Texto de Análise (01) - Comunitarismo Apolítico

A cultura chinesa levou a um notável aprofundamento da consciência social, mas sem conduzir ao acordar de uma verdadeira consciência política. A primeira, pura e simplesmente, substituiu a segunda.
Dizer que o desenvolvimento de uma verdadeira consciência política está ausente da história das idéias na China não é pretender que a cultura chinesa tenha ignorado o facto político. Bem pelo contrário, a reflexão política teve constantemente no pensamento chinês um lugar privilegiado, sem dúvida até mesmo mais importante do que aquele que ocupa na tradição ocidental. Mas esta reflexão incidiu sempre só sobre a arte de governar do ponto de vista do poder, e nunca sobre o que pode ser, do ponto de vista do governado, o sentido e a condição de submissão ao poder. Os pensadores chineses fazem do homem um animal social - é mesmo isso que, aos seus olhos, distingue radicalmente o homem dos animais tomados tal como são, gregários e não sociais -, mas sem que lhes tenha vindo ao espírito que o homem podia além disso, corno diz Aristóteles, ser um animal político.

Um Estado sem dimensão política

O Estado imperial chinês, a partir do momento em que foi, de uma vez por todas, racionalizado cosmologicamente, ficou privado, no próprio pensamento político chinês, de qualquer dimensão, para falar com propriedade política, para só conservar uma dimensão puramente administrativa.
Se o sistema imperial chinês foi sempre impermeável a qualquer idéia de uma certa repartição do poder - sem falar de democracia, não faltavam, no entanto, nos limites exteriores do império, modelos de sociedades organizadas em oligarquias aristocráticas -, é porque era perfeitamente apolítico, constituído como organismo puramente administrativo.
No entanto convém reconhecer que, na sua forma administrativa, o sistema evoluiu consideravelmente, pelo menos dos Han aos Song: senão democraticamente no sentido propriamente político do termo (o que estava em tal sistema fora de questão), em todo o caso no sentido de progressos notáveis de um mecanismo de garantias cada vez melhor organizado contra os excessos de poder.
As grandes instituições nas quais se inscreve- ram esses progressos são as da censura, que controlava o poder mandarinal, do mecanismo das “repreensões", que controlava o próprio poder imperial, e dos processos de recrutamento, de afectação, de inspecção, e de mutação da função pública.
Os concursos mandarinais, por exemplo, instituídos no princípio do século VII, tornaram-se mais tarde até ao Ocidente um modelo de procedimento igualitário de recrutamento: adoptado por imitação da prática chinesa para as suas próprias necessidades pela Companhia das Índias no século XIX, o procedimento generalizou-se em seguida rapidamente em toda a Europa. É verdade que todos estes progressos, a seguir aos Song, foram parados, e mesmo aniquilados, na China. Porque este país foi, a partir do século XIII, duas vezes inteiramente submetido, durante quatro séculos ao todo, ao domínio particularmente opressivo das dinastias bárbaras, primeiro a dos Mongóis da dinastia dos Yuan, senhores de todo o Estado chinês de 1279 a 1368, depois a dos Manchus da dinastia dos Qing, senhores por sua vez de 1644 a 1911. Os soberanos destas dinastias bárbaras reverteram em benefício do autocratismo imperial todos os aperfeiçoamentos do sistema administrativo chinês que tinham adoptado. É verdade que entre as duas o país esteve sob a soberania de uma dinastia nacional, a dos Ming. Mas esta foi fundada por imperadores que foram verdadeiros tiranos e que, ao mesmo tempo que expulsavam os Mongóis, tiravam vantagem em manter em proveito do seu próprio poder os desvios autocráticos dos mecanismos administrativos de controlo que tinham feito os antigos invasores.

A idéia de um Estado ideal

Para além das mudanças dos mecanismos da administração, os pensadores chineses só se aproximaram de uma visão propriamente política do Estado através da idéia limite de um Estado ideal onde o poder já não se exerce porque já não tem necessidade de ser exercido, a sociedade funcionando perfeitamente por si mesma. Este Estado ideal é simbolizado pela figura, projectada nos tempos míticos da idade de ouro, do imperador lendário Yao, reinando sentado com os braços cruzados, enquanto à sua volta as actividades sociais se desenrolam por si próprias com a regularidades das circunvoluções das estrelas da Ursa Maior à volta da da estrela Polar.
O ideal político chinês de uma sublimação do poder do Estado naquilo que os filósofos, como vimos, chamam o não-agir, tem como fundamento o princípio de que a sociedade está por natureza estruturada de maneira perfeita, de tal maneira que, enquanto os homens se acordarem às regras naturais da vida social, o Estado, que só serve para corrigir os desvios, só existe pela forma. Eis em que sentido, na mentalidade chinesa, a consciência social substitui a consciência política.

Miribel, J. e Vandermeersch, L. Sabedorias chinesas. Lisboa: Instituto Piaget, 2004 p. 91-103

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