Visões dos Bárbaros


Um campo fértil e interessante é o estudo da identidade e da alteridade entre os chineses. A China é uma civilização, uma cultura antiga que engloba múltiplas etnias. A majoritária, denominada Han, compõe a grande massa que compartilha deste arcabouço; no entanto, a civilização chinesa não é impermeável as influencias externas, como se supõe. A relação dos chineses com os habitantes fora do seu mundo é cíclica, variável e circunstancial. Não se pode falar de uma xenofobia absoluta entre os chineses, como também não se pode criticar infindavelmente a sua postura cultural. Os chineses foram - e de certo modo ainda são - sinocêntricos, e lêem o seu redor pelas suas estruturas mentais. A pergunta que fica é se os ocidentais fazem muito diferente, ainda que invoquem a criação da "universalidade".

O que é ser chinês?
Desde a Antigüidade, ser chinês é uma noção vaga. No tempo dos Zhou, ser chinês equivalia a compartilhar uma cultura comum, dividida porém entre vários reinos e regiões. Confúco entendia que esta era a terra do centro, o lugar em que havia uma cultura estabelecida e milenar; fora dela existiam os bárbaros, que ele assim denominava por terem um modo de vida diferente do seu.

No entanto, as primeiras singularidades na concepção de "ser chinês" já aparecem na visão do mestre; em primeiro lugar, compartilhar esta cultura não significa, necessariamente, compreendê-la em seus meandros. Tanto o é que Confúcio lamentava o estado geral de sua gente, e o abandono das pessoas em relação as tradições; além disso, ele ameaçou várias vezes ir morar com os bárbaros, tal era sua decepção com os "seus". Para o mestre, os bárbaros podiam não ter as mesmas tradições que as suas, mas eram tão pessoas (Ren) quanto ele. Assim sendo, podia ser até melhor morar com os "incultos" do que com aqueles que, teoricamente, deveriam praticar os costumes e rituais que tornavam alguém um "cavalheiro" (junzi).

Desta forma, podemos perceber que o conceito de identidade cultural de Confúcio é, antes de tudo, um estado e um domínio da ancestralidade, dos valores que tornavam alguém chinês. Isso significava, por conseqüência, que alguém "podia" se transformar em chinês, e que esse alguém, enquanto praticasse estes ritos, "estaria chinês"; mas essa não seria uma condição perene. Um degenerado moral, por exemplo, constituía o indivíduo a margem da sociedade, e logo, "animalizado" ou que "deixava de ser gente" (= não ser mais chinês). Por outro lado, uma pessoa nascida no estrangeiro e que se dedicasse ao estudo e prática da língua, cultura e tradições chinesas poderia vir-a-ser chinês...sendo inclusive admirado por não ter a vantagem natural de nascer no país.

Confúcio não conhecia muitos estrangeiros em sua época, mas é bem provável que mantivesse sua opinião sobre outros povos mais estranhos que os bárbaros do norte. De qualquer modo, a cultura chinesa estabeleceu-se como a referencia unificadora da civilização, razão pela qual encontramos hoje dialetos que escrevem o mesmo chinês que pronunciam, porém, de modo diferente. O contraste entre o Mandarim (chinês oficial) e a pronuncia cantonesa no sul da China é um exemplo flagrante desta condição. Mas isso só mostra que os chineses estiveram, desde sempre, muito mais dispostos e interessados em assimilar do que propriamente excluir. A Xenofobia na China tem raízes históricas, que veremos adiante. Hoje, os chineses se entendem também uma etnia, de caracteres genéticos mais ou menos estabelecidos; em grande parte isso se deveu as hediondas teorias segregacionistas que os europeus levaram para o país, alcançando um "sucesso" amargo em estabelecer diferenças e criar tensões raciais.

Os outros nos tempos antigos

Uma série de fatores naturais isolou a China (ver capítulo sobre o espaço chinês), levando-a a entrar em contato tardiamente com outros povos absolutamente diferentes de suas tradições. Quando isso acontece, sua cultura já está organizada o suficiente para ler o "outro" pelos seus próprios matizes.

Mesmo assim, o eco de um confucionismo humanista manifesta-se na flexibilidade com que os chineses encaram o mundo lá fora. Durante o período Han, quando a China entra em contato com o império romano e o império parta, as descrições que dão dessas civilizações alça-as a condição de povos "equivalentes", por assim dizer, ao império do meio. Um trecho dessas descrições pode nos ajudar a compreender melhor esta visão do outro:

O povo de Daqin (Roma) tem historiadores e intérpretes de línguas estrangeiras, tal como os Han. As muralhas de suas cidades são de pedra. Eles usam cabelo curto, vestem roupas bordadas e deslocam-se em carros muito pequenos. Os governantes desempenham suas funções durante um curto espaço de tempo e são escolhidos entre os homens mais valorosos. Quando as coisas não vão bem, são substituídos. [Há aí um anacronismo, pois trata-se de uma referência aos cônsules da época da República.] O povo de Daqin possui elevada estatura.(...) Vestem-se diferentemente dos chineses. Sua terra produz ouro e prata, todas as espécies de bens preciosos, âmbar, vidro e ovos gigantes (ovos de avestruz). Da China, através de Anxi (Pártia), eles obtêm a seda que transformam em fina gaze. Os mágicos de Daqin (sírios?) são os melhores do mundo. Sabem engolir fogo e fazer malabarismos com várias bolas. Os Daqin são honestos. Os preços são tabelados e os cereais custam sempre barato. Os silos e o tesouro público estão sempre repletos. O povo de Anxi impede-os de comunicar-se conosco por terra; além disso, as estradas são infestadas de leões, o que torna necessário viajar em caravana e com escolta militar. Os daqin primeiramente enviaram emissários à nossa terra (em 166 d.C.). Desde então, seus mercadores têm feito freqüentes viagens a Rinan (Tonquim). (HouHanshu, de Fanye)

Esta descrição da vida imperial romana estava um tanto atrasada (o que fala aqui estava mais próximo da República), mas o tom é o que nos interessa; os romanos eram considerados culturalmente evoluídos, em função de algumas características específicas.

A Noção de ser civilizado
Pois nessa visão chinesa, ser civilizado (chinês) não é, apenas, ser confucionista. Equivale também ter e morar em cidades, e praticar agricultura; estar ligado a terra e ser sedentário, desenvolvendo técnicas que fazem evoluir a relação do ser humano com a natureza, e não apenas depender dela e de seus caprichos. Possuir um sistema político e leis avançadas, capazes de equilibrar as relações entre as pessoas e os poderes. O contrário de tudo isso era a vida do nômade, dos terríveis Xiongnu - que, expulsos da China, atacariam depois o império romano como "hunos" - entre tantos outros povos que viviam em estado de "selvageria". Chega a ser interessante perceber que o Ocidente acharia a mesma coisa dos hunos e dos germanos. Mas, para os chineses, os romanos constituíam uma civilização equivalente a sua, e por isso mesmo digna de respeito e admiração.

Quanto ao fluxo de estrangeiros, os anais dinásticos nos informam que os ocidentais (ou, qualquer povo vindo da África, Arábia, Oriente Médio ou Europa) continuaram a aparecer nos portos e fronteiras chinesas, mesmo durante as épocas de crise.

O cosmopolitismo Tang
Se o fim de Han apenas arrefeceu o ímpeto das comunicações com o exterior, o período Tang resgatou todo este cosmopolitismo, desenvolvendo-o ao máximo. Os Tang transformaram em moda a representação de mercadores estrangeiros, adotaram o barrete persa como chapéu, disputavam as mercadorias de luxo vindas do Ocidente pela rota da seda, que amavam com gosto por seu exotismo, e receberam todas as religiões vindas com a diáspora do fim do mundo romano; cristãos, judeus, muçulmanos, budistas, maniqueus, pagãos, etc... Um imperador Tang afirmou mesmo que "todas eram vias para A Via (Dao)". Os chineses desta época não tinha receio dos estrangeiros, senão aqueles que ameaçam suas fronteiras e sua cultura. Os árabes os atacam, mas uma batalha de proporções épicas (Talas) demarca a fronteira entre as terras do Islã e dos chineses; mesmo isso não impediu a recepção dos muçulmanos na China - e, contanto que a lei básica fosse observada, qualquer credo era considerado uma opção intelectual e devocional.

O tempo de introspecção da dinastia Song diminuiu um pouco o interesse pelos estrangeiros, mas não o comércio e o intercambio cultural. Listas de embaixadores e suas respectivas regiões de origem eram minuciosamente anotadas, e o conhecimento sobre o exterior era razoável. O início do trauma chinês com os estrangeiros viria com a expansão mongol, que iniciaria o tempo das terríveis invasões estrangeiras.

Começos de um receio exterior
As críticas as culturas dos estrangeiros eram pontuais, como foi a de Hanyu feita ao budismo na época Tang. Mesmo assim, o budismo transformou-se num sucesso dentro da China, mostrando a capacidade de absorção desta civilização. O que surge com o império mongol (Yuan) é uma época de preconceito, separação racial e temor diante do bárbaro. Genghis Khan era um grande conquistador, cuja capacidade limitada de diálogo causava pavor entre os súditos. Os mongóis impuseram um regime repressor, que aviltava a condição dos chineses dentro de seu próprio país.

Quando retoma o poder, a sociedade chinesa tem sua visão de mundo obscurecida pelo receio do estrangeiro. Os Ming estabelecem um regime duro, tanto interna como externamente. Realizam navegações incríveis, como as de Zheng He, mas abandonam toda a tecnologia e os ganhos diplomáticos para se interiorizarem. Numa das medidas claustrofóbicas tomadas para evitar as ameaças vindas do mar, o governo ordena o abandono das faixas de terra costeiras, numa distancia de 15km terra adentro. E a chegada dos portugueses apenas reforça este temor.

A apresentação dos europeus é a pior possível. Tentam tomar a terra pela força, agem de modo arrogante, ignoram a cultura chinesa e negociam como se fossem tão poderosos quanto o império do meio. Num primeiro momento, os chineses contiveram de maneira eficaz a presença destes estrangeiros. No entanto, os lusos aprendem a lição e buscam estabelecer formas de diálogo mas interessantes ao comércio. De invasores, transformam-se em aliados, ao combaterem os piratas japoneses, e conseguem a concessão de Macau.

O trabalho de Fok Kai Cheong (em Estudos sobre a Instalação dos Portugueses em Macau, 1997) mostra que os letrados chineses não chegaram a um acordo nítido sobre como lidar com os estrangeiros. Divididos em dois partidos, um favorável a convivência e outro a expulsão, os funcionários do império testavam fórmulas que pudessem dar conta deste desafio, mas sem uma continuidade:

Em 1530, em resultado deste debate alargado entre apoiantes de uma política proibitiva do comércio marítimo e os abolicionistas que apoiavam um comércio regular, mas controlado, emergiam dois temas dominantes. O primeiro fundamentava-se num temor profundo que os portugueses e os seus semelhantes pudessem alterar a paz e, por isso, ameaçar a segurança na costa. Tal temor era partilhado por ambas as partes. Os abolicionistas especificavam que que o comissário-adjunto da Defesa Militar e o comandante da Defesa Costeira contra os piratas, em locais como Dongguan e Nantou, deveriam examinar todos os navios que se aproximassem dos portos com mais vigilância. Os estrangeiros, como os portugueses, que não apresentassem credenciais para participação no comércio tributário, deveriam ser excluídos das zonas costeiras e subjugados por meios militares, caso resistissem. Contudo, os proibicionistas realçavam a eficácia de penalizar severamente os que tentassem fazer comércio com navios estrangeiros com o objectivo de desencorajá-los de virem à China. O segundo tema era o valor do comércio marítimo. Aqui, havia uma fissura entre os dois grupos. Os apoiantes de uma política proibicionista consideravam o comércio com os estados marítimos meramente como um meio de os pacificar, para que se pudesse manter a segurança das zonas costeiras. Os abolicionistas, por outro lado, estavam convencidos de que o comércio marítimo dava um contributo vital ao bem-estar económico das províncias costeiras. Assim, aconselhavam o recomeço do comércio regulado, mesmo correndo o risco de possíveis pilhagens por parte dos portugueses que, pensavam eles, podiam ser repelidos se as medidas de defesa marítima fossem apertadas. Estes dois temas vieram a determinar em grande medida a atitude dos funcionários do governo Ming em relação à presença dos portugueses na China, hostil ou simpática."
O despreparo para lidar com estas questões ficou claríssimo quando ocorreu a crise no fim do período Ming. Os Jurchen (Manchus), "aliados bárbaros" convocados por uma das facções imperiais para conter os separatistas, acabaram se aproveitando do vácuo e tomaram o controle do país, formando a nova dinastia - os Qing. Com isso, os chineses vêem se repetir o seu pesadelo cultural, tão temido quanto a perda de seu passado - o domínio estrangeiro. Os Qing repetem várias da ações de seus antecessores mongóis, instaurando um regime opressivo, segregador e isolacionista. Tanto a relação com as regiões periféricas quanto com os europeus não supera a concepção do "regime tributário", e a visão sinocêntrica consolida-se como uma barreira psicológica, reticente em relação ao estrangeiro e cada vez mais contida.

Os Qing herdam esta percepção de afastamento. Os estrangeiros são tolerados nos portos, mas proibidos de adentrar o país, salvo exceções obtidas pelos jesuítas. A proibição oficial de se ensinar chinês aos estrangeiros é a prova máxima deste desejo de isolacionismo; não se devia permitir a possibilidade de alguém sinizar-se, exceto aos próprios nativos! Com isso, a dinastia jurchen criava uma medida contraditória, perversa e insolúvel; quem não viesse a ser chinês, não poderia viajar pela China, do mesmo modo como era impossível alguém viajar pela China para aprender a cultura chinesa porque não se podia ser chinês!

Sem canais de diálogo, a civilização chinesa desta época não conhecia os estrangeiros, e sustentava sua ignorância com uma aparente estabilidade econômica. Quando da chegada dos ingleses no final do séc. 18, com a embaixada do Lorde Macartney, a reação Qing não poderia ter sido pior. Um relato fantástico deste encontro de civilizaçoes pode ser visto no livro "o Império imóvel", de Alain Peyrefitte. A carta que o imperador chinês envia ao oficial britânico é uma peça literária de intransigência grotesca, absurdamente caipira e alheia;

Dominando o vasto mundo, tenho apenas um propósito em vista, ou seja, manter controle absoluto e cumprir com as obrigações de Estado. Objetos estrangeiros e caros não me interessam [...] Não tenho necessidade dos manufaturados de vosso país. [...] Cabe a vós, ó Rei, respeitar minhas opiniões e manifestar ainda maior devoção e lealdade no futuro, para que, através da perpétua submissão ao nosso trono, possais assegurar paz e tranqüilidade a vosso país daqui por diante. [...] Nosso Império Celestial possui todas as coisas em prolífica abundância e não carece de nenhum produto dentro de suas fronteiras. Não havia, portanto, nenhuma necessidade de importar manufaturas bárbaras de fora, em troca de nossos produtos. [...] Não esqueço a distância solitária de vossa ilha, separada do mundo por extensões imensas de mar; tampouco esqueço vossa escusável ignorância sobre os costumes de nosso império Celestial. [...] Obedecei tremendo e não sejais negligente.

A que nível os chineses tinham chegado! Antes um centro de saber, o Reino do Meio tornara-se, praticamente, uma aldeia. Perdera conhecimento, isolara-se numa visão de mundo diminuta e limitada. Eis o grande perigo dos regimes que lutam contra a educação; preocupados sempre com as revoluções internas, esquecem-se dos perigos que vem de fora.

A agressão imperialista

A China era grande demais para ser controlada por inteiro, mas os europeus percebam que podiam tirar partido dela. Usando sua tecnologia militar superior, ingleses e portugueses impuseram seus pontos de vista ao imperador. As Guerras do Ópio, realizadas pelos primeiros, demonstraram a possibilidade de domar o império do meio e obter concessões vantajosas. Portugal exigiu o mesmo logo depois, e seguiram-se franceses, alemães e japoneses.

O governo Qing não sabia o que fazer, senão reprimir ainda mais os chineses. Solapada a sua capacidade representativa, os manchus não conseguiam mudar seu ponto de vista xenófobo, e sentiam-se cada vez mais isolados. A abertura do Japão demonstrou que era possível adaptar-se aos novos tempos, sem perder a essência de sua cultura. No entanto, os chineses não encontravam espaço para isso, e os letrados comprometidos com o poder estrangeiro limitavam-se a repetir uma ladainha moralista, afirmando uma suposta "superioridade cultural" que iria salvá-los do estrangeiro.

André Levy, em seu livro "Cartas do Extremo Ocidente" nos traz um panorama riquíssimo dessa visão sinocêntrica sobre a Europa. Um grupo de chineses viajou por vários países do velho continente, anotando seus costumes, hábitos, cotidiano, etc. Não surpreende que a observação destes viajantes é de espanto total quanto aos costumes dos "bárbaros brancos". A idéia original de Confúcio quanto a lidar com o outro foi fossilizada numa alteridade exclusivista, que via de modo pejorativo as culturas alheias:

Existem alguns resquícios dos costumes da idade de ouro do terceiro milênio na excelência da administração das escolas, dos hospitais, das prisões ou da prefeitura de todos esses países ocidentais. Quanto à doutrina que reverencia Jesus, ela inspira, contudo, o temor do Céu e o domínio de si, a consciência do dever de ajudar o próximo e de tirar proveito das coisas: ela não é tão contrária assim à Via do nosso santo Confúcio. O Parlamento com duas Câmaras, alta e baixa, também está de acordo com a idéia antiga de partilhar com as massas os castigos e as recompensas. É verdade que se produz, aqui ou ali, abusos, e que às vezes ministros ou militares poderosos cobiçam o monopólio do poder; buscam o apoio do populacho, tramam complôs e forçam o soberano a abdicar, como ocorreu recente­mente no Brasil e no Chile. Décadas atrás, tais acontecimentos se davam com muita freqüência, em uma situação análoga à da Confederação Chinesa antes da redação das Primaveras e Outo­nos, por Confúcio (no século VI antes da nossa era). A esse respeito, sua concepção de relacionamento entre soberano e súdi­to parece um tanto quanto contrária à Via do nosso santo Confúcio. Rapazes e moças com mais de vinte e um anos são declara­dos emancipados e não têm que pedir autorização aos pais para se casar. Quando um rapaz se casa, ele se separa dos pais, vai morar em outro lugar com a mulher e gera a própria fortuna; no pior dos casos eles nem se falam mais. Ainda que se possa preferir isso à hipocrisia das relações entre pais e filhos na Chi­na, ou às brigas entre nora e sogra, tratar os pais como meros passantes equivale a rejeitar o parentesco de sangue. As leis proí­bem que se chegue à agressão física. Um filho que atinja o pai é condenado a três meses de prisão. O mesmo vale para o pai que bate no filho. O motivo é que eles se baseiam no amor, sem graus de diferenciação como preconiza a doutrina hetero­doxa de Micius (forma latinizada de Mo Di, o filósofo que vi­veu entre os séculos V e IV antes da nossa era): eis como se chega a uma tal aberração. A relação entre pais e filhos é um tanto quanto contrária à Via do santo Confúcio. É costume no Ocidente dar-se mais valor à mulher do que ao homem. Se um homem encontra uma mulher no caminho, ele deve deixá-Ia passar e caminhar na frente. É de bom-tom, nos banquetes, que se sirva antes a mulher do que o homem. Quando uma mulher tem um amante, mesmo sendo esposa de duque ou marquês, não é raro que ela abandone o marido, e ninguém estranha que ela se case de novo. Se o marido tem uma amante, a esposa pode processá-lo, exatamente o contrário da nossa antiga teoria de apoio ao yang e repressão do yin. As mu­lheres têm vários homens antes do casamento, e às vezes não tem sequer vergonha de ter uma criança. É por isso que muitas mulheres não se casam nunca, detestando o constrangimento que traria a presença de um marido. A relação entre esposos é um tanto quanto contrária à Via do nosso santo Confúcio. Certamente, no desenvolvimento de cada país, toda doutri­na política merece consideração. Mas no que concerne às três relações fundamentais, no final das contas, aqueles países não valem a China. Mesmo os ocidentais parecem prestes a admiti-lo, já que reconhecem que o nosso país foi a primeira região civilizada do mundo. Entretanto, a mudança não poderia se ope­rar de forma brutal, pois os costumes resultam de um longo processo. Considero que o cristianismo foi um fator de civili­zação, e que seu poder de atração era grande em uma época em que o Ocidente estava em um estado primitivo, mas ele está em um beco sem saída; é uma via inexoravelmente incompleta e criticável. O menor erro pode levar a milhas de afastamento. Isso não é uma prova? (Xue Fucheng, 1891).
Os chineses repetiam assim a metodologia do ultraje, que aprenderam ao longo dos séculos com as invasões estrangeiras. O Colonialismo europeu conseguia ser, no entanto, inédito em sua capacidade agressiva. Em Hong Kong, no início do século 20, podia se encontrar um parque público em que se lia a placa "proibida a entrada de cães e de chineses". Não é de se estranhar que, inúmeras vezes, as revoltas chinesas deste período reivindicavam a expulsão dos estrangeiros.

O Mundo contemporâneo
A derrubada dos Qing vem acompanhada da retomada das possessões estrangeiras, e da recuperação da identidade chinesa. Salvo Macau e Hong Kong, todas as outras colônias retomam ao poder nativo. A República chinesa incorpora a noção de se ocidentalizar para adquirir cultura e tecnologia capazes de torná-los páreos e competitivos no mundo moderno, mas de modo autóctone e independente. A mente chinesa guiou-se, neste contexto, por escolher as formas que lhe pareciam mais convenientes para ensejar este processo de adaptação - e no caso principal, novamente, pela adoção da teoria comunista.

Quanto à visão do mundo exterior, a China acordou então para a universalidade, mas manteve muitas de suas reticências quanto as antigas nações colonialistas. Veja-se novamente o caso de Hong Kong e Macau; a primeira voltou, com má vontade da coroa inglesa, para as mãos chinesas, e foi considerada uma vitória e uma reparação por estes; quanto a Macau, foi negociada com uma tranqüilidade quase natural, sem cisões, dado o tempo de relação que Portugal havia desenvolvido com a China, e do encontro de um modelo de comunicação satisfatório entre ambos.

No campo externo, a China de hoje aproxima-se dos países com que não teve grandes atritos, tendo presença ativa na África e bons entendimentos nas Américas. Algumas desconfianças em relação às nações européias, ao Japão e os EUA estão sendo superadas em função dos interesses comerciais, mas a atitude da sociedade chinesa é de reserva em relação a estes países. Depois das experiências terríveis sofridas com os estrangeiros, só agora o país afasta-se lentamente da xenofobia. Demorará um tempo para que a China volta a ser realmente cosmopolita, como foi um dia durante os Han ou os Tang, mas já hoje os efeitos da globalização se fazem presentes na mentalidade cotidiana.

Um estrangeiro que aprende a língua, conhece um pouco da cultura e se porta de modo adequado consegue conquistar um certo respeito do cidadão comum chinês. Não se deve esperar uma incorporação completa, e a atitude de alguns ocidentais (principalmente os esotéricos) de se afirmarem "chineses" ou sinizados é tida como patética e digna de piada. Mas a China de agora quer que o mundo a entenda, de modo sério, tanto quanto ela foi forçada a compreender o que estava fora de sua tradição. Um humanismo real depende de assimilar a cultura desta civilização, tanto quanto espera-se que ela compreenda e aceite os modos de vida ocidentais. Retorna-se, de certo modo, o sonho de Confúcio; "entre os 4 mares, somos todos irmãos"; e abre-se novamente o caminho para uma nova integração mundial, equilibrada e raciocinada para além das tensões destrutivas.

Mas será, ela, realizável?

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