O Chung Yung, por D. H. Smith

Os ensinamentos de Confúcio eram baseados, como vimos, numa reverência sincera para com o céu, um céu que não só prodigalizava a sua retidão e benevolência na harmonia de uma ordem cósmica, mas também conferia ao homem a sua natureza moral, através de cuja prática o homem podia conformar-se com a vontade do céu. Atingir um tal estado era “sabedoria” (shêng jên). O sábio perfeito não só atingia a harmonia, a serenidade, a paz e a alegria na sua própria natureza interior, como funcionava como o céu funciona, de modo que a sua “virtude” brotava e penetrava o meio em que ele vivia, exercendo influências em toda a esfera sobre que governava. Conformando-se com a “vontade do céu” e aceitando o “destino” que lhe era designado pelo céu, a sua vida interior baseada na humanidade e na retidão (jên e i) refletia-se em todas as suas relações exteriores numa absoluta conformidade com os padrões de bom comportamento (li) que a tradição e os costumes tinham achado que conduzia à defesa de uma boa sociedade.
Nos dois séculos e meio imediatamente a seguir à morte de Confúcio, as idéias germinais deste grande professor estavam destinadas a exercer uma influência sempre crescente. Os seus próprios discípulos desenvolveram os seus ensinamentos ao longo de várias linhas diferentes, enquanto sistemas rivais, tais como os dos tauístas e dos moístas, haviam de o tomar em conta.
Aconteceu com Confúcio como com outros grandes professores éticos e religiosos que espíritos menores tomaram vários aspetos dos seus ensinamentos e os super acentuaram ou super desenvolveram para obscurecimento de outros aspetos que eram igualmente importantes. De acordo com o capítulo trinta e três de Chuang- tzu, um grande número de escolas surgiu nos séculos IV e III antes de Cristo. Muitas destas, interessadas em problemas filosóficos, éticos, sociais e políticos, são de grande importância para o estudante mas têm pouco interesse quanto à religião como tal. Algumas são francamente agnósticas e mesmo ateístas. Não mostram praticamente nenhum interesse pela vida e a expressão religiosa do povo comum, exceto tanto quanto refletem o desdém da classe escolar por crenças e práticas que consideram supersticiosas. No entanto, poucos destes escritos negam a existência de um reino transcendente, um mundo espiritual, que os homens não conseguem inteiramente negligenciar porque as suas leis encontram-se com os afazeres humanos e têm uma influência constante sobre o bem- estar humano.
O pensamento filosófico nesses tempos pós- confucionistas era predominantemente humanista ou naturalista. O principal interesse dizia respeito a viver bem aqui e agora. Há uma ausência notável de interesse pelo destino do homem para além da sepultura, um interesse, contudo, que está longe de ser alheio ao pensamento do povo comum.
O Chung Yung (Doutrina dos Humildes) atribuído a Tzu Ssu, neto de Confúcio, contém passagens profundamente comoventes na sua apreensão religiosa e conhecimento místico. O “Livro de Mêncio”, além da sua viva discussão sobre a natureza humana e a sua insistência na importância da retidão, reconhece a predominante “força motora” do céu. Conforme o professor W. T. Chan escreve: “A Doutrina dos Humildes” é religiosa e mística. Aproxima-se muito dos aspetos mais místicos do “Livro de Mêncio” e várias passagens são quase idênticas nos dois livros” (2). Embora Hsün- tzu fosse talvez mais responsável do que ninguém pelas tendências humanistas ou puramente naturalistas do confucionismo, conforme este se desenvolvia, a sua doutrina da natureza humana e a sua ênfase sobre os ritos (li) sejam de tal interesse para o estudante de religião que os seus ensinamentos devem ser considerados.
O Chung Yung (3)
O Chung Yung ou Doutrina dos Humildes é fundado nesse conceito profundamente religioso, “O Caminho do Céu”, um Caminho que transcende o tempo, o espaço, a substância e o movimento, e que é ao mesmo tempo incessante e eterno (4). A harmonia que caracteriza o Caminho do céu e que prevalece no universo é a mesma que sustenta a natureza moral do homem. De fato, o homem e a natureza formam uma unidade.
O Chung Yung reconhece a onipresença de seres espirituais e portanto a importância de sacrificar a estes;
Quão abundante é a manifestação do poder dos seres espirituais! Procuramo-los mas não os vemos. Escutamo-los mas não os ouvimos. Eles formam a substância de todas as coisas e nada pode ser sem eles. Fazem com que todas as pessoas do mundo jejuem e se purifiquem e vistam os seus vestidos mais ricos para lhes oferecer sacrifícios. Semelhantes à extensão da água transbordante, parecem estar acima, à esquerda e à direita.
(capítulo 16)
As cerimônias dos sacrifícios ao céu e à terra são designadas ao serviço do Senhor nas alturas, e as cerimônias realizadas no templo ancestral designadas ao serviço dos antepassados.
(Capitulo 19)
A doutrina da unidade do homem com o céu e a terra tem sempre impressionado muito os chineses. Muito mais tarde assumiu grande importância no neo-confucionismo da dinastia Sung;
Só os que são absolutamente sinceros podem desenvolver completamente a sua natureza. Se eles podem desenvolver completamente a sua natureza, podem desenvolver completamente a natureza dos outros. Se podem desenvolver completamente a natureza dos outros, então podem desenvolver completamente a natureza das coisas. Se podem desenvolver completamente a natureza das coisas, então podem ajudar na transformação e nas operações substanciais do céu e da terra. Se podem ajudar na transformação e nas operações substanciais do céu e da terra, podem formar uma trindade com o céu e a terra.
(capítulo 22)
É interessante encontrar no Chung Yung uma justificação razoável da adivinhação que, desde tempos primitivos, ocupou um lugar importante na religião chinesa. As calamidades ou as graças para a nação ou para o individuo eram consideradas como sendo devidas às atividades de seres espirituais que, no entanto, avisavam do que pretendiam fazer por meio de augúrios e fenômenos extraordinários. A sinceridade absoluta dá às pessoas um poder espiritual de discernimento pelo qual prognosticam acerca desses augúrios;
É uma característica da sinceridade absoluta ser capaz de prever. Quando uma nação ou família está a prosperar, há de certeza augúrios felizes. Quando uma nação ou família está a sucumbir, há de certeza maus augúrios. Estes augúrios revelam-se na adivinhação e nos movimentos dos quatro membros. Quando as calamidades ou as graças estão para vir (através da adivinhação) pode-se saber de antemão se é mal ou bem. Por isso, aquele que tem sinceridade absoluta é como um espírito.
(capítulo 24)
O caminho da sinceridade absoluta é ”o Caminho do céu e da terra”. É “sem fingimento e por isso produz coisas de um modo impenetrável”. É “profundo, extenso, leve, brilhante, infinito e duradouro” (capítulo 26). Da mesma forma, “O caminho do sábio é grande. Exuberante, produz e alimenta todas as coisas, e sobe até às alturas do céu” (capítulo 27).
A imagem do sábio perfeito no Chung Yung, manifestada como a meta de todo o alcance humano, não pode ser compreendida em termos puramente humanistas. Possui uma qualidade transcendente. O sábio atingiu uma altura em que compreende o céu e coopera nas operações divinas por meio das quais o universo é sustentado;
Só os que são absolutamente sinceros podem ordenar e ajustar as grandes relações dos homens, estabelecer as bases da humanidade e conhecer as operações transformadoras e substanciais do céu e da terra. Depende ele de alguma coisa mais? Que zelosa e sincera - é a humanidade! Que profundo e impenetrável - é o abismo! Que vasto e grandioso - é o céu! Quem o pode conhecer a não ser ele que tem rapidez de apreensão, inteligência e saber, e compreende o caráter do céu?
(capítulo 32)

Notas
1. Neste livro o nosso interesse fixa-se no crescimento e desenvolvimento de idéias e expressões distintamente religiosas. Conforme a natureza do caso, foi necessário ser seletivo. Não é possível tratar de todas as várias escolas de pensamento que proliferam na China nos séculos derradeiros da dinastia Chou, a maioria das quais seriam classificadas mais como filosofia do que como religião. Podem encontrar-se introduções ao desenvolvimento do pensamento filosófico chinês neste período em E. R. Hughes, Chinese Philosophy in Classical Times, Londres, 1942; Fung Yu-lan, History of Chinese Philosophy, vol. 1, Pequim, 1937; e W. T. Chan, A Source Book of Chinese Philosophy, Londres, 1963.
2. W. T. Chan, Source Book of Chinese Philosophy, p. 95.
3. Para uma tradução do Chung Yung e uma discussão do seu significado, ver E. R. Hughes, The Great Learning and the Mean in Action, Londres, 1942. 4. W. T. Chan, Source Book of Chinese Philosophy, p. 95.


Voltar para Religião e Mitologia

Nenhum comentário: