Texto de Análise (02) - A Escrita Chinesa

A escrita chinesa, um sistema analítico de escrita com cerca de quatro mil anos de existência, é hoje empregada por uma nação que possui aproximadamente um quarto da população mundial e que se estende por uma área superior à do continente europeu. Embora tenha tido uma existência mais longa do que qualquer outra das atuais escritas, o seu desenvolvimento interno foi praticamente nulo: as alterações na escrita chinesa foram de caráter técnico e externo - caligráficas, mas não estruturais.
As origens da escrita chinesa permanecem obscuras. Os mais antigos documentos conhecidos, diferindo apenas externamente da escrita chinesa do século XX, datam dos meados do segundo milênio a.C.: oráculos inscritos em ossos de animais e carapaças de tartaruga (os chamados «ossos de Honan») e pequenas inscrições em vasos de bronze, armas, olaria e jade. Algumas destas inscrições contêm apenas um ou dois caracteres representando nomes próprios ou funções religiosas. Os textos dos oráculos - geralmente tomados como respostas dos adivinhos reais a indivíduos que precisavam da sua ajuda - são um tanto mais extensos.
Se bem que mesmo os paleógrafos chineses apenas pudessem traduzir uma ou duas palavras dos oráculos, quando da sua descoberta em 1899, estão hoje decifrados (em grande quantidade), graças ao trabalho de estudiosos chineses - fato digno de tanta importância quanto a decifração dos hieróglifos egípcios e das escritas cuneiformes.
No estádio mais antigo do seu desenvolvimento, a escrita chinesa possuía apenas 2500 ou 3000 caracteres - há ainda certas dúvidas quanto à leitura dos ossos de Honan e na diferença entre símbolos isolados e meras variantes de um símbolo -, a maioria dos quais mostra ainda sinais evidentes da sua origem pictural. Destes, foram identificados aproximadamente 600, o que permite uma compreensão adequada das inscrições.
Nestas amostras primitivas, a escrita chinesa apresenta já uma forma transicional: é evidente que crescia o número de fonogramas. Este fato demonstra, normalmente, que a escrita esteve sujeita a longo período de desenvolvimento, durante prolongadas fases pictográficas. A ausência de exemplares relativos a qualquer destas fases anteriores pode ser explicada por uma das três hipóteses seguintes: (1) ou esses escritos foram feitos em materiais de pouca longevidade, como a madeira ou o bambu, dos quais nenhum poderia ter sobrevivido com o clima úmido da China; ou (2) a escrita chinesa foi artificialmente criada, talvez remotamente influenciada por um antigo cuneiforme através da «difusão de idéias» (em qualquer caso teria sido «inventada» como escrita transicional); ou (3) uma mais antiga forma de escrita continua ainda à espera de ser descoberta. Ao considerarmos estas hipóteses devemos recordar que tudo quanto conhecemos da história chinesa antes de 800 a.C. se baseia em conjecturas; tudo quanto hoje se pode afirmar com plena certeza é que nada se encontrou ainda que prove ter a escrita chinesa nascido fora da própria China.
A partir de meados do segundo milênio a.C. até ao século II d.C., data em que foram definidos por Xu Shen, mantêm-se inalterados os princípios da construção da escrita chinesa. Todavia, na forma, a escrita mudou bastante. As primeiras inscrições, gravadas ou pintadas, eram desenhadas com estiletes de bambu ou de metal, com os quais podiam facilmente traçar-se linhas curvas e retas de espessura uniforme. (A gravação era feita com canivetes de bronze.) No século III a.C., ou pouco antes, foi inventado o pi, o famoso pincel chinês feito de cabelo elástico, que teve notável influência sobre a subseqüente evolução da escrita. Pintados em verniz preto, os caracteres tendiam então a perder consideravelmente as curvas perfeitas e a sua semelhança com os ideogramas de que haviam nascido: processo análogo, em muitos aspectos, ao desenvolvimento da escrita demótica egípcia em relação às escritas hieroglífica e hierática. Com a invenção do papel, em 105 d.C., a escrita chinesa começou a tomar o aspecto com que hoje estamos familiarizados: graciosas pinceladas de espessuras diversas, em linhas retas ou suaves curvas. No século IV d.C., foi inventada a escrita clássica dos Chineses, kai shu. Muitas escritas cursivas e ornamentais têm surgido desde então, mas a kai shu manteve-se como paradigma.
A escrita chinesa era e é traçada verticalmente, de cima para baixo, começando no lado direito da superfície e (quando encadernada) na folha que normalmente consideramos ser a última de um livro.
Até aqui, a nossa explanação focou apenas a natureza física da escrita chinesa: e na verdade trata-se de um assunto muito importante porque, entre os Chineses, a caligrafia é tradicionalmente considerada uma arte maior, mais ainda do que a própria pintura de paisagem; uma arte que exige grande paciência, treino e habilidade. No entanto, devemos agora dedicar-nos à escrita como representação da língua. Como veremos, a história da escrita, neste aspecto, é inseparável de uma tradição escolar com pelo menos três mil anos de existência.
No seu período mais antigo, o então muito limitado número de caracteres fonéticos representava o chinês falado nesse tempo. A linguagem era então (e ainda hoje é) basicamente monossilábica. Como resultado, o mesmo monossílabo tem de servir muitas vezes como representação oral de inúmeras coisas e variados significados. Esta limitação tem sido tradicionalmente superada, e a língua chinesa tomou-se manejável e flexível pelo uso de variações características quanto ao tom: assim, ao pronunciar-se um monossílabo em tom crescente, decrescente ou de qualquer outro modo, reduz-se o gráfico de significação a dez ou vinte alternativas possíveis, enquanto o “contexto de situação” faz o resto. Outro meio que tem também facilitado a compreensão é o uso de “sinônimos compostos” - pares de palavras com significados semelhantes, um dos quais ajuda a identificar o outro.
Tal situação existia já quando foram feitas as primeiras inscrições por nós conhecidas. O seu efeito na escrita acabou por ser profundo: uma considerável barreira (na verdade, quase absoluta) foi erguida no caminho da escrita chinesa, tornando-a assim uma escrita fonética simples.
O uso de ideogramas não criou quaisquer problemas, uma vez que pretendiam ser auto-explicativos. Além disso, as combinações ideográficas do tipo em que a escrita chinesa é muito rica começaram a ser usadas num período bastante remoto. Por exemplo - o símbolo que representa «mulher», repetido duas vezes, significa «discussão» (wân); «ouvir» + «porta» = «escutar»; «homem» + «palavra» = «sincero» ou «verdadeiro»; e assim por diante. Outros métodos foram também encontrados para alargar, modificar e expandir os significados de diversos ideogramas, como a inversão de caracteres individuais e o uso de compostos associativos de várias espécies.
O uso de fonogramas - e como vimos eram já usados nas mais antigas inscrições hoje conhecidas - criou grandes dificuldades. Se uma simples palavra monossilábica (sem inflexão) podia apresentar doze ou mais significados diferentes, ao escrevê-la como simples fonograma dava-se então ao leitor apenas «o contexto de situação» para o ajudar na escolha do significado pretendido num caso particular. Apesar deste inconveniente, os fonogramas puros foram bastante utilizados, especialmente antes do primeiro milênio d.C. Mas, inevitavelmente, surgiu a forma de escrita designada pelos lexicólogos chineses como xing sheng, «harmonia do som», ou seja, o que podemos classificar por compostos fonéticos. No século X d.C. constituía já o elemento mais importante na escrita chinesa, somando 7697 dos 10516 caracteres; hoje, o xing sheng compreende nove décimos de todos os símbolos da escrita chinesa. Como se deduz deste desenvolvimento, foi o xing sheng que tornou possível o aumento (mesmo o excesso) do número de caracteres na escrita chinesa, e ao mesmo tempo a eliminação das ambigüidades mais evidentes.
Cada um dos caracteres do xing sheng é composto por dois símbolos, atuando um como elemento fonético e o outro como determinativo (ou «radical»). Tomemos como exemplo a palavra ko, «rio». O primeiro elemento deste composto é o símbolo kõ, «fruta» (originalmente, o desenho de um cacho de frutas numa árvore). Este símbolo não está associado, de modo algum, ao significado do composto, mas indica como deve ser feita a pronúncia final. A este junta-se o símbolo determinativo - neste caso, o carácter shui, «água». Assim, quem não esteja suficientemente familiarizado com a leitura do chinês terá de seguir o seguinte processo associativo: (I) a palavra pretendida soa vagamente como kò; (II) apresenta uma certa conexão essencial com o conceito geral «água»; (III) a palavra é ko, «rio».
Dois outros exemplos do xing sheng: gung «trabalho manual» + xin «coração» = kung «impaciência»; e gung + yen «palavras» = kung «luta».
Com o desenvolvimento do xing sheng e a expansão da escrita por todo o imenso território da China, começou a surgir uma excessiva multiplicação de símbolos na escrita. Muitas abreviaturas e compostos, inúteis e confusos, começaram a ser utilizados e logo em seguida começaram os escribas ignorantes a espalhar erros de várias espécies. De tal forma que os estudiosos chineses tiveram de iniciar, bastante antes do primeiro século d.C., uma tentativa de sistematização da escrita chinesa, despendendo nesse esforço considerável trabalho e certo engenho. Por volta do século XI a.C., surgiu a mais antiga tentativa de classificação, designada por Erh ya: uma coleção de termos dispostos em dezenove categorias. Nos fins do século III a.C., Li Si, ministro do primeiro imperador Qin, compilara um catálogo da escrita chinesa, San zang, no qual ordenou um total de 3300 caracteres.
Quatro séculos mais tarde, no segundo século d.C., Xu Shen publicou o dicionário Shuo wen jie zi («Uma Explicação de Figuras Antigas e Análise de Caracteres Compostos»). Este trabalho, que reformou o catálogo de Li Si, não sobreviveu na sua forma original, mas tornou-se a base de todos os estudos e classificações da escrita chinesa. Segundo W. P. Yetts, Xu Shen «preocupou-se sobretudo com a forma dos caracteres e suas origens, embora lhes acrescentasse breves explicações sobre os significados. Como fonte de informação recorreu aos clássicos então conhecidos, os escritos dos seus predecessores, e inscrições em bronze e pedra».
No século VI d.C., os estudiosos chineses começaram a compilar os dicionários fonéticos, yun lu, nos quais as palavras eram classificadas de acordo com o som ou a tônica; este modo de distinção, como já vimos, tomou-se a característica definidora da língua chinesa, em todos os seus dialetos e através da sua história. O primeiro desses dicionários, Yu pien, foi publicado em 543 d.C.; foi também o mais antigo a utilizar o sistema fan qie, que viria a ser, no século XX, o fundamento de uma tentativa para simplificar a escrita chinesa, de forma a obter um silabário. Este sistema reduz, essencialmente, o número de símbolos na escrita, socorrendo-se de duas sílabas para expressar uma terceira para a qual não existe qualquer representação fonética. Assim, a sílaba yu pode ser escrita, em fan qie, como yi-u,, a sílaba ming como mi-eng, e assim por diante. Nas suas mais antigas versões, o fan qie foi utilizado esporadicamente na elucidação da pronúncia e da leitura de caracteres especialmente confusos.
Em 601 d.C. foi publicado o Qie yun, um dicionário fonético do Norte da China. Cento e cinqüenta anos mais tarde foi ampliado sob o título de Tang yun e este, por sua vez, incluído numa compilação feita em 986 por uma comissão imperial criada por Xu Xuan. Este último foi também chamado Shuo wen xieh zi, reproduzindo o título do influente léxico de Xu Shen do século segundo. Foi, por sua vez, revisto por uma outra comissão imperial em 1011; seguiu-se-lhe uma série de revisões e adições até à publicação feita pelo imperador Kang Xi (1662- -1722) do seu grande dicionário de língua chinesa. [...]

in Diringer, D. A escrita. Lisboa: Verbo, 1969

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