Confucionismo

por Ricardo Joppert em O Alicerce Cultural da China. (1979), Editora Avenir, Rio de Janeiro.
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Confucionismo
A “Escola dos Letrados” (Rujia) teve sua origem nos ensinamentos de Confúcio e seus discípulos. Confúcio (também chamado Kongqiu ou Zhongni – datas tradicionais: -551 a -479) pretendeu regenerar, pelo ritual e pela moral, a sociedade de sua época. Ele ligou-se aos meios tradicionalistas dos escribas e analistas das cortes feudais. Sua origem era nobre, pois aparentava-se aos reis da dinastia Shang- Yin (-1557 a -1050). A doutrina que pregou dava grande importância aos exercícios de atitude ritual, bases de um aperfeiçoamento individual capaz de permitir o controle absoluto dos gestos, das ações e dos sentimentos. A moral confuciana é fruto de uma reflexão permanente sobre os homens. Ela é pratica e dinâmica e as qualidades de um homem realizado (a primeira delas, a virtude “ren”, que supõe uma disposição afetuosa em relação ao próximo) não se definem de modo absolutamente igual para todos, mas admitem uma grande maleabilidade, segundo o caso e o indivíduo. A sabedoria adquire-se pelo esforço de toda uma vida, através do governo dos mínimos pormenores da conduta, pela observação das regras de agir em sociedade (li), pelo respeito ao próximo – enfim, pela absoluta compreensão do princípio da reciprocidade. A virtude é um valor incorporado e não uma qualidade intrínseca do nascimento nobre, embora o desejo de Confúcio fosse o retorno a uma idealizada “Idade de Ouro” feudal dos primeiros reis Zhou, pessoas perfeitas, Wenwang e Wuwang. A tradição, entretanto, deveria ser redimida através do revivescimento e não pela estagnação. Confúcio nada escreveu. Seu ensinamento foi oral e imediato. O que dele temos de mais diretamente oriundo é uma coletânea de máximas ou aforismos, registrados por escrito pelos discípulos após sua morte: o “Lunyu”, que poderíamos traduzir por “Conversações” ou “Analectos”. Em sua escola, Confúcio teria utilizado um certo número de obras antigas e tradicionais, que conhecemos hoje sob a denominação genérica de “Jing” (Clássicos ou Cânones), principalmente o “Yijing” (Yi Ching) (Clássico das Mutações), o “Shujing” (Clássico ou Anais da História), o “Shijing” (Clássico das Poesias ou “Livro das Odes”), “Chunqiu” (Anais do Estado de Lu, pátria de Confúcio), o “Cânon dos Ritos” (Li), do qual temos três coletâneas (Zhouli, Yili, Liji), todas posteriores a Confúcio, e o “Cânon da Música” (Yue), muito fragmentário em nossos dias. As recensões de todos esses “Clássicos” são de época tardia e serão tratadas em outro capítulo. Na escola de Confúcio dava-se importância a discursos de antigos reis, a hinos religiosos e a poemas da corte, a manuais de adivinhação e a anais dos remos. Dessa miscelânea de escritos veneráveis, procurava-se extrair o Saber Total, suficiente formação de um “Junzi” – cavalheiro ou homem de bem. À guerra não se atribuía valor maior. Na verdade, procurava-se mesmo opor ao espírito de competição e combate, típicos da época, a virtude da probidade e da mútua tolerância, que Confúcio julgava características dos tempos antigos. A Antigüidade igualava-se à “Era Perfeita”, a qual cabia tomar por modelo. Confúcio não pretendeu inovar. Desejava apenas conservar as tradições do passado. Todos os chamados “Clássicos” já existiam antes de sua época e ele foi o defensor de uma herança cultural que havia sido o fundamento da educação aristocrática dos primeiros séculos dos Zhou. Ele transmitiu tal patrimônio; fazendo-o, originou, porém, algo novo, pois dava suas próprias interpretações aos textos. Assim, quando declarou, segundo o “Lunyu”, “Sou um transmissor, não um criador” (“Shu er bu zao”), na verdade não estava atingindo o alcance que teria a própria obra. A doutrina de Confúcio estabeleceu os princípios filosóficos básicos da civilização chinesa até o século XX, delimitou a fronteira entre chineses e “não- chineses” (ou “bárbaros”), cimentou os parâmetros da Cultura e isolou-a da Ignorância. Ser civilizado (Isto é, ser chinês), eqüivalia a seguir os Ritos (Li). A China não media os valores através de leis, nem aceitou dogmas religiosos. Eram os Ritos que marcavam a linha divisória entre o superior e o inferior, entre o certo e o errado, e dirigiam a vontade e a liberdade, que não deviam manifestar-se a não ser através de convenções. As emoções eram naturalmente regradas e os sentimentos, uma vez condicionados a formas petrificadas, podiam ser expressos de uma maneira purificada e adequados à verdadeira natureza humana. A dignidade era tudo e os Ritos, uma Linguagem que deveria ser usada para o equilíbrio social. Através deles, os homens poderiam viver em harmonia com a ORDEM NATURAL. Voltamos aqui à questão, tantas vezes mencionada neste livro, da conformidade entre macrocosmo e microcosmo, obsessão da China, fundamento de sua estrutura cultural e, talvez, o segredo de sua extraordinária sobrevivência e vitalidade. O ideograma para “Rei” bem o consigna (1): três traços horizontais paralelos, cortados por um vertical – o Céu, o Homem e a Terra, Intermediados pelo Soberano (representado pelo único traço vertical). O Rei liga o Céu à Terra, passando pelo Homem, o menor dos três traços horizontais. Confúcio considerava duas virtudes como básicas em todo indivíduo: em primeiro lugar, a virtude “ren”, que poderíamos traduzir pela palavra “benevolência”, tomada no sentido primitivo, isto é, “querer bem” (ao próximo). O Ideograma para “ren”, vocábulo, aliás, homófono de “pessoa”, consiste no radical “homem” ao lado do número “dois” — um homem ao lado de seu próximo. Trata-se da Virtude, por excelência, do confucionismo, que leva à prática do amor ao semelhante. No “Lunyu” (XII, 22), Fan Chi, um discípulo, perguntou a Confúcio sobre a virtude “Ren”. A resposta foi a seguinte: “Ai ren” (“É amar as pessoas”). E como amá-las? O “Lunyu” explica: “Ji suo bu yu, wu shi yu ren” (“O que não se deseje para si não deve ser feito aos outros”), frase que naturalmente se prestou a uma certa identificação do confucionismo com o cristianismo e muito perturbou os missionários ocidentais cristãos na China do século XIX e da primeira metade do XX, pois era difícil atacar um “paganismo” que professava a mesma crença de uma religião que se dizia única e verdadeira ... Assim, um homem que possua a virtude “Ren” deve sempre considerar os outros e de si mesmo fazer um paralelo para tratar o próximo. Desse modo, estará imbuído de uma “consciência em relação aos semelhantes” (Zhong) e de “altruísmo” (Shu).
A segunda virtude fundamental chama-se “Yi”, que é costume traduzir por “Justiça”, mas seria melhor dizer “Imperativo da Retidão de Conduta”. Certas coisas devem ser feitas, na sociedade humana, porque são moralmente certas e é necessário que cada um procure agir de acordo com um dever natural. Isso unicamente porque é correto agir de tal ou tal maneira e não de outra. Rejeita-se a idéia de lucro ou retribuição. A pessoa de retidão moral não pede recompensas por seguir uma conduta correta. No “Lunyu” (IV, 16), Confúcio diz: “Junzi yu yu yi, xiao ren yu yu li” (“O Homem Superior – Junzi – compreende a Retidão de Conduta (Yi); o homem inferior compreende o lucro (Li)”). O cultivo da virtude Yi é, pois, um imperativo para o Junzi (Homem Superior) e assim o é pela exclusiva razão de enquadrar-se numa moral que harmoniza macrocosmo e microcosmo. Por outro lado, o confucionismo é uma doutrina fatalista. A conduta deve ser reta e a vida em sociedade, governada pelos Ritos, mas isso sem qualquer intenção de mudar o Destino (Ming), que é decretado pelo Céu, concebido esse na doutrina original como uma força dotada de razão, um agente com objetivos próprios e definidos. Confúcio foi um céptico e um agnóstico e recusava-se a tratar de prodígios e espíritos, mas invocava com freqüência o Céu, como Juiz Supremo, embora pessoalmente parecesse considerá-lo menos como uma divindade pessoal e mais como uma força abstrata, “regente natural da Ordem Cósmica”, conceito que, por obra dos confucionistas posteriores, iria evoluir para o de um “regulador mecânico dos fenômenos do Universo”. Conhecer o Destino (Ming) é reconhecer a inevitabilidade do mundo tal como ele existe e, assim, não dar qualquer importância ao sucesso ou à derrota pessoais. O Homem Superior cumpre seu dever social, eis tudo; querer mudar o Destino, por magia ou qualquer outro meio, é vulgar e vão. Como escreveu Max Kaltenmark, o confucionismo considera que o “Destino limita certamente o poder do homem, mas esse possui um domínio independente do mundo exterior: o de seu livre arbítrio, potencial da prática da virtude “ren”. O Sábio é aquele que reconhece a divisão entre essas duas esferas”. O “Lunyu” (VII, 36) diz: “Junzi tan tang tang, xiao ren chang qi qi” (O Homem Superior (Junzi) está imutavelmente em paz; o homem inferior (Xiaoren: pessoa menor) está sempre em agonia”. O sucesso ou a ruína individuais não interessam o Junzi, pois portar-se como deve o ser humano é o bastante e o resultado é a felicidade, identificada sempre com uma Vitória interior.
A sociedade da época de Confúcio encontrava-se em transição. O feudalismo desmoronava, mas nenhuma outra ordem sólida o havia ainda substituído. Usurpadores chamavam-se reis e perturbavam, assim, a correspondência entre o nome dado a um fato e a realidade desse fato. É preciso não esquecer, como já registramos, ser o chinês um idioma em que as palavras pretendem suscitar o real; cada nome contém certas implicações que o ligam à essência de algo determinado. Chamar de rei a um usurpador é tentar criar uma falsa realidade, que desequilibra a Ordem Natural das coisas do universo. O objetivo principal da filosofia na China é justamente Impedir toda discrepância entre o que o homem faz e as leis imutáveis da Verdade. Um exemplo concreto da importância dada por Confúcio à “retificação dos nomes” (Zheng Ming) encontra-se no “Lunyu” (XIII, 3). Um discípulo de Confúcio, Zilu, fora empregado pelo Duque Chu do Estado de Wei, que desejava também obter os serviços do próprio Confúcio. Zilu perguntou a Confúcio qual seria a primeira providência a ser tomada na administração de Wei. Ora, o Duque de Chu havia passado à frente de seu pai no Governo de Wei, rompendo a subordinação que o descendente deve ter diante do progenitor. Assim, a relação pai- filho estava em desequilíbrio e os nomes, mal dados, pois um pai eqüivale, de direito, ao soberano, que era, de fato, o filho. Confúcio respondeu: “O que é necessário é retificar os nomes” (Zheng Ming). E acrescentou: “Se os nomes não estão corretos (bu zheng), nada poderá funcionar”.
O desenvolvimento do Confucionismo: Mengzi (Mêncio) e o problema da natureza humana
Confúcio foi considerado pela China como o “Sábio Completo”, o “Primeiro Mestre que atingiu a Santidade” (Zhi Sheng Xian Shi). Mengzi (Mêncio) (-371? a -289?) foi o “Segundo Santo” (Yasheng), a quem coube o mérito de desenvolver as idéias básicas do confucionismo. Após a morte de Confúcio, a doutrina manteve-se sobretudo nos limites geográficos da atual província de Shandong, nos Estados de Qi e Lu. Mengzi nasceu no Estado de Zou, situado na parte meridional do Shandong moderno. Os reis de Qi tornaram-se mecenas e, perto da porta ocidental de sua Capital, estabeleceram um centro de estudos a que deram o nome de Jixia (“Sob a Porta de Ji”). Mengzi ensinou na instituição durante algum tempo, mas empreendeu depois viagens a outros Estados feudais, tentando converter governantes. O ensinamento de Mengzi está contido em sete livros. A obra tornou-se mais tarde um dos “Quatro Clássicos” (Sishu) sagrados do confucionismo. Mengzi representa o lado idealístico do confucionismo, em contraste com Xunzi, realista, como veremos além.
Confúcio pregava a conduta humana baseada nas virtudes máximas, “ren” (benevolência, amor ao próximo) e “yi” (retidão imperativa da conduta), mas não deixou muito claro o porquê dessa obrigação. Mengzi completou-o, argumentando que as virtudes “ren” e “yi” e, consequentemente, os Ritos, que levam à prática dessas virtudes, se fundamentam no fato de ser a natureza humana essencialmente boa. Mengzi entretanto, não foi um ingênuo. Ele reconhecia que, embora a natureza humana fosse originalmente boa, nem todo homem poderia tornar-se um Sábio, em virtude da coexistência, ao lado da pureza essencial, de outros elementos, os quais não são bons nem maus, mas, se não governados, podem mostrar-se nocivos. Seriam elementos que o homem compartilha com outros seres vivos, uma espécie de “parte animal” da existência humana. Portanto, estritamente falando, são aspectos animalescos e, na verdade, não poderiam ser vistos como integrantes da natureza humana específica. O argumento principal de Mengzi em favor do fundamento bom do homem está consignado no Livro II, parte 1, capítulo VI, da obra do filósofo. Segundo ele, todos os homens têm basicamente um coração que não suportaria ver o sofrimento alheio (Ren jie you bu ren ren zhi xin). Prova-o o fato: diante de uma criança que vá cair num poço, qualquer pessoa se sentirá alarmada e ansiosa. Tal sentimento, segundo Mengzi, não será devido a uma eventual recompensa que poderia ser oferecida pelos pais da criança, nem a um possível elogio de vizinhos ou amigos, nem a outro fator ligado a um interesse qualquer. O que leva alguém ao sentimento de alarme e ânsia, nesse caso, é unicamente a comiseração pelo próximo, emoção que pertence à essência da natureza humana e se mostra instintiva no momento do iminente afogamento de uma criança. Um ser incapaz de piedade não é humano (fei ren). A compaixão identifica-se, de acordo com o filósofo, com a virtude da Benevolência (Ren), pregada por Confúcio. Paralelamente, a capacidade de envergonhar-se e o livre arbítrio são expressões da virtude “Yi” (Retidão Imperativa de conduta); o altruísmo e a renúncia são as bases dos Ritos (Li), a possibilidade de distinguir entre o Bem e o Mal é o começo da Sabedoria (Zhi). Todo homem possui inatas essas quatro qualidades (Ren, Yi, Li, Zhi), assim como possui dois braços e duas pernas; é necessário apenas que as aperfeiçoe sem obscurecer-lhes o desenvolvimento. O progresso no cultivo dessas virtudes é indispensável, a fim de que o homem não possa dar vazão a instintos baixos e se diferencie dos animais. O que desses separa o ser humano é, reconhece-o Mengzi, apenas um nada” (Ji Xi), uma partícula insignificante que a massa do povo rejeita, mas o Homem Superior conserva.
Mengzi foi igualmente um reformador político, extraordinariamente esclarecido para uma época tão remota. Acreditava que o Governo deveria ser responsabilidade dos Sábios e, para ele, a sucessão dinástica era errada. Um Sábio, tornando-se Rei (Wang), deveria transferir o seu mandato a outro Sábio, a exemplo do que fizeram os primeiros soberanos chineses, Yao e Shun. Para Mengzi, havia dois tipos de Governo: o do Rei- Sábio (Wang), que se exerce através da instrução moral e da educação, e o do Senhor- da- Guerra (Ba), baseado na força e na coerção. O poder do “Wang” é moral; o do “Ba”, físico. No Livro III, capitulo 3, lemos: “Quem usa da violência em lugar da virtude é um Senhor- da- Guerra (Ba); quem tem qualidades e pratica a Benevolência (amor ao próximo – Ren) é um Soberano (Wang). Quando os homens são dominados pela repressão, haverá, enquanto o povo não tiver poder suficiente para resistir à, tirania, a aparente submissão exterior, mas não a dos corações. Mas, quando se ganham seguidores pela Virtude, eles estão intimamente satisfeitos e haverá submissão real, como a dos setenta discípulos a Confúcio”. O germe da democracia é evidente na seguinte citação do Livro III, parte 2, capitulo 27: “O povo é o tesouro máximo; os deuses da terra e da colheita vêm em seguida e o soberano é o menos importante de todos. Assim, satisfazer aos camponeses é tornar-se rei”. Segue-se que, se um soberano não possui as qualidades morais para governar, cabe ao povo revoltar-se e substituí-lo. Nesse caso, eliminar um monarca não é um ato regicida, pois ele, na verdade, deixou sua condição de dirigente e tornou-se “um simples homem”... Tais idéias de Mengzi fascinaram a China durante perto de dois mil anos e mesmo a Revolução republicana de 1911 sofreu suas influências. É bem verdade que Mengzi, acreditando na desigualdade de inteligências, assumiu uma atitude paternalista em relação ao povo. O que advogava, entretanto, não era o governo por uma aristocracia de sangue, mas por uma fidalguia de espírito. Justificava-se, por outro lado, existirem classes sociais, porque “alguns trabalham com o espírito; outros, com os músculos”...
Mengzi foi igualmente um teórico da economia. No Livro III, parte 1, capitulo 3, há a defesa de um sistema de distribuição comunitária de terras com o objetivo do aumento e equilíbrio da produção agrícola. O método chama-se de “campo- poço” (Jingtian). Segundo ele, cada “Li” quadrado (“Li” é medida equivalente ao terço de milha) de terra deveria ser dividido em nove quadrados, cada um consistindo em cem acres chineses (um acre (mou) – medida de cem passos). O quadrado central era o “campo público” e os oito restantes, os “campos particulares” de oito famílias de lavradores. O “campo público” era cultivado coletivamente e parte de sua produção cabia ao Governo. Cada família plantava em seu quadrado e guardava o produto do mesmo. O arranjo em quadrados lembra o ideograma “Jing” (1) (poço). O poço ficava no quadrado central e era de uso comum. O sistema não foi propriamente criado por Mengzi, uma vez que ele próprio menciona métodos semelhantes de cultivo de terra durante as dinastias Xia e Shang- Yin. O que diferia era a parte da lavoura do campo central dada ao Governo. Durante os Zhou, entregava-se um décimo (shi yi) da produção total e assim pareceu justo a Mengzi.
Mengzi batia-se por um modo de Governo em que o Sábio ocupasse o ápice da pirâmide hierárquica. Os letrados seriam os censores do soberano e controlariam o despotismo. Por outro lado, Mengzi não abriu mão do caráter absoluto da hierarquia familiar: a piedade filial (xiao) era para ele a base das “cinco relações humanas” – aquelas entre pai e filhos, soberano e ministros, marido e mulher, irmãos mais velhos e irmãos mais moços e amigos mais idosos e menos idosos.
Mengzi reconhecia que sua doutrina representava apenas um primeiro degrau de aprimoramento da sociedade. Quando, “sem estar insatisfeito (com o Governo), o povo puder alimentar-se e também chorar seus mortos” (isto é, ocupar-se da rotina da vida sem abrigar razões de revolta), estaria a comunidade humana no começo do que o filósofo chamou de o “Caminho Real” (Wang Dao). Mas só no inicio desse “Caminho”, pois unicamente se atingiria a meta final da excelência, quando o desenvolvimento geral da educação possibilitasse que as pessoas, num plano superior de compreensão, seguissem, consciente e voluntariamente, as regras do mútuo respeito humano.
A procura do equilíbrio como resultado da equação Homem + Universo, grande constante nas buscas empreendidas pela Filosofia chinesa, revela-se na afirmação de Mengzi de que era um “Cidadão do Céu” (Tianmin). Igualou-se, assim, aos Sábios da Antigüidade, dos quais se dizia que, prezando uma conduta harmônica com a Ordem Natural do mundo, tinham, por acréscimo, conquistado a posição de “nobres entre os homens” (Xiu qi tian jue er ren jue cong zhi) (Livro VI, 1, 17). Para Mengzí, unicamente se o homem procurasse alcançar os valores morais superiores (as virtudes Ren, Yi, Zhong (Lealdade) e Xin (Confiança)) e se tornasse, por isso, um “Cidadão do Céu” (Céu = Ordem Natural), seriam justificados os “valores da Terra” (posição, honra, riqueza...).
Transformações no Confucionismo: o realismo de Xunzi
A terceira figura da Escola Confucionista, durante a Dinastia Zhou, foi o filósofo Xunzi (Hsüntse) (-298 a -238?), que, na interpretação moderna da Filosofia chinesa, representa o lado realista do Confucionismo, em oposição ao idealismo de Mengzi. Xunzi era nativo do Estado de Zhao, no atual Shanxi. A obra, que tem o próprio nome do autor, consiste em trinta e dois capítulos sob a forma de ensaios.
Quatro são os conceitos principais de que tratou Xunzi: a natureza humana (Xing), os ritos (Li), a retificação dos nomes (Zheng Ming) e o Céu (Tian). Para Xunzi, a natureza humana é originalmente má: “Ren zhi xing e, qi shan zhe wei” (“A Natureza do homem é má, o que ele tem de bom é artificial”). “O homem nasce amando o lucro e, como suas ações estão de acordo com isso, há, o desenvolvimento do espírito de luta e do roubo; o altruísmo e a renúncia inexistem na natureza humana. Ele nasce também com enfermidades morais e com ódio e, como suas ações estão de acordo com isso, há o desenvolvimento da violência e da sedição; devoção e fé inexistem. Ele nasce com o desejo de satisfazer aos ouvidos e aos olhos e ama, portanto, os sons e as cores; há, por conseguinte, o desenvolvimento da luxúria e da desordem; os ritos (Li) inexistem”. (Capítulo sobre a Natureza Humana do Livro de Xunzi). Tal pessimismo pode parecer revelar uma total descrença no homem. Entretanto, a idéia de Xunzi é, paradoxalmente, a oposta. O que ele defendia era uma Filosofia da Cultura: sua tese era a de que todo bem e todo valor são criados pelo próprio homem e não pelo Céu. Através da educação, o ser humano torna-se bom. Na verdade, Xunzi era antropocentrista; para ele, o homem valia tanto ou mais do que o Céu e a Terra, porque, através do esforço pessoal, podia suplantar o estado bruto de sua natureza e tornar-se superior. “O Céu tem as estações, a Terra tem os recursos naturais, o Homem tem a civilização”, argumentava ele. A trindade não está, porém, em simbiose, pois cada um dos elementos guarda sua própria vocação. Reconhecendo os valores básicos do passado a que se referem os confucionistas (a benevolência, a retidão da conduta, a sabedoria, a renúncia, a lealdade e a confiança), Xunzi acreditava, entretanto, que o homem nascia unicamente com a capacidade de desenvolver um caráter bom. Dotado de um intelecto, deveria procurar mestres capazes de instruí-lo. A companhia de pessoas virtuosas era essencial. “Se não conheces teu filho, olha seus amigos; se não conheces teu rei, olha seus conselheiros”, eis uma das máximas de Xunzi. A conseqüência natural da crença na capacidade de o homem educar-se e, assim, tornar-se superior foi a importância dada por Xunzi aos “ritos” (Li), que adquirem, para o filósofo, um sentido amplo de regras da vida individual e social interpretadas como a forma mais eficaz de controlar a barbárie humana. A vida não pode prescindir de organização social e a cooperação e a ajuda mútua são, na verdade, muito úteis, se reguladas, na satisfação dos desejos. A pobreza seria, para Xunzi, o fruto da vida em solidão; unidos, os homens só poderiam prosperar, desde que fossem capazes de coibir a selvageria de cada membro do grupo. Os Ritos permitem a coexistência, por reprimirem o abuso individual. Para Xunzi, criaram-nos os Reis - Sábios da Antigüidade, a fim de evitar justamente o caos. Pelos Ritos, as distinções e separações entre os homens podem ser estabelecidas a contento. O corolário dessas idéias é a função utilitária do Bem e da Moral. Xunzi, num realismo de últimas conseqüências, tinha a firme convicção de que o homem precisa ter sua existência governada nos mínimos pormenores, a fim de dominar o negativismo de sua essência, conter seu desmesurado egoísmo e, finalmente, refinar-se, purificando as emoções.
A “Retificação dos Nomes” (Zheng Ming) seria outro fator de ordem na sociedade. As denominações corretas assegurariam a cada um o lugar certo no mundo, afastando lutas e conflitos. Deformar os nomes (já se discutiu o problema mais acima) era crime grave para Xunzi, com nefastas conseqüências sociais, pois abalava a solidez das estruturas que garantem a prosperidade.
Quanto à religião, o “Céu” (Tian) seria um conjunto de forças naturais, sem quaisquer qualidades morais, sem personalidade, nem vontade. Melhor era esquecê-lo (“O Sábio é o único que não procura conhecer o Céu”). A “Providência Divina” seria, pois, uma ilusão e as regras morais, apenas resultado da criatividade humana, de efeito utilitário. Como disse Max Kaltermark, sinólogo de grande valor, “Xunzi foi o confucionista mais importante do fim do período pré- imperial (até -221) e sua influência... exerceu-se sobre as gerações seguintes, as quais deveriam fixar, por muito tempo, a ortodoxia da Escola”.Os primitivos confucionistas eram especialistas no ensino dos Clássicos e na prática do Cerimonial e da Música. Eram conhecidos como “Ru” ou letrados. As obras que utilizaram em seus ensinamentos tornaram-se “Cânones” (Jing), cujo número variou, segundo a época, de cinco a treze. Confúcio teria fixado o texto de seis “Cânones” (Poesia, Documentos Históricos (Anais), Ritos, Música, Mutações e Anais do Estado de Lu (Chunqiu)). O Clássico da Música não subsistiu. Durante a época Han, foram oficialmente estabelecidos e cristalizados os textos de cinco Clássicos e é mais natural, portanto, que, por coerência cronológica, deles tratemos no capitulo dedicado aos Han. Em -213, o criador do Império chinês, Qin Shi Huangdi, ordenou a queima de todos os livros que não dissessem respeito ao seu próprio sistema político (o Legismo). Após a queda de seu Governo, realizou-se um trabalho de reconstituição da literatura perdida. Assim, os “Clássicos” ou “Cânones” (Jing), como os conhecemos hoje, constituem muito mais uma obra dos Han do que dos Zhou. Pertencem a uma “tradição confuciana” e não propriamente ao confucionismo primitivo, aqui estudado em sua forma pura, graças a uma laboriosa exegese de textos recolhidos pelos Han, mas por eles freqüentemente adulterados.
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