Saberes e Ciências na China antiga

in Bueno, André. 'Mirações do Celeste'. União da Vitória: Proj. Orientalismo, 2009, 174-182.




Neste último texto, trataremos da ciência tradicional chinesa, e de como ela constitui um outro modo de construção de conhecimento distinto do "ocidental". Está fora de questão discutir o quanto a China moderna aprendeu com estas importações tecnológicas; contudo, fiel a proposta deste livro, queremos entender o que sobrevive, na estrutura do pensar chines, desta forma de investigação científica, e as razoes de sua durabilidade. Um estudo deste gênero se baseia em fontes antigas, mas que estão dispersas. Por uma grande ironia, o responsável por agrupá-las novamente foi um pesquisador inglês, Joseph Needham, que na década de 50 iniciou sua vasta e densa obra Sciene and civilization in China, cujo objetivo era o descobrir o que - e como - foi inventado neste país. Grande parte deste capítulo deve-se a esta obra.

Antes de Needham, os historiadores ocidentais se contentavam em afirmar que aquilo que os chineses haviam descoberto era um acaso ou, era importado do oriente médio ou da Índia. Nada valorizava, de fato, o conhecimento chinês. Os próprios chineses sentiam, também, um sentimento de inferioridade e desinteresse muito grande pela sua cultura antiga, em função dos tempos obscuros e de atraso promovidos pela dinastia Qing.

A retomada deste conhecimento foi paulatina, e deveu muito as revoluções chinesas no século 20. Só assim a sociedade interessou-se em investigar novamente a si mesma, e suas origens. A procura de um equilíbrio entre a ciência ocidental e a chinesa é buscado, desde então, por meio de estudos comparativos que possam explicar e justificar uma a outra.

Como dissemos, porém, esta descoberta demorou a ocorrer. A história da ciência chinesa demorou a ser feita, e muito de seus conhecimentos antigos e sistemas sumiu. Essa foi também uma oportunidade perfeita para charlatões e falsários, que se utilizaram de aspectos superficiais e incompletos desta ciência para conseguirem dinheiro, fama ou uma aura de sapiência. É o caso clássico dos exoteristas, que raramente tem um conhecimento profundo sobre o assunto, acham que já leram muito e repetem afirmacões dogmáticas que eles mesmo criaram, mas que insistem serem milenares. Em geral, eles se arvoram defensores de uma tradição, e insistem em não dialogar com os defensores das "ciências ocidentais" (em geral, também, os mais incompetentes, que fazem política para compensarem suas más formações). Nada mais distante do que tem sido a atitude dos chineses e dos cientistas sérios na atualidade.

Há uma ciência na China?

Mas comecemos pelo básico; na antiguidade não havia, exatamente, uma definição de ciência na China. A situação das ciências naturais e investigativas chinesas era parecida com a da antiga filosofia ocidental antes de Galileu e Descartes; elas estavam incorporadas nas Jia (escolas de pensamento), e constituíam tao simplesmente "modos" ou técnicas de ver o mundo (veja-se o ensaio sobre literatura). Esta não separação ocorria em função dos sistemas interpretativos da natureza que os chineses haviam criado, e que se remetiam a tempos antiqüíssimos e cuja eficácia era dada como válida e correta. Assim sendo, tais investigadores compunham "linhas de pesquisa" que não exitavam em se especializar em algo (mecânica, botânica, química) e que viam, nisso, uma profunda conexão com a ordem social e cósmica, explicando-as por meio de suas descobertas.

Sistemas

As ciências tradicionais chinesas estabeleceram-se, desde cedo, por meio do sistema Yin-Yang e do sistema Wuxing (5 estados da matéria ou ainda, wujing, "5 essências"), mas não devemos esperar que eles tenham nascido prontos e nunca foram criticados ou reavaliados. Estes sistemas categorias funcionam por meio de relações analógicas, que muitas vezes foram objeto de disputa entre os chineses. Dois exemplos podem ser dados; na época Han, por exemplo, Dong Zhongshu defendia o sistema dos 5 estados, mas que se aplicavam ao corpo ou aos objetos da natureza segundo as circunstâncias, tal como também aparece no Tratado Interno (Neijing), o primeiro e principal livro de medicina chinesa da antiguidade. Assim, o espaço tem 4 direções, a natureza tem 4 estações, o corpo tem 5 "energias", são 5 os cereais básicos da alimentação, etc. No entanto, na mesma época, um outro texto, o Huainanzi, fazia correlações numéricas e qualitativas diferentes; afirmava, por exemplo, que haviam nove direções no espaço, tais como 9 cavidades no corpo, e que as víceras também eram 5, de acordo com as energias. Na dinastia Han posterior, Bangu escreveu, no Baihutong, que tais correlações eram ainda mais diferentes, posto que o espaço tinha 6 direções, e que haviam 5 estações do ano, etc. O que isso significa? Que cada um destes sistemas propunha interpretações diferentes dos eventos naturais, influenciando, por conseguinte, o exercício das ciências investigativas. Aos poucos a teoria dos 5 agentes presentes em Dong e no Neijing consolidou-se, mas não sem uma ampla gama de testes e discussões.

A segunda consideração envolve, novamente, a formulação de cada um destes sistemas, através da discussão dos atributos naturais dos elementos. Um outro exemplo pode ser dado; se o quente é yang, e o sal faz calor na garganta, ele também é yang? Além disso, o sal atrai a água (yin), logo, os opostos se complementam, então isso seria uma prova de que o sal seria yang. No entanto, outros autores afirmam que a água do mar é salgada, e como é maleável (atributo de yin), logo, o sal pode ser yin também. Tanto o é que o sal atrai o doce; e ele atrai justamente a água, em sua forma doce (yang), para restaurar o equilíbrio. Enfim, qualquer uma dessas visões apresenta uma longa lista de argumentos analógicos para justificar-se. Admitir um destes pontos significa, conseqüentemente, aceitar todo o sistema junto, filiando-se a uma escola. O erro muito comum dos inciantes ocidentais é transplantar a sua idéia de "verdade única" para ciência chinesa, transformando-se em discípulos de uma só visão e afirmando, categoricamente, que só há uma versão das coisas e que as outras estão erradas. Este é mais um dos erros que só comprometem um estudo sério da história da ciência chinesa.

Métodos de investigação

Céticos como Wang Chong (época Han) foram responsáveis por criarem regras para o desenvolvimento de padrões sérios de pesquisa na China antiga. Como não havia um monopólio acadêmico destas pesquisas, desde cedo os chineses aprenderam que a comprovação de suas teses necessitava sempre apresentar resultados eficazes e reproduzíveis. Como ocorre até hoje, determinadas invenções de caráter valioso podiam ter seus meios de produção guardados em segredo. Tal ocorreu com a seda, a porcelana e a pólvora, por exemplo, que durante algum tempo estiveram sob a supervisão do Estado. No entanto, os chineses sabiam que tais monopólios eram impossíveis de se manterem indefinidamente, e depois de algum tempo os resultados destes conhecimentos eram publicados em livros, cuja divulgação determinava o seu sucesso.

É curioso notar que, mesmo com um metodologia exigente, depois do século 18 as ciências chinesas começaram a cair numa decadência tremenda. Seu potencial criativo desapareceu, a ponto de se supor que suas conquistas anteriores seriam lendárias. De fato, a ação política dos Qing, como comentamos, foi extremamente deletéria para o livre pensar, e as nações que não valorizam seus cientistas tem por destino, infelizmente, a dominação política e econômica.
De qualquer modo, no que consistia essa investigação? O sistema básico consistia em identificar um elemento, e definir quais eram suas propriedades básicas dentro do sistema yin-yang e wuxing. A partir disso, estabelecer as correlações e testá-las; se funcionassem, demonstravam um raciocínio correto; se não, o objeto precisava ser reavaliado. O caso da pólvora é um exemplo. Carvão, salitre e enxofre são 3 substâncias que tem cores yang e propriedades yang (retenção de fogo). Se misturadas, elas poderiam gerar um grande yang? Neste caso, a resposta foi afirmativa. O mesmo procedimento se aplicou eficazmente em questões médicas e químicas, comprovadas tanto pela extensa e segura farmacopéia chinesa quanto pela acupuntura.

No caso das ciências matemáticas, tais procedimentos permitiram aos chineses descobrir antes dos europeus o número pi e o triangulo de pascal, e conhecerem, por si mesmos, o Teorema de Pitágoras. No entanto, o procedimento por analogias não foi suficiente para avaliar algumas boas teorias astronômicas, e mesmo que uma delas propusesse um sistema solar séculos antes de Kepler, a concepção de que a orbe celeste girava em torno da Terra prevaleceu na maioria dos casos até o período moderno.

Por fim, um outro tipo de método de trabalho envolve os desafios práticos ou a observação. Algumas das realizações chinesas devem muito a necessidade ou ao planejamento, como foi o caso dos moinhos d'água ou de vento, bem como os mecanismos (correia, roda dentada, coroa, etc.) que envolvem sua construção e a transmissão de energia. Tais inventos decorreram justamente de situações em que os cientistas imaginavam soluções mais eficazes para determinados tipos de problemas, ou da observação de suas possibilidades. Tal foi o caso, igualmente, da descoberta do magnetismo (e a conseqüente criação da bússola) e do petróleo, e de suas propriedades combustíveis.


A influência das invenções chinesas

O inventário das criações chinesas é extenso e demonstra claramente que, até o período já citado de estagnação desta civilização, a China era o principal centro tecnológico do mundo. A sua superação pela Europa transformou-se num processo inevitável, posto que estes países precisavam compensar, a todo custo, sua inferioridade numérica e de recursos. Mas, a grande revolução ocidental dependeu, ainda assim, da difusão de engenhos chineses, notadamente a pólvora, a bússola e o leme de popa, além do papel. Quanto a impressa, 50 anos antes de Gutenberg os chineses já imprimiam em tipos móveis e podiam colocar nas páginas figuras com 7 cores ou textos de idiomas diferentes - mas, a descoberta do alemão parece tratar-se de um processo autentico de elaboração.

Mas deve-se ter um cuidado muito grande com a grande lista de descobertas chinesas; afinal, nem todas elas influenciaram o pensamento ocidental, tal como se acreditou também que um dia a China seria uma importadora de conhecimentos da antiguidade. Acreditar que as coisas são inventadas apenas uma vez é uma falácia tao grande quanto imaginar que o teorema de Pitágoras foi levado da China para a Grécia ou vice-versa. As disputas sobre a primazia temporal de certos inventos também são, muitas vezes, inúteis. Os chineses criaram a pólvora e, no entanto, seu armamento era totalmente inferior aos dos europeus no início do século 19; por outro lado, a medicina chinesa, totalmente alheia aos procedimentos europeus, havia sido muito mais eficaz no tratamento e prevenção de muitas doenças, sendo uma das responsáveis pelo grande aumento populacional junto com avançadas técnicas de agricultura.

A continuidade

A superação geral impostas pelas ciências ocidentais causou um baque tremendo nesta ciência tradicional, a ponto dela ser encarada quase como superstição. Os chineses viram-se obrigados a rever muitas de suas crenças quanto a estes procedimentos investigativos, e em grande parte reconheceram o avanço tremendo obtido pelos europeus em vários campos. A reorganização dos quadros de ciência e tecnologia na China foram feitas aos moldes europeus, e as atividades acadêmicas neste campo são idênticas as promovidas nos currículos ocidentais. O debate que se estabeleceu, pois, é quanto a sobrevivência deste pensamento tradicional. Percebe-se que ele não é inútil em muitos setores, mas a questão é como evoluí-lo, de modo a ser de uso válido.
A medicina tradicional conseguiu, por exemplo, encontrar um espaço próprio na China, e tem sido disseminada no Ocidente de forma intensa. De baixo custo e sumamente eficiente na prevenção, suas teorias, ainda que não bem entendidas a luz de nossa ciência, são aceitas como um sistema complementar ao da medicina de intervenção ocidental. O mesmo ocorre com farmacopéia. No campo da física, teorias como a da perenidade do universo tem sido debatidas, e vários autores ocidentais vem discutindo sua incorporação a cosmologia acadêmica.

O que virá deste futuro será, novamente, um exercício de produção intelectual. Se for possível a total conciliação destes pensares, isso só poderá ser feito por cientistas que estejam dispostos a admitir as conquistas de cada uma das partes do mundo. A temporalidade é uma impressão enganosa - se a China já foi o centro científico do mundo, Europa e EUA podem o ser agora, mas o futuro pertence ao diálogo.

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