História - O Elemento Místico do Budismo

Como se sabe, o budismo nasceu no século VI a. C. na Índia; foi uma ordem de ascetas errantes e missionários que cresceu muito rapidamente. A conversão do grande imperador da Índia, Asoka, no século III antes da nossa era, tornou poderosa e organizada esta manifestação religiosa, e dotou-a dos meios materiais necessários para se propagar e multiplicar. Os missionários budistas, procedentes do noroeste da Índia, converteram a Ásia central e penetraram na China no século I da nossa era, seguindo as rotas comerciais que atravessavam a Ásia de uma ponta à outra: a famosa rota da seda.

O budismo tinha evoluído desde os tempos do seu fundador; sem modificar as grandes linhas primitivas de salvação para alcançar o nirvana, as escolas filosóficas tinham-se multiplicado com este espírito de extrema tolerância que caracteriza as religiões asiáticas em geral. O mahayana acrescentou ao hinayana primitivo (mais conhecido como Theravada), severo e ascético, uma nova doçura na elaboração do conceito do bodhisattva, aquele que pode converter-se em Buda, mas que recusa dar o passo definitivo para salvar os homens, seus irmãos, cegos ainda pelos desejos do mundo e que sofrem no ciclo infernal das reencarnações. Compassivos, misericordiosos seres bondosos e santos, intermediários entre os indiferentes cumes da alta metafísica, pouco acessíveis ao simples e a massa, sofredora e lamuriante dos homens, os bodhisattvas desempenham um papel importante na difusão do budismo, transformando-o numa religião de doçura e de salvação espiritual para as massas populares asiáticas.
A penetração do budismo na China motivou a sua transformação; as culturas da Índia e da China nada tinham em comum; entre os hindus - povo em que dominam a angústia metafísica e a busca contemplativa do Ser - e os chineses - céticos, realistas, em comunicação com a Natureza por meio de um taoísmo mágico cheio de beleza e poderes sobre-humanos- não havia entendimento possível. O budismo teve que se transformar, tornar-se em parte taoísta, aceitar as experiências das técnicas chinesas de meditação. A nova religião foi aceita pouco a pouco e com grandes dificuldades por parte dos meios confucionistas e taoístas.

Durante o período Tang (618-906), os imperadores foram fiéis discípulos dos mestres taoístas, e seguiram os ritos de magia evocadora, as técnicas de imortalidade e as experiências alquímicas que se praticavam na corte imperial. Aceitaram com prazer a presença do budismo no seu império. Nesta época desenvolveu-se a nova escola budista ch'an, que passou em seguida ao Japão com o nome de zen, que provinha da Índia, mas estivera submetida à influência taoísta. O seu efeito na cultura chinesa foi profundo e duradouro, particularmente na estética da pintura e da cerâmica durante a dinastia Song.

Acabamos de estudar o naturalismo mágico da estética chinesa; seja nos antigos bronzes shang, nos jades das primeiras dinastias ou nas estátuas funerárias e nos famosos cavalos tang, o ritmo sagrado e misterioso do cosmos impregna as obras de arte da China. Uma estranha força emana dessas máscaras semi-humanas, semi-animais, desses vasos de oferendas aos mortos, dessas placas de jade que tapavam as bocas dos defuntos, dessas estatuetas gesticulantes e vivazes que povoam os túmulos. Este povo buscava o seu ideal sagrado numa evocação grandiosa e ordenada dos seus mortos; nas «salas de luz» dos túmulos, com evocadoras cerimônias mágicas taoístas, algumas das quais eram temidas mesmo pelos imperadores.

O budismo deu à China uma nova mística, outro conceito do sagrado; purificou a pesada atmosfera das técnicas, que utilizavam o sangue dos sacrifícios, a evocação dos mortos e das forças do além. Os paraísos budistas, as doces figuras dos bodhisattvas, os deuses misericordiosos que seguem Buda, iriam iluminar o céu chinês. Estes bodhisattvas converteram-se em intermediários eficazes, em compassivos salvadores. Um deles, Avalokitesvara, especialmente adorado, transformou-se na China por volta do século x, feminizou-se e converteu-se em Guanyin, a deusa salvadora e bondosa, protetora do lar, que era invocada nos momentos de perigo.

A ação do budismo estendeu-se a todos os estratos sociais da população chinesa. Houve um budismo popular com o Buda Amitãbha que, no seu paraíso da Terra Pura, recebia os fiéis lhe rezavam com fervor, simplicidade e confiança. No plano estético, os conceitos religiosos refletiram-se cortejos intermináveis de doadores redor das imagens de Buda, extasiados pela contemplação do seu salvador.

Houve um budismo de letrados, uma espécie de confucionismo e de taoísmo que ficou muito conhecido; as técnicas ch'an de meditação, apropriadas à mentalidade chinesa, ocasionaram a elevação mística e a contemplação metafísica que faltavam ao pensamento chinês. Os mosteiros ch'an multiplicaram-se segundo os antigos modelos das ermidas taoístas situadas nas montanhas e nos bosques; tanto o asceta taoísta como o monge budista escolheram sempre a solidão e a paz da montanha para realizarem o seu ideal místico. Mas, ao contrário dos contemplativos ocidentais, os monges asiáticos interessaram-se sempre pela comunhão constante com a Natureza, com o ritmo de vida cósmico, com os animais, as plantas, as rochas e a terra produtiva. Esta busca foi um dos fundamentos da estética da paisagem desta época na China; os monges ch'an consideram que o êxtase produzido pelo choque estético de um aspecto da Natureza os punha em relação com as esferas superiores do cosmos e os preparava para o nirvana. Já dissemos que qualquer letrado chinês é, simultaneamente, um escritor e um artista; o seu pincel desenha com igual facilidade os elegantes caracteres dos ideogramas, como as paisagens. Não necessita mudar de materiais: o mesmo pincel, a mesma tinta, o mesmo papel de seda servem para ambos os usos. Com a mesma velocidade, o poeta escreverá o seu curto poema ou pintará a aquarela monocromática, a sua visão da natureza.

Na solidão das suas ermidas, os monges budistas adquiriram o hábito de transcrever as suas experiências espirituais; as aquarelas ch'an cedo se tornaram célebres e ainda hoje o são. Parece que a pintura monocromática a aquarela surgiu na China durante o período ias Cinco Dinastias, (907-959) e alcançou a sua época de esplendor com os Song. Embora os artistas chineses laicos se tenham dedicado a esta delicada arte - como Mi-Fei (1051-1107), Li Lung-mien (cerca de 1070-1106), Li Ti (1100-1197), que foi vice-presidente da famosa Academia de Hang-Zhou - quem ilustrou este gênero foram, sobretudo, os monges pintores: Guan Xiu (832-912), Mu Qi (ativo entre 1250-1270), Liang Kai (princípios do do XIII), para citar alguns exemplos. Estes artistas, que viviam em conventos retirados do mundo, seguindo a vida contemplativa e severa dos monges budistas ch'an, criaram obras de arte extraordinárias, nas quais a famosa teoria da arte espontânea, natural, absolutamente sincera, encontrava a sua aplicação e orientava as suas meditações. Buscavam a Natureza em si mesma, que se basta a si mesma; as plantas, as montanhas, os rios, o céu e as nuvens eram os suportes visíveis e belos da Invisível Presença. Sentir o tremor intenso do Sagrado, perceber a Luz que difunde, fruir apura alegria do Ser, foi o que tentaram explicar esses monges nas suas aquarelas monocromáticas. Isto explica a surpresa que quase sempre produzem, porque o seu desenho é brutal, freqüentemente apenas esboçado, e mesmo por vezes torna-se duro, devido ao choque emotivo que faz tremer o seu pincel.

por Jean Riviere, em "Arte Oriental"

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