Mêncio não foi primariamente um professor religioso mas, como Confúcio antes dele, os seus ensinamentos éticos, as suas idéias políticas e o seu misticismo baseiam-se num sentido claro de missão e numa profunda reverência para com o céu. A sua doutrina característica da bondade da natureza humana baseia-se na crença de que a natureza é concedida pelo céu. A importância que ele dá à retidão como um valor supremo moral apóia-se no fato de ele atribuir a retidão ao céu.
Diz-se que Mêncio estudou com os discípulos do grande Tzu Ssu, neto de Confúcio. Como intérprete de Confúcio a sua estatura cresceu com o tempo até que, na dinastia Sung, foi aceite como o segundo a seguir a Confúcio, e o livro que sustenta o seu nome foi estudado com os “Analectos”, o Chung Yung e o Ta Hsueh, por cada escolar aspirante. Quanto à sua reverência por Confúcio não pode haver dúvidas. Ele próprio disse: “Agora o que eu desejo fazer é estudar para ser igual a Confúcio” (2a : 22). O “Livro de Mêncio”(5), de que são deduzidos os seus ensinamentos, foi compilado pelos discípulos de Mêncio depois da sua morte. Compreende sete capítulos, cada um dividido em duas partes.
Quase nada se conhece ao certo relativamente à família de Mêncio ou à sua vida privada. Crê-se que viveu desde cerca de 372 a 289 antes de Cristo. O Shih Chi de Ssu- ma Chien diz que ele era um nativo de Tsou (no atual Shantung), e que recebeu a sua instrução dos discípulos de tzu Ssu. Viajou para servir o rei Hsuan de Chi, mas este não o pôde empregar. Foi para o estado de Liang, mas o Rei Hui de Liang não era sincero. Nessa altura o estado de Chin estava a empregar os serviços do Senhor de Shang para se enriquecer a ele próprio. Chu e Wei estavam a empregar Wu Chi para conquistar estados mais fracos. Os reis Wei e Hsüan de Chi estavam a empregar os grandes estrategistas militares Sun- tzu e Tien Chi com a conseqüência de que os senhores feudais encaravam o leste de maneira a prestarem homenagem a Chi. Os estados da China estavam comprometidos em formar alianças e defendiam a luta como algo digno. Mêncio, por outro lado, empenhava~se em transmitir as virtudes de Tang, de Yü e das três dinastias (Hsia, Shang e Chou), de modo que aqueles que ele visitava não o queriam ouvir. Então retirou-se e com os seus discípulos Wan Chang e outros, pôs o Shih Ching e o Shu Ching em ordem, transmitiu as doutrinas de Confúcio e compôs o “Livro de Mêncio” em sete capítulos (6). Daqui concluímos que Mêncio, como Confúcio, foi um professor profissional e que reverenciou os reis sábios dos tempos antigos, tendo vivido ele próprio num tempo de agitação política e social. O estado de Tsou, onde ele nascera, confinava com o estado de Lu, e tinha fama de ser um centro de influência confucionista. O “Livro de Chuang- tzu” refere-se aos confucionistas como “cavalheiros e professores de Tsou e Lu” (7).
Mêncio tomou o tema da natureza humana como conferida pelo céu, mas enquanto que Confúcio havia tacitamente assumido que a natureza humana era “boa”, Mêncio procurou provar que o homem é na sua natureza original “bom” e construiu a sua filosofia sobre essa premissa. Os seus ideais éticos e políticos baseiam-se na crença, na bondade essencial da natureza humana. Ele ensinava que todas as instituições políticas e sociais são para benefício do povo, e neste aspecto estava muito à frente do seu tempo. Acreditava que os únicos aptos para governar eram os que tinham alimentado a sua natureza conferida pelo céu de modo a tomarem-se reis- sábios, e desaprovava o governo dos Pa ou tiranos feudais;
Aquele que usa a força e afeta a virtude é um pa (tirano). Aquele que usando a virtude pratica a bondade humana é um rei... Quando alguém subjuga homens pela força, estes não se submetem nos seus corações e só se submetem porque a sua força é insuficiente. Quando alguém subjuga homens pela virtude, estes ficam contentes e sinceramente submetidos no fundo dos seus corações.
(2a. 4)
O povo é o elemento mais importante (num estado); os espíritos da terra e do grão são secundários; e o governante é menos. Por isso, conquistar os camponeses é o modo de se tornar rei.
(7b. 14)
Aquele que ultraja a bondade humana é um ladrão; aquele que ultraja a retidão é um bruto.
(lb. 8)
Na sua exposição de amor, lealdade e reciprocidade, Confúcio tinha limitado a sua aplicabilidade à auto- cultura do indivíduo. Mêncio estendeu essa aplicação ao governo e à sociedade. As instituições ideais da sociedade constituem o que Mêncio chama “a maneira real”. Tal só pode funcionar se a inerente bondade da natureza humana for aceite;
Todos os homens têm um espírito que não agüenta (ver os sofrimentos) dos outros. Os primeiros reis, possuindo esse “espírito intolerante”, produziram um governo igualmente sensível.
(2a. 6)
Tratai como convém à velhice os mais velhos da vossa família, de modo a estender este tratamento aos mais velhos das outras famílias; tratai como convém à mocidade os jovens da vossa família, de modo a estender este tratamento aos jovens das outras famílias; fazei isto e o império revolver-se-á na palma da vossa mão.
(1a. 7)
Todos os homens têm um espírito que não pode agüentar ver os sofrimentos dos outros... Se os homens de hoje virem uma criança a cair a um poço, eles experimentarão, sem exceção, um sentimento de alarme e de angústia. E isto não como um modo de ganharem o favor dos pais da criança, nem de procurarem o elogio dos vizinhos e amigos, nem porque temam a reputação de não terem virtude. Daí podemos compreender que aquele que não possui o sentimento da comiseração não é um homem; aquele que não possui o sentimento da vergonha e do desagrado não é um homem; aquele que não possui o sentimento da modéstia e da submissão não é um homem; e aquele que não possui o sentido do bem e do mal não é um homem. O sentimento da comiseração é o começo do amor (jên). O sentimento da vergonha e do desagrado é o começo da retidão (i). O sentimento da modéstia e da submissão é o começo do decoro (li). O sentimento do bem e do mal é o começo da sabedoria (chih). O homem tem estes quatro começos tal como tem quatro membros. Quando, tendo estes quatro começos, ele diz que é incapaz (de os desenvolver) está a injuriar-se. E quando diz a respeito do seu governante que ele é incapaz, está a injuriar o seu governante;
Uma vez que todos os homens possuem estes quatro começos, que lhe dêem o seu completo desenvolvimento e o resultado será como o fogo que começa a arder ou uma nascente que acaba de encontrar saída. Que elas tenham o seu completo desenvolvimento e bastarão para proteger tudo dentro dos quatro mares. Que eles neguem esse desenvolvimento, e não bastarão para servir os seus pais.
(2a. 6)
Quando Mêncio afirma que a natureza humana é boa, quer dizer que a natureza de todos os homens tem dentro de si a capacidade da bondade, não que a natureza do homem seja inteiramente perfeita. Todos os homens possuem os rebentos das virtudes cardeais, e se esses rebentos são alimentados e treinados no verdadeiro caminho, eles alcançarão completo desenvolvimento na sabedoria perfeita. Quando um homem não é bom, não quer dizer que lhe falte o material básico para se tornar bom. A sua maldade resulta do fato de ele não ter desenvolvido os rebentos da bondade dentro dele ou ter deixado que lhos abafassem ou lhos torcessem.
Mas porque deviam os homens desenvolver esses rebentos de bondade? Mo- tzu, que Mêncio criticava, ensinava que tal desenvolvimento trazia beneficio para o indivíduo e para a sociedade. Isto é, ele aplicava uma prova pragmática: a bondade, no fim de contas, é benéfica, e a maldade é prejudicial. Mêncio ensinava que os rebentos da bondade se deviam desenvolver porque é através do exercício das virtudes que o homem é “humano”:
Aquilo por que o homem difere dos pássaros e dos animais é insignificante. A massa do povo abandona isso, enquanto o homem superior o preserva.
(4b. 19)
O que distingue os homens dos animais é o espírito humano. Um espírito capaz de raciocinar é a prerrogativa especial do homem, e isso é “o que o céu deu ao homem”. É a parte mais nobre do seu ser. É o que constitui a parte do homem a que Mêncio chama “grande” (ta ti). Os sentidos - ouvido, vista, gosto, etc. - são partilhados pelos homens em comum com os animais. Constituem a parte do homem que é “pequena” (hsiao ti);
A natureza humana implica tudo por meio de que o homem é humano, e quando esta natureza se perde, o homem torna-se igual aos animais.
(4a. 10)
Portanto o homem deve concordar com a razão e a retidão de modo a poder seguir essa parte dele que é grande. Desta forma ele conservará essa natureza conferida pelo céu que o faz humano;
O modo como o homem perde a sua bondade de espírito (liang hsin) é igual ao modo como as árvores são desnudadas por machados e podões. Desbastadas dia após dia, podem elas manter a sua beleza? Mas há uma restauração da sua vida (espírito) todas as noites, e na atmosfera calma da manhãzinha, ela sente esses desejos e aversões que são próprios da humanidade. No entanto, o sentimento não é forte e é agrilhoado e destruído por aquilo que toma lugar durante o dia. Esse agrilhoamento repete-se. A influência renovadora da noite não é suficiente para preservar (a natural bondade do espírito), e quando isto prova ser insuficiente (o espírito) difere pouco dos animais irracionais.
(6a. 8,2)
A finalidade suprema de um homem é servir o céu e cumprir o destino que o céu lhe conferiu. O céu de Mêncio não é mais a divindade antropomórfica dos primeiros tempos, no entanto o céu devia ser conhecido e servido. O céu é reto e conserva a sua própria nobreza, ordenando ao homem o seu destino.
Aquele que esforça o seu espírito ao máximo conhece a sua natureza. Aquele que conhece a sua natureza conhece o céu. Preservar o espírito e alimentar a natureza é servir o céu. Não consentir nenhuma indecisão relativamente à longevidade ou brevidade da vida, mas cultivar-se e esperar pelo decreto do céu para seguir a sua carreira, é cumprir o destino.
(7a. 1)
A aceitação da doutrina da bondade fundamental da natureza humana e a crença de que o mal é devido à falta de alimento próprio e cuidado levou Mêncio a frisar a importância do amor (jên) e da justiça (í) no governo, na instrução e dentro do círculo da família. Conforme o professor W. T. Chan escreve: “Em Mêncio, o ideal da retidão assumiu importância sem precedentes. Ele foi o primeiro a levantar a retidão ao mais alto nível dos valores morais” (8);
O amor, a justiça, o decoro e a sabedoria não nos são ensinados do exterior. Temo-los originalmente em nós. Só que não pensamos (em encontrá-los). Por isso se diz: “Procurai e encontrareis; negligenciai e perdê-los-eis.
(6a. 1)
Com alimento próprio e cuidado tudo cresce enquanto que sem alimento conveniente, nem cuidado, tudo morre.
(6a. 8)
Eu gosto da vida e gosto da retidão. Se não puder tê-las ambas, desistirei da vida e escolherei a retidão. Amo a vida, mas há algo que amo mais do que a vida, pelo que não farei nada de indigno para que possa possuir isso.
(6a. 10)
A retidão é o caminho do homem. Apiedai- vos do homem que abandona o caminho e não o segue.
(6a. 11)
De acordo com Mêncio, a verdadeira nobreza consiste no amor, na honradez, na lealdade e na fé, que são características do céu. A “nobreza do céu” é contrastada com a “nobreza do homem”. Os antigos sábios, ao procurarem cultivar a nobreza do céu, procuravam aperfeiçoar-se nas virtudes cardeais conseguindo assim a nobreza do homem. Mêncio detestava aqueles que, tendo atingido categoria, riqueza e honras entre os homens, renegavam a nobreza do céu (6a. 16).
A crença firme de Mêncio no céu revela-se na sua resposta ao discípulo Wan Chang, quando ele lhe perguntou: “É verdade que Yao deu o império a Shun?” “Não” replicou Mêncio “o imperador não pode dar o império a outra pessoa ... o céu deu-lho”. “Quer dizer que o céu lho deu com muitas palavras?” “Não. O céu não fala. Simplesmente mostrou a sua vontade através do caráter pessoal de Shun e o seu governo ... O imperador pode recomendar uma pessoa ao céu, mas não pode fazer com que o céu dê a esse homem o império ... Yao recomendou Shun ao céu e o céu aceitou-o... Ele pô-lo a presidir aos sacrifícios e todos os seres espirituais os gozaram. Isto significa que o céu o aceitou (5a. 5)”.
Quando o céu está para conferir uma grande responsabilidade a qualquer homem, exercita o seu espírito com sofrimentos, sujeita os seus nervos e músculos a trabalhos pesados, expõe o seu corpo à fome, sujeita-o à pobreza, coloca obstáculos no seu caminho, de maneira a estimular-lhe o espírito, a endurecer-lhe a natureza e a melhorá-lo no que ele é incompetente.
(6b. 15)
“É difícil” escreve o Professor Chan “dizer a força do misticismo em Mêncio, mas não há dúvida de que está presente nele como o está na Doutrina dos Humildes” (9). Mêncio falava de uma “força forte e motora”, uma força vital, ativa, que o homem é capaz de alimentar. Difícil para ele descrever essa força porque verdadeiramente pertence ao reino do que é transcendente;
Como poder, e excessivamente grande e forte. Se alimentado por integridade e não injuriado, encherá tudo entre o céu e a terra. Como poder, é acompanhado de retidão e do Caminho. Sem isso, ficará sem alimento. É produzido pela acumulação de ações retas, mas não é obtido por atos incidentais de retidão.
(2a. 2, 13- 15)
Mêncio concebia que o sábio alcança um estado de existência que está para além do nosso conhecimento. Torna-se “um homem do espírito”;
Quando alguém é grande e completamente transformado, chama-se-lhe sábio. Quando um sábio está para além do nosso conhecimento, chama-se-lhe um homem do espírito.
(7b. 25)
Aquele que habita a casa grande do mundo, permanece na condição exata do mundo, caminha nos grandes caminhos do mundo; aquele que exercita virtudes com o povo quando é bem- sucedido, e exercita o Caminho sozinho quando está desapontado, aquele cujo coração não pode ser dissipado pelo poder, pela riqueza e pelas honras, que não pode ser influenciado pela pobreza e pela condição humilde, aquele que não pode ser submetido pela força nem pelo poder - tal pessoa é um homem notável.
(3b. 2)
Sempre que um homem espiritual passa, segue-se a transformação. Onde quer que ele habite, há uma influência espiritualizante. Isto emana, de cima e de baixo, do céu e da terra. Como se pode dizer que uma tal pessoa corrige a sociedade em pequena escala!
(7a. 13)
Notas
5. Uma tradução definitiva de Mêncio é a de J. Legge em The Chinese Classics, vol. 1, Oxford, 1893, reimpresso pela Hong-kong Univ. Press em 1960. Uma tradução recente de W. A. C. H. Dobson, Mencius, Oxford, 1963, ordenou de novo os parágrafos originais e anotou-os para uso dos leitores comuns.
6. Ssu-ma Ch’ien, Shih Chi, capitulo 74.
7. Chuang-tzu, capitulo 33.
8. W. T. Chan, Source Book of Chinese Philosophy, p. 50.
9. Ibid., p. 82.
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