a implorar a ajuda duns incrédulos Qin para conseguir rechaçar a força invasora dos Wu.

Inovador foi o recurso dos Wu a um ataque fluvial, seguindo o curso sinuoso do rio Yangzi até às portas de Ying. Nos sítios onde a linha de progressão não coincidia com a direcção das linhas de água naturais, como aconteceu no ataque dos Wu a norte, contra os pequenos estados de Song e Lu, em 486 a. C., foi aberto um canal de transporte para o abastecimento de equipamento militar. Esta via fluvial, ligando os sistemas dos rios Huai e Yangzi, acabou por ficar a constituir a secção de Han Kou do Grande Canal, que em finais do século vi d. C. foi construído para norte até ao rio Amarelo. Talvez exaustos por estas aventuras, os Wu caíram em 473 a. C. às mãos duma súbita invasão dos Yue, a potência do vale do baixo Yangzi que em 333 a. C. foi derrotada pelos Chu.

As dificuldades não bastam para explicar o facto de os Chu terem ficado para trás na luta pela supremacia. Apesar de o reino Chu ser dotado dum clima temperado, ideal para a agricultura intensiva, não houve uma exploração deliberada desse recurso, ao contrário do que aconteceu no seu impiedoso rival, Qin. É bem possível que o terreno de loess do estado do Norte, com a consequente importância da irrigação, contivesse em si a alavanca com que o rei dos Qin fazia mover o seu povo como uma força unida, enquanto o rei dos Chu não precisava de tanta coesão social para produzir um confortável excedente agrícola. Outro factor a contrariar a centralização terá sido uma evidente escassez de cidades. Embora as vilas e cidades descobertas no reino dos Chu sejam melhores do que as dos estados do Norte, até agora muito poucas foram localizadas. Mas dos achados tumulares resulta à evidência que o estado possuía uma economia avançada, que incluía o trabalho em bronze e ferro; a descoberta de armas entre estes artefactos funerários confirma o receio expresso nas histórias quanto às lanças de ponta de ferro dos Chu, «aguçadas como ferrão de abelha». Sendo embora os Chu indubitavelmente atrasados, a absorção de tantos territórios feudais garantiu-lhes que o progresso material nunca fosse demasiado lento. Uma organização feudal de alicerces tão pouco profundos como os dos Qin dava aos Chu a propensão natural para as doutrinas legistas, mas não apareceu nenhum Shang Yang que conferisse a este estado disperso uma organização suficientemente robusta para suportar as tempestades políticas que na altura grassavam. Embora só com a conquista dos Chu, em 223 a. C., os Qin pudessem ter a certeza da vitória final, o poder crescente das suas forças armadas ficou demonstrado numa série de derrotas infligidas ao exército Chu durante as primeiras campanhas de 280 e 278 a. C., que resultaram na anexação de vastas áreas do vale do médio Yangzi.

O contraste mais flagrante entre os Chu e os Qin residia na promoção de obras públicas; além dos seus vastos sistemas de irrigação, a segunda é conhecida por se ter empenhado num extenso programa de construção de estradas e pontes, bem como no levantamento de muralhas defensivas. Muitos dos estados com fronteiras confinantes com as estepes construíram muralhas como forma de resolver o problema das incursões a cavalo. A ameaça era tão séria para os Zhao que, no século iv a. C., o seu rei, indiferente à chacota de outros reis, mandou que o seu povo adoptasse o modo de trajar dos Bárbaros, pois passou a usar não só as tácticas de cavalaria dos Hu, mas também as calças usadas por estes velozes tribais da Mongólia. A solução adoptada pelos Qin pouco depois de 300 a. C. foi uma extensa muralha, precursora da Grande Muralha, construída por ordem do Primeiro Imperador.

Muitas vezes se tem chamado a atenção para a ubiquidade das muralhas na civilização chinesa. Todas as cidades da China têm a sua muralha circundante, não havendo hoje praticamente aldeia do Norte da China, qualquer que seja o seu tamanho, que não tenha pelo menos um muro de terra batida à volta das casas e dos estábulos. Dentro da cidade histórica havia muros que dividiam as casas em lotes e ilhas, secções e bairros, com portões, por vezes inseridos em grandes torres de vigia, que controlavam os meios de acesso duma parte para outra. As cidades obedeciam a planos e a disposição dos muros reforçava o poder das autoridades — o nobre e seus funcionários. Se até os antigos nómadas asiáticos rodeavam os seus acampamentos dum muro de terra, não surpreende que a cultura agrária da China levantasse muros à volta das suas primeiras povoações. A paisagem rural sempre foi dominada pela cidade murada, que continha os celeiros do estado que recolhiam o tributo ou imposto em espécie de que o governo dependia. Esta reserva alimentar mantinha o exército e alimentava a mão-de-obra recrutada para as obras de aproveitamento da água. À medida que se tornavam mais complexos e se generalizavam os canais e os projectos de irrigação, particularmente a partir do império dos Han, a cidade fortificada no meio do campo tornava-se a sede efectiva de governo e administração locais. Como o estrume humano era o principal adubo, dado que os Chineses não mantinham rebanhos de animais de pastagem, era inevitável que a agricultura intensiva se desenvolvesse nos campos adjacentes às muralhas das cidades.

Daí que, na mente do Primeiro Imperador, a Grande Muralha, que mandou construir em 214 a. C., mais não fosse do que uma versão aumentada duma muralha urbana, destinada a isolar o mundo ordenado da China das atenções dos povos não civilizados que vagueavam pela estepe. Sem paralelo na história da humanidade é a extensão de 3000 quilómetros que a Grande Muralha acabou por atingir, fazendo dela a única obra do homem que é visível pelas tripulações em órbita no espaço. Não menos impressionante para os seus contemporâ- neos foi a rede de estradas que os Qin começaram a construir para tirar partido dos territórios acabados de conquistar. E não pode haver qualquer dúvida quanto à superioridade destas estradas em relação às romanas. Enquanto uma estrada romana se pode descrever como um muro pesado que com dificuldade foi deitado de lado, a antiga estrada chinesa era essencialmente uma fina e convexa camada impermeável assente em subsolo normal. Ao usar este piso de estrada leve e elástico, os engenheiros chineses evitavam o problema das mudanças de temperatura e antecipavam-se dois milénios à técnica de John McAdam. Outra vantagem em termos de tracção parece ser o facto de o arnês chinês se adaptar melhor ao animal do que o de atar ao pescoço e à barriga, usado no Ocidente, que dificulta a respiração do cavalo.

Embora ainda não se disponha de informação suficiente sobre a construção de pontes, o crescente interesse dos Qin pelo vale do baixo rio Amarelo está bem patente na localização de duas grandes pontes, uma sobre o Wei e outra sobre o Amarelo. A ponte sobre o Wei, perto de Xianyang, em funcionamento a partir de 290 a. C., era constituída por 68 lanços de 9 metros cada, dando-lhe um comprimento superior a 600 metros. Embora todas as vigas fossem de madeira, formando um tabuleiro com 12 metros de largura, alguns dos pilares perto das margens eram de pedra. A ponte sobre o rio Amarelo era inteiramente feita de barcaças, método em que os reis Zhou foram pioneiros. Sabe-se que esta ponte de pontões, lançada em 257 a. C. junto à confluência dos rios Wei e Amarelo, foi utilizada durante vários séculos.

O triunfo dos Qin esteve intimamente ligado à tecnologia. Embora o Primeiro Imperador já antes da conquista dos estados feudais tivesse patrocinado projectos de grande porte, estes tornaram-se indispensáveis a partir de 221 a. C. O imperador ficou a braços com um exército enorme, além de inúmeros prisioneiros e dos nong, camponeses libertados do antigo feudalismo. Para ocupar todos estes braços ociosos e aniquilar o que restava da anterior estrutura social, a política imperial ampliou grandemente o programa de obras públicas.

Na base de todo o movimento no sentido dum estado centralizado, bem organizado, com vista à implantação na China duma civilização perfeitamente capaz de sobreviver independentemente de outras partes do mundo antigo, esteve uma revolução no trabalho com os metais. Apesar de o aparecimento do bronze na China ter sido tardio, os artífices Shang atingiram um nível técnico muito superior ao de outros utilizadores do bronze. Os avançados fornos da indústria cerâmica, mais antiga, deverão ter desempenhado um papel importante neste desenvolvimento, facilitando um salto em frente sem precedentes na metalurgia do ferro durante o período dos Reinos Combatentes (481-221 a. C.). Referências recuadas no tempo apontam para uma sofisticada fundição do ferro em Qi, mas a arqueologia sugere o século vi a. C. como início da metalurgia do ferro enquanto indústria fundamental para o fabrico de ferramentas, se bem que as técnicas avançadas só tenham provavelmente sido aperfeiçoadas e tornadas de uso generalizado no século seguinte.

Muito surpreendente é o facto de a fundição do ferro ter sido praticada quase logo que o ferro foi conhecido, enquanto no Ocidente a metalurgia do ferro ficou dependente da forja até cerca de 1350. Também o aço poderá ter sido produzido no final do período dos Reinos Combatentes. Entre as razões possíveis para o rápido progresso na tecnologia do ferro e do aço está o alto teor de fósforo dos minérios de ferro chineses, que têm um ponto de fusão baixo; bons barros refractários, que permitiam a construção de bons fornos e bons cadinhos; a invenção dos foles de pistão de dupla acção, que produziam um sopro forte e contínuo para os fornos, mantendo as temperaturas altas; a aplicação do vapor a esses foles; o uso do carvão para fazer fogueiras muito quentes à volta dos cadinhos; e a experiência derivada das indústrias da olaria e do bronze.

O ferro foi pois uma dádiva essencial para os camponeses da China. Fundido em machados, enxós, cinzéis, pás, foices, enxadas e arados, a eficiência do metal conjugou-se com a irrigação para fazer aumentar a produção agrícola ao ponto de tornar desnecessária a escravatura rural da Grécia e de Roma. Exactamente quantos escravos havia numa dada altura é impossível de calcular com base nos testemunhos que sobreviveram, mas há acordo geral quanto ao facto de ser pequena esta classe inferior. Todavia, no ano 44 da nossa era havia 100 000 escravos do governo, a maioria dos quais a tratar dos animais propriedade do estado. A trabalhar na extracção e produção do ferro só há referência a condenados; ao contrário dos escravos, eram alvo de sentenças de servidão por um período determinado de tempo. Os funcionários queixavam-se com frequência da inutilidade dos escravos do estado que «preguiçam de mãos pousadas», em contraste com os camponeses, que trabalhavam no duro. Também havia escravos privados, mas, em flagrante contraste com Roma, os direitos civis do escravo doméstico não eram despiciendos. O dono não podia matar um escravo sem mais nem menos; até o usurpador Wang Mang foi em 3 a. C. obrigado a ordenar que um dos seus filhos se suicidasse por ter morto um escravo. A polí-tica do governo orientava-se sempre pela redução da escravatura, pelo que eram regularmente publicados éditos a libertar quem tivesse sido escravizado por razões de pobreza e fome. Na história da China não há qualquer equivalente à galera de guerra do Mediterrâneo movida a remos por braços escravos. Quando, no século i a. C., foi conhecida a azenha, foi recebida de braços abertos por ser mais humana e mais barata de operar do que os mecanismos movidos pela força de homens ou de animais.

Na guerra, o papel do ferro começa por não ser muito claro, a não ser no fabrico das cotas de malha. No monte Li, os guerreiros de terracota que guardam o túmulo do Primeiro Imperador são apresentados com sete estilos de armadura diferentes, com cotas de malha feitas de inúmeras lâminas de ferro montadas de tal maneira que as de cima apertam as de baixo. Só se descobriram restos de uma cota de malha autêntica, e isso aconteceu em 1965 na província de Hebei. Raros são também os vestígios de armas de ferro relativos ao período dos Reinos Combatentes, nada tendo vindo à luz nas escavações do monte Li. A espada mais afiada aí encontrada era feita por um processo raro, em que o bronze era revestido de crómio. Quando, ao cabo de mais de dois milénios, foi desenterrada do chão, a lâmina ainda estava tão afiada que cortava um cabelo.

Com a chegada de Zheng à maioridade, em 238 a. C., o estado dos Qin preparou-se para a batalha final. Demitido Lu Buwei, que tinha sido fundamental para garantir a subida do seu pai ao trono, o jovem rei voltou-se para outro estranho, Li Si (280-208 a. C.), antigo discípulo de Xun Zi, cuja firmeza de pensamento deverá ter contribuído para que o novo ministro se mantivesse imune ao entusiasmo supersticioso do futuro primeiro imperador pela magia tauista. A queda do «Tio» Lu veio a ser engrinaldada de lendas depreciativas por historiadores empenhados em denegrir o nome de Zheng. Numa sociedade que adorava os antepassados era irresistível a tentação de representar a rainha mãe como uma pega e o filho desta como um bastardo. Além da poderosa posição que granjeara durante a menoridade do rei, Lu Buwei pode ter sido olhado como um obstáculo à vontade do trono, por causa dos 3000 letrados que mantinha na capital. Este influxo de opiniões dos outros estados feudais não era do agrado do jovem rei e só a eloquência de Li Si lhe evitou ser banido juntamente com os outros estrangeiros em 237 a. C. A carreira de Lu Buwei é caso único na China antiga: é o único exemplo dum comerciante a ocupar um alto cargo. Não era costume os comerciantes (shang) serem autorizados a entrar para o funcionalismo, o que significava que a sua riqueza de nada lhes valia para os fazer sair dum baixo estrato social. O legismo era particularmente crítico em relação às actividades dos homens de negócios, havendo uma lei de 214 a. C. (com toda a probabilidade, obra de Li Si) que os obrigava a incorporar-se em expedições militares que partiam da China do Sul. Esta prática de mandar actuais e antigos mercadores, bem como os filhos e netos de mercadores, juntamente com os condenados, como tropas de guarnição e guardas de fronteira foi mais tarde relançada por Wu Di, imperador Han. Iremos encontrar ecos desta atitude tão antiga no desterro para o interior de jovens pertencentes a famílias abastadas durante a Grande Revolução Cultural Proletária, de finais dos anos 60 do nosso século.

Os registos arqueológicos permitem também verificar, pela disposição das cidades, o grau de fiscalização que as autoridades exerciam. A mais bem escavada das cidades dos Reinos Combatentes, Yanxiadu, capital do estado de Yan, a nordeste, consistia numa cerca rectangular com 4 por 8 quilómetros, que estava subdividida por muros de terra em três secções distintas. Os bairros industriais e comerciais estavam completamente separados dos destinados a residência. A presença de edifícios oficiais, bem como de quartéis perto dos portões das diversas muralhas, dão testemunho da mudança de função da cidade, de reduto aristocrático fortificado para um centro organizado de administração e comércio. A existência de uma casa da moeda em Yanxiadu mostra que o dinheiro se tinha tornado um factor significativo na expansão da economia da antiga China, com moedas de vários feitios cunhadas em bronze a circular livremente entre os estados feudais. Só após a unificação, em 221 a. C., se estandardizou a cunhagem dos Qin; as suas moedas eram redondas com orifícios quadrados no meio, o que facilitava a sua guarda enfiadas em cordéis.

Guiado pelos conselhos de Li Si, o futuro Primeiro Imperador dispôs resolutamente as suas tropas contra um estado a seguir ao outro, «como um bicho-da-seda devora uma folha de amoreira», no dizer de Sima Qian. O último rei dos Zhou já tinha sido apeado do seu pequeno trono em 256 a. C., num sinal inequívoco das intenções dos Qin. Apesar de o exército dos Qin ter sofrido reveses às mãos dos Zhao e dos Chu, a superioridade em meios humanos e em recursos acabou por falar mais alto, com Han a cair em 230 a. C., logo seguida de Zhao (228 a. C.) e Wei (225 a. C.), mas o combate decisivo só teve lugar no ano de 223 a. C., quando foi derrotado o estado rival dos Chu. O derrube dos Yan, em 222 a. C., e a rendição sem luta dos Qi, um ano depois, fizeram do «Tigre dos Qin», como Zheng era então chamado, o senhor da China.

Cem escolas em competição

O tumulto dos últimos séculos antes do triunfo dos Qin suscitou grande efervescência intelectual. A incerteza da época contrastava com uma cada vez maior prosperidade, com as cidades a crescerem em tamanho e em número, a tecnologia a fazer progressos impressionantes e o comércio a assumir importância suficiente para sofrer repressão periódica. Os reis pareciam indiferentes a tudo menos ao seu lucro pessoal, pelo que só os conselheiros bem falantes podiam esperar fazer carreira oficial e fugir a um fim de miséria. Mesmo um político de sucesso como Shang Yang estava sujeito a descobrir que no fim do seu mandato o esperava a morte e a desonra. As perturbações políticas eram lamentadas por inúmeros filósofos que se queixavam amargamente da influência marginal que tinham sobre os acontecimentos do seu tempo. A sua frustração traduzia-se numa produção de ideias sem paralelo na unidade monolítica do império chinês. Viam-se obrigados a escrever livros porque os reis raramente escutavam o seu conselho; não eram poucos os comentadores que suspiravam pela ordem do período da dinastia dos Primeiros Zhou, já que não havia condições que possibilitassem de imediato uma alternativa ao feudalismo. Só em 221 a. C. o rei dos Qin conseguiu ganhar supremacia e impor um regime burocrático que não dava margem para sentimentos feudais nem para variações locais. Nessa altura foi tudo normalizado, até o pensamento. A reacção fez abalar a primeira dinastia imperial da história da China volvida uma geração, abrindo caminho ao compromisso do império dos Han.

O período dos Reinos Combatentes foi o tempo das «Cem Escolas», em que filósofos errantes ofereciam conselho a qualquer senhor que os quisesse ouvir ou recrutavam discípulos para fundar uma escola. À excepção de Han Fei Zi, que era príncipe da casa real dos Han, os filósofos eram aparentemente todos shi, classe plebeia letrada e administrativa. A sua posição social dava-lhes direito a uma liberdade de pensamento e de movimento que aos nobres seus superiores era negada. No patrocínio dado à filosofia por Lu Buwei enquanto foi primeiro-ministro (250-237 a. C.) pode detectar-se algo parecido com o complexo de culpa do comerciante perante as suas origens, na camada inferior da sociedade chinesa. O facto de o ministro que subiu a pulso ter tido a arrogância de expor publicamente um livro por ele encomendado juntamente com uma pequena fortuna em ouro, destinada a premiar quem conseguisse descobrir um erro no texto, mais não faz do que acentuar o fosso que separava o negociante sem estudos do homem culto. Entre os chineses que nos nossos dias vivem fora da sua terra, no Sueste asiático, o mesmo sentimento de inferioridade impele a sua comunidade empresarial a subsidiar generosamente escolas e universidades.

Quatro filosofias principais se desenvolveram antes de 221 a. C.: o confucianismo, o tauismo, o moísmo e o legismo. Embora as duas primeiras viessem a ter durante muito tempo importância na história da China, as filosofias mais acaloradamente debatidas antes da unificação dos Qin foram as duas últimas. Diz-se que, tradicionalmente, os Chineses seriam tauistas em privado e confucianistas em público, mas talvez se possa acrescentar que aqueles que entraram para o funcionalismo público imperial sentiram sempre a persistente influência dos conceitos administrativos do legismo. Só as doutrinas de Mo Zi (c. 479-438 a. C.) desapareceram da mente dos Chineses depois de, em 213 a. C., o Primeiro Imperador ter acabado com as «Cem Escolas».

Filósofo moralista, Confúcio (551-479 a. C.) baseava a sua doutrina social numa ética feudal que esperava do governante que agisse com benevolência e sinceridade, evitando a todo o custo o uso da força. Tal como fizeram o duque de Zhou e outros grandes príncipes antigos, tinha de conduzir os negócios do estado de forma que a jus-tiça chegasse a todos os súbditos. Assim, muitos soldados eram sinal de mau governo. Se é certo que a biografia do filósofo no Livro dos Registos, de Sima Qian, revela que Confúcio «em criança preparava muitas vezes os vasos sacrificiais» e em adulto granjeou a reputação de «perito em matérias de ritual», mostra também como esse comprazimento nas cerimónias de culto dos antepassados o levou a formular um código de conduta que situava o indivíduo numa tradição firmemente ligada ao passado. «Eu sou um transmissor, não um criador», disse Confúcio. «Acredito nas coisas do passado e tenho-lhes amor.» Para ele a tradição estava contida no conceito de li, que se traduz normalmente por «ritos», «etiqueta», «ritual», mas na realidade significa «boas maneiras». É a cortesia que é essencial a uma pessoa culta e ainda hoje os Chineses vêem nas boas maneiras um sinal de carácter moral. Li não é só as regras da delicadeza, mas antes a maneira justa de abordar correctamente cada pensamento e cada acto. Para Confúcio, a cerimónia de culto dos antepassados era o ponto de encontro de dois mundos, o espiritual e o temporal, o passado e o presente, em que a boa sorte era transmitida ao descendente cumpridor, guardião dos valores tradicionais. Disse ele que, de acordo com as regras de li, o afecto e o respeito eram para ser expressos em vida dos pais de cada um pela via da obediência e, depois da sua morte, pela via dum adequado funeral e pelas oferendas levadas aos seus túmulos. A piedade filial (xiao) implicava a continuação da deferência para com os pais pela vida fora; nunca se tratava apenas da atitude natural das crianças.

O confucianismo instilou tão profundamente o apreço pelo enorme papel desempenhado pela cultura na sociedade civilizada que se pode dizer que o pensamento chinês a partir dele foi uma interpretação deste princípio basilar. Referindo-se aos tauistas, disse Confúcio: «Eles não gostam de mim porque eu quero reformar a sociedade, mas, se nós não vivermos com os nossos semelhantes, com quem havemos de viver? Não podemos viver com os animais. Se a sociedade fosse como devia ser, eu não precisava de tentar mudá-la.» É uma tecla constantemente batida ao longo dos tempos pelos discípulos de Confúcio, cuja perspectiva assentava num profundo sentido da responsabilidade pessoal pelo bem-estar da humanidade. Dado que para eles o estado era como uma grande família, ou um conjunto de famílias ao cuidado duma família principal, também entre as características que definiam as relações entre o rei e os seus súbditos havia lugar para a virtude da obediência. Quando o questionavam sobre o governo, Confúcio respondia: «Deixemos o príncipe ser príncipe, o ministro ser ministro, o pai ser pai, o filho ser filho.» O homem culto aceitava a autoridade dos seus superiores porque prezava a justiça, ao contrário do homem egoísta, que só tinha respeito por si próprio. Quando vê uma oportunidade de ganho, pára para pensar se é justo aproveitá-la; quando vê que o seu príncipe corre perigo, está pronto para dar a vida por ele; quando dá a sua palavra, passe o tempo que passar, cumpre-a sempre.

Esta insistência na submissão e na lealdade foi uma das características do confucianismo que no século i a. C. lhe iriam garantir o estatuto de ideologia oficial. Determinantes para esta consagração foram os ensinamentos de Xun Zi (c. 298-238 a. C.), que preconizava uma estrita hierarquia social e uma rigorosa formação moral por causa da sua heterodoxa convicção de que o homem era mau por natureza. No pensamento de Confúcio insiste-se menos na necessidade do controlo político pela simples razão de a decadência do sistema feudal ainda não estar tão avançada como no tempo de Xun Zi. Pelo contrário, Confúcio defendia que só era importante que o estado tivesse um chefe piedoso que pelo exemplo ensinasse o povo a seguir os usos tradicionais. Foi ao ponto de prevenir os reis progressistas de que a fixação de leis era uma prática perigosa para a nobreza. Chamando a atenção para o facto de um código de leis escritas representar uma ruptura com os costumes, previu com grande perspicácia que o código de penas em 513 a. C. inscrito num tripé pelo rei dos Qin seria aprendido e respeitado pelo povo acima de tudo o resto. As autoridades não mais iriam poder evocar a tradição para declarar correctos os seus juízos. Mas Confúcio nem por sombras estava a sugerir que se justificariam decisões arbitrárias. Sem um profundo domínio do li não era possível formular uma opinião correcta. Daí a importância que atribuía ao estudo.

Amor à humanidade sem amor ao estudo depressa se transforma em tolice. Amor à sabedoria sem amor ao estudo depressa se transforma em falta de princípios. Amor à rectidão sem amor ao estudo depressa se transforma em rispidez. Amor à coragem sem amor ao estudo depressa se transforma em caos.

Outra ideia influente de Confúcio dizia respeito ao sobrenatural. A sua atitude perante a religião era puramente prática. «Guardo respeito pelos espíritos», disse ele aos seus discípulos, «mas mantenho--os à distância.» Não se trata aqui do racionalismo absoluto de Xun Zi, nem sequer dum ponto de vista céptico, mas duma sugestão de que o reino celeste estava muito acima da compreensão humana; algo que não se descobre pela decifração das fendas que o calor faz nos ossos dos animais. Nem se podia cair na facilidade de interpretar como fruto da vontade do Céu a ocorrência de fenómenos naturais como as estrelas cadentes, os terramotos e as inundações. A relutância de Confúcio em pronunciar-se sobre a religião contribuiu para introduzir um sentido de equilíbrio tanto no mundo sobrenatural como ao nível terreno, pelo que, na história da China, as «guerras santas» primaram pela ausência. Embora os últimos anos da sua vida tenham sido marcados pela desilusão, porque nenhum rei alguma vez ofereceu a Confúcio um cargo oficial ou deu ouvidos aos seus ensinamentos, a influência posterior do seu pensamento foi de tal modo grande que, com toda a justiça, foi cognominado «imperador sem coroa» da China.

Importantes na consolidação do êxito do confucianismo foram Mêncio e Xun Zi, que viveram durante parte do último século do período dos Reinos Combatentes. O mais velho, Mêncio, combateu as filosofias opostas, em especial o moísmo, e propôs a doutrina da bondade natural da espécie humana. Foi também o arquétipo do bom filho, defensor da família contra o estado usurpador. Sempre que um rei perdia a aceitação dos seus súbditos e recorria à opressão, considerava-se que o Mandato do Céu (tian ming) estava revogado e se justificava a rebelião. Esta teoria democrática, espécie de válvula de segurança da constituição chinesa, resultava da convicção de Mêncio de que a soberania última residia no povo — o Céu concedia um trono, mas a sucessão dependia da aceitação voluntária do novo rei pelo povo. E a questão da aprovação não se aplicava só em tempos de transição dinástica, quando o povo podia indicar a escolha de um sucessor rejeitando-o ou aceitando-o, pois também em tempos normais as grandes decisões políticas do governo tinham de reflectir a opinião popular. Assim, só a observância dos valores tradicionais por parte do rei podia garantir a continuidade. O rei tinha de alimentar o povo, assim sustentando as relações de família, o cimento que mantinha unida uma sociedade civilizada. A agricultura era para Mêncio de fundamental importância, porque considerava que, se não houvesse uma adequada distribuição de alimento e agasalho, não podia haver distinção significativa entre honra e desgraça. Em tempos de fome, pergunta ele, «Que oportunidade tem uma pessoa de cultivar as boas maneiras e a rectidão?». Devia ser preocupação do rei melhorar o nível de vida do povo, reduzir os impostos, resolver os conflitos e corrigir as fronteiras. «Quando um rei se regozija com as alegrias do seu povo, o povo regozija-se com as dele; quando se aflige com as tristezas do seu povo, este aflige-se com as tristezas do rei. Uma corrente comum de alegria haverá de invadir o reino; uma corrente comum de tristeza haverá de fazer o mesmo.»

Para Mêncio, o ideal era o sistema do «poço cercado de terras» (jintian), que terá eventualmente existido durante a era da dinastia dos Primeiros Zhou. Defendia ele que era necessário recuperar esse sistema de posse da terra para aliviar a labuta do camponês-agricultor, a quem a acumulação de dívidas obrigava a vender a terra e passar a rendeiro ou meeiro. Supõe-se que o «poço cercado de terras» terá sido constituído por nove talhões de terra; o talhão do meio pertencia ao rei e os oito em volta eram cultivados cada um por uma família. Consciente de que seria necessário um esquema mais flexível nas áreas de grande densidade populacional, Mêncio aconselhava:

Nas regiões mais longínquas, que se observe a divisão em nove lotes, mas ficando o do meio para «lote de ajuda» — um terreno que as oito famílias se entreajudam a cultivar para o rei. Perto das vilas e cidades, que o povo pague um imposto de um décimo do que colhe e preste serviço militar.

A percentagem de imposto aqui recomendada terá sido um dos «antigos estatutos» do lendário Shun, os quais, segundo Mêncio, «nunca rei algum errou por ter cumprido». Uma justa distribuição de terras, salários para os funcionários feudais e escolas seriam os melhores instrumentos da estabilidade dum estado. Embora Mêncio não demonstrasse qualquer confiança no incapaz rei dos Zhou, a sua afeição pelos antigos reis reforçava nele a esperança de uma nova casa real vir um dia a reunificar a China e a restaurar as velhas instituições políticas.

A protecção contra a tendência autoritária da filosofia do seu tempo provinha da crença de Mêncio na bondade natural. Falando da desumanidade dos soberanos, dizia: «Um homem benevolente torna o seu amor extensivo daqueles a quem ama àqueles a quem não ama. Um homem cruel torna a sua crueldade extensiva daqueles a quem não ama àqueles a quem ama.» A bondade era a marca dum homem autêntico, sendo a maldade e a crueldade explicadas nos muito modernos termos de privação social. Uma boa educação era essencial. A um discípulo disse Mêncio certa vez: «Um trilho através da montanha, se for utilizado, em breve se torna um caminho, mas, se não for utilizado, também em breve se cobre de erva. Agora o teu coração está bloqueado pelas ervas.» Isto condiz com o modelo tradicional do letrado--funcionário confuciano que fez parte do funcionalismo público imperial após a fundação da dinastia dos Han, em 206 a. C. Era um homem firme nos princípios e benevolente nas atitudes: servia o trono e protegia as vidas da gente comum.

Enquanto o colapso do feudalismo fez inclinar Mêncio para a monarquia ideal, em que o rei virtuoso imitaria os reis-sábios do passado, Xun Zi tinha menos paciência para subtilezas feudais e declarava que o mérito devia ser a única base para promoção. Tendo vivido até 235 a. C., perto do fim do período dos Reinos Combatentes, Xun Zi estava em boa posição para sistematizar a herança confuciana e o seu pensamento teve grande influência nos imperadores Han, apesar de, com o tempo, os Chineses o terem subordinado a Mêncio. A sua reputação foi desde sempre afectada pela animosidade dedicada a dois dos seus discípulos, Han Fei Zi e Li Si. Em certos aspectos, as teorias de Xun Zi aproximaram-se das dos legistas, em grande parte por força da sua heterodoxia fundamental sobre a natureza humana. Em contraste com a forte crença de Mêncio no potencial de bondade que existiria em todos os homens, Xun Zi afirmava que a natureza humana era basicamente má, conclusão que o levava a enfatizar a necessidade da educação e da formação moral. Para ele, o reino espiritual era uma amável ficção e punha a ridículo as práticas supersticiosas destinadas a obter favores do Céu, como, por exemplo, chuva. «São feitas», dizia ele, «por mero ornamento. Por isso o homem culto as considera ornamentais, mas o povo considera-as sobrenaturais.» Como os rituais e cerimónias eram necessários para a manutenção da sociedade civilizada, «os reis antigos [...] instituíam práticas rituais para reprimir a desordem, domar os desejos dos homens e prover à sua satisfação».

Xun Zi considerava que um rei podia governar bem desde que percebesse a real finalidade dos ritos e aprendesse a nomear e controlar os funcionários. Disse ele:

Se a agricultura for reforçada e os seus produtos economicamente usados, a natureza não pode trazer empobrecimento. Se o nível de vida do povo for suficiente e o seu trabalho estiver de acordo com as estações, a natureza não pode provocar doenças. Se as boas maneiras forem sempre cultivadas, a natureza não pode causar infortúnio. Portanto, as cheias e as secas não podem trazer a fome, o extremo frio ou calor não pode causar doenças e os maus espíritos não podem fazer mal.

Pese embora a flagrante diferença entre Mêncio e Xun Zi no que respeita à questão da natureza humana, este último filósofo nunca foi um apoiante do estado dos Qin. O desdém manifestado pelos reis Qin em relção aos ritos e a sua preferência pelo recurso à força mereceram a condenação de Xun Zi, que os considerava curtos de vista. «O que seguir a via do ritual avançará, o que seguir qualquer outra via falhará», previu ele profeticamente.

Mêncio e Xun Zi estavam também de acordo quanto ao perigo que constituía o pensamento de Mo Zi. Do especial desagrado de Xun Zi eram as doutrinas de frugalidade e de simplicidade nos ritos funerários. Da vida de Mo Zi pouco se sabe, e mesmo os seus escritos sobreviveram apenas de forma truncada, mas terá vivido algures entre a morte de Confúcio, em 479 a. C., e o nascimento de Mêncio, em 372 a. C. Aparentemente, ocupou um alto cargo no estado dos Song, onde a sua perícia em estratégia defensiva terá sido um trunfo. Há uma tradição tauista que atribui a rejeição do confucianismo por parte de Mo Zi ao desagrado que este sentia pelas cerimónias rebuscadas e dispendiosas, mas não é de excluir a hipótese de ele, engenheiro, detestar a facilidade com que tantos letrados confucianos se acomodavam a confortáveis carreiras de consultores de ritual.

Mo Zi terá viajado muito, visitando estados uns a seguir aos outros e propagando uma doutrina utópica de amor universal. Reportando-se à perfeição da dinastia dos Xia, em que, segundo se dizia, as pessoas se tratavam umas às outras como membros duma só família e tratavam todas as crianças como se de filhos seus se tratasse, condenava a preocupação dos confucianos com a linhagem, que considerava causadora de discriminação social. Em Lu, que pode ter sido o seu estado natal, Mo Zi dirigiu uma escola e, a partir dela, os seus discípulos intervinham em disputas políticas, oferecendo não só exortação ética, mas também ajuda prática. O ponto forte da atracção que Mo Zi exerceu sobre o espírito da sua época estava no seu interesse pelo lado técnico, mais do que pelo moral, da governação. Quase como se o governo fosse uma máquina, pesquisava métodos para melhorar o seu desempenho e avisava os reis das condicionantes perigosas que as guerras acarretavam; dizia ele que os estados só deviam procurar meios de autodefesa e autopreservação quando a China fosse vítima de agressão. Profundamente impressionado pelo sofrimento do povo comum, Mo Zi dizia que «o homem de Chu é meu irmão», para que aqueles que escutavam a sua palavra não pensassem que a compaixão se restringia aos seus parentes, concidadãos ou mesmo aos habitantes dos estados puramente chineses a norte do rio Yangzi.

O desaparecimento do pensamento moísta com a chegada do império pode ter sido o resultado da abundância em que passaram a viver os homens cultos. A estabilidade das condições políticas conduziu a uma cada vez maior sofisticação e racionalismo, que pouco interesse mostravam pelos espíritos que Mo Zi acreditava serem enviados para punir os malfeitores. O mundo dos espíritos foi em sua substituição anexado pelo tauismo, o persistente adversário do confucianismo e, até à chegada do budismo, o seu mais subtil contestatário.

O primeiro dos «eremitas irresponsáveis», de acordo com os confucianos, foi um nativo de Song chamado Li Er, mas generalizou-se o hábito de o considerar fundador do tauismo como Lao Zi, ou o Velho Filósofo. A vida deste é ainda mais difícil de reconstituir do que a de Mo Zi, embora a tradição seja unânime em dizer que Lao Zi não teve túmulo, omissão significativa numa civilização moldada pelo culto dos antepassados. Tal como o seu mais notável discípulo, Zhuang Zi, «viveu sem deixar vestígios; empenhado em actividades que não foram registadas para a posteridade». Tanto o ano do seu nascimento, 604 a. C., como o livro que é associado ao seu nome são actualmente tema de debate, mas a verdade é que é tal o poder do Livro do Caminho e da Virtude (Daodejing) que, mesmo que seja obra de um discípulo posterior, não podemos ficar indiferentes à originalidade duma mensagem que sensibilizou gerações de leitores chineses.

Onde esta difere das outras escolas de filosofia é na colocação da insensata rivalidade dos príncipes numa perspectiva histórica.

Quem iria preferir o tilintar de pingentes de jade,

Já tendo ouvido a pedra crescer num penhasco.

O enraizamento do homem na natureza estimulou a mente de Lao Zi, como uma força interior que tornava todos os homens mais sábios do que eles próprios julgavam ser. «O conhecimento estuda os outros; a sabedoria conhece-se a si mesma.» As exigências artificiais da sociedade feudal tinham perturbado de tal modo as naturais aptidões dos homens que, em vez de seguirem a via natural (dao), se viam cercados de códigos de honra e amor feitos pelo homem. A aprendizagem tornou-se necessária e a caridade era apreciada porque se tinha deixado de contar com a bondade de toda a gente. O que mais desagradava a Lao Zi era a importância que os confucianos davam à família como pedra angular da ordem social. Isto porque os tauistas defendiam o ponto de vista de a evolução social ter sofrido um mau desvio com o feudalismo; o seu ideal era a sociedade colectivista primitiva que se supunha ter existido antes da dinastia dos Xia. A relutância em aceitar cargos públicos ou tentar reformas brotava da convicção de que o melhor era deixar as coisas seguirem o seu curso. Tudo se resumia no conceito de complacência (rang). «O homem sábio», defendia Lao Zi, «cinge-se ao acto que consiste em não tomar qualquer acção e pratica o ensino que não usa quaisquer palavras.» O quietismo tauista não é coisa que se grite do alto dum telhado. Porque os que sabiam mantinham-se calados na presença de estranhos: quanto aos seus discípulos, tinham sempre em consideração a sua disponibilidade para a sabedoria. Por isso os episódios anedóticos eram bem-vindos no ensino.

O que distinguia o sábio era a efectiva não asserção. Abria mão para receber; prescindia do controlo para compreender; desejava uma relação que fosse mútua; era movido por um sentimento de profunda não possessividade. Foi por causa do rang que Zhuang Zi (350-275 a. C.) recusou o cargo de primeiro-ministro do grande estado de Chu. O relato desta rejeição ilustra na perfeição o receio tauista do envolvimento social:

Um dia o rei de Chu enviou dois altos funcionários para convidarem Zhuang Zi a assumir a chefia do governo. Foram encontrar Zhuang Zi a pescar. Atento ao que estava a fazer, escutou sem voltar a cabeça. Por fim disse: «Disseram-me que existe na cidade uma tartaruga sagrada que está morta há três mil anos. E que o rei mantém essa tartaruga cuidadosamente encerrada num escrínio sobre o altar do templo ancestral. Ora bem, o que será que a tartaruga preferiria, estar morta, mas receber honrarias, ou estar viva e abanar a cauda na lama?» Os dois funcionários responderam que ela preferiria estar viva e abanar a cauda na lama. «Então ponde-vos a andar!», berrou--lhes Zhuang Zi. «Eu também prefiro ficar aqui a abanar a cauda na lama.»

Ainda hoje é possível sentir algum do impacte original da história. Para os dois funcionários deve ter sido muito penoso fazer a difícil viagem de regresso da cabana distante do sábio à capital de Chu de mãos a abanar. Zhuang Zi tinha rejeitado um cargo pelo qual se digladiavam outros pensadores: os confucianistas, os moístas e os legistas acharam inexplicável o seu comportamento. «Um ladrão rouba uma bolsa e é enforcado», comentava Zhuang Zi, «enquanto outro rouba um estado e torna-se príncipe.» Na agitação do período dos Reinos Combatentes, a única atitude sensata do sábio era viver a vida dum anacoreta.

Xun Zi estava convencido de que os tauistas estavam completamente errados na sua concentração na natureza, e espantava-o que eles pudessem perder tempo a estudar coisas inúteis. A verdade é que este olhar distanciado veio a demonstrar-se importante para o desenvolvimento da ciência na China, uma vez que tem sido defendido o ponto de vista, plausível, de que a observação e as experiências alquímicas dos tauistas correspondem aos primórdios difusos do método científico. Mas nem toda a gente comungava do cepticismo de Xun Zi quando se tratava da busca tauista do elixir da longa vida. O Primeiro Imperador destinou a esse fim uma fortuna, enviando embaixadas ao cume das montanhas para estabelecer relações com os espíritos e ao outro lado do mar em busca das «três ilhas onde vivem os imortais». A crença persistente numa via química para a longevidade revela-se num episódio registado no século ix d. C., quando a escavação ocasional duma caixa de pedra cheia de seda, há muito enterrada, perturbou um homem de cabelos brancos e porte digno, que se levantou, ajeitou as vestes e a seguir desapareceu.

Não é por acaso que a outra raiz do tauismo era a magia dos wu — taumaturgos masculino e feminino. A sua simpática magia há muito que estava ao serviço dos camponeses, mas o contacto pessoal com estes iniciados e mágicos, a partir de 221 a. C., veio alimentar a imensa superstição do Primeiro Imperador. Atraíam-no em particular os aspectos sobrenaturais dos Cinco Elementos, escola de pensamento com força no estado oriental de Qi. Sima Qian, se, por um lado, admite a necessidade urgente de destrinçar o emaranhado de práticas e costumes uma vez consumada a unificação, por outro sugere que a ânsia do Primeiro Imperador pela ordem e a uniformidade resultava da sua crença nos Cinco Elementos. E escreve como

o preto se tornou a cor principal para roupas, bandeiras e flâmulas e seis o número principal. As talhas e os chapéus oficiais tinham seis medidas de comprimento, as carruagens seis medidas de largura, um passo eram seis medidas e a carruagem imperial tinha seis cavalos ... Para instaurar o Poder da Água, o elemento dos Qin, acreditava-se que tinha de haver firme repressão com tudo a ser definido por lei. Só a severidade cruel e implacável podia fazer que os Cinco Elementos se harmonizassem. Por isso a lei era dura e não havia amnistias.

Fossem quais fossem as motivações supersticiosas para o autoritarismo dos Qin, foi a Escola de Direito que forneceu os meios para a instauração da rectidão. O mais antigo significado de fa, a ideia fundamental do legismo, é «padrão». Inicialmente ligado às medidas padronizadas de peso, comprimento e volume, o conceito estendeu-se para significar a autoridade geral de um rei omnipotente. O filósofo responsável por esta mudança de ênfase durante o século iii a. C. foi Han Fei Zi, que defendia que para haver um estado forte era necessário haver um sofisticado sistema de leis apoiado por castigos incontornáveis. «O rei só possui poder», insistia, «se o brandir como um raio ou um trovão.» Exigia-se obediência à letra da lei. Em consequência, os legistas chamavam às morais da conduta diária os Seis Parasitas: proscreviam a compaixão, a generosidade, a virtude, a boa-fé e a aprendizagem. Por isso terá sido tudo menos inesperado que em 213-212 a. C. se tenham queimado livros e enterrado intelectuais vivos quando os confucianistas ousaram exprimir reservas sobre o endurecimento da política imperial. Mas foi essa falta de compaixão na vida em comunidade, prática intolerável para os sociáveis Chineses, que ajudou a preparar a queda da dinastia dos Qin. O êxito de Liu Bang, o usurpador que seria o primeiro imperador Han, ficou a dever-se em parte ao facto de ter sido sobrestimada a quantidade de maus tratos e opressão que o povo do Império do Meio seria capaz de suportar.


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