Aguada com tinta da China

Em que época se criaram na China as fórmulas audaciosamente sintéticas e cursivas que entusiasmaram os impressionistas? Não o sabemos com exactidão, mas conservam-se numerosas obras magníficas desta escola, pintadas no século XIII. A predilecção dos impressionistas pelas aguadas com tinta da época Song oferece-nos o exemplo clássico do “mal-entendido fecundo”. Viram-se nas grandes pinturas chinesas esboços geniais, lançados rápida e instantaneamente no papel, uma atmosfera flutuante e fugidia, uma matéria poética, aparentemente sem ligação com os objectos reais e sem significado objectivo. Ora, estas pinturas são exactamente o contrário de esboços rápidos; são as formas finais, sintetizadas até ao extremo limite, de um ideal que consistia em dizer e sugerir o máximo com o mínimo de meios. Mas a técnica do pincel no Extremo Oriente, quer tratando-se de caligrafia ou de pintura, não conhece nem o retoque nem o repinte, e nada se apaga nem se corrige.
Havia, desde o século XI, um ciclo de paisagens pintadas muitas vezes retomado: o das Oito Vistas do Rio Hsiau e Hsiang, cujos diversos temas procuravam expressar algo de poético, bem mais do que uma localização exacta. Duas séries de imagens houve que no Japão adquiriram grande celebridade; tinham sido criadas por dois pintores da seita chinesa da Meditação, no século XIII- Mu-K'i, de quem ainda se conhecem cinco imagens entre as oito da série, e Ying Yu-Tchien, de quem apenas subsistem três obras. Por volta de 1200, a Escola da Meditação foi transferida para o Japão. Como dissemos, o seu nome chinês é Tch'an, e no Japão é Zen. Desde o século XIII, todo o aderente japonês do budismo Zen alimentava o desejo de fazer uma vez uma peregrinação à China, onde nos arredores da capital, Hang-Cheu, se localizavam os grandes mosteiros Zen e de onde se podiam trazer algumas das imagens pintadas nesse estilo por monges, muitas vezes notavelmente dotados, bem como por membros da Academia de Hang-Cheu. Quando esta capital caiu nas mãos dos Mongóis, em 1280, muitos monges e pintores emigraram para o Japão, certos de serem recebidos com solicitude.
É a este gosto do Japão pelas pinturas Zen, adquiridas ao preço de grandes sacrifícios e conservadas com os maiores cuidados, que o mundo hoje deve o conhecimento desta arte quase completamente desaparecida. Mu-K'i -Mokkei, em japonês-, que quase não é citado na China, toma-se o grande modelo do Japão, durante séculos, e é considerado como mestre incontestado da aguada. Hoje levanta-se aqui e além a questão de saber se a interpretação das Oito Vistas por Mu-K'i é ou não superior à de Ying Yu-tchien. Ambos os mestres podem ser considerados representantes de igual valor da aguada da época Song tardia, esta arte tão singela e notável pela concentração de efeitos e pelas abreviaturas quase abstractas.
Na Lua de Outono sobre o Lago de Tong-t'ing, de Ying Yu-tchien, a Lua é indicada por um simples círculo de tinta, como se o artista tivesse somente desejado convidar o espectador a reconhecer a atmosfera desta noite de Outono na névoa da qual emergem simples manchas, alguns ramos sem folhas, o telhado de um edifício, um muro com ameias e a silhueta de montanhas esboçadas de modo impreciso. Estas imagens, que sugerem mais do que descrevem, requerem do espectador que acrescente por si próprio a visão do que está ausente nelas, sentindo toda a poesia da paisagem. Ying Yu-tchien acrescentava a cada uma das suas pinturas um breve poema, como este, que acompanha a Lua de Outono:
De todos os pontos a face do lago.
As montanhas cintilam ao luar.
Eis que os seus círculos pousam na água do lago.
Em Yoyang, do cimo da torre, ouvimos a flauta.
Mas, ai! o caminho que sobe até lá é muito difícil.
Este poema, na primeira leitura, pode ser mal compreendido pelos não iniciados. Poder-se-ia crer que o mestre pretendeu chamar a atenção para um particular da paisagem do lago de Tong-t'ing. Fá-lo decerto, mas de um modo original que só pode ser verdadeiramente entendido quando se conheçam os numerosos poemas e inscrições célebres a respeito da torre de Yoyang. O simples nome da torre de Yoyang evoca a lembrança de numerosas melodias que acompanham as poesias clássicas. [...]

W. Speiser e E. v. Erdberg-Consten “Extremo Oriente”. Lisboa: verbo, 1969


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