por William Morton em China - História e Cultura (1986), Editora Zahar; Rio de Janeiro
Han Yu, destacado funcionário no Império Tang e um dos mais admirados mestres da prosa chinesa, assim se dirigiu ao trono no ano de 819. O assunto era a proposta introdução de uma relíquia, o osso de um dedo do Buda, no palácio imperial:
"O servidor de Vossa Majestade sugeriria que o budismo não passa de um culto dos bárbaros e que sua propagação na China data apenas da dinastia Han posterior, nada sabendo os antigos a respeito dela. [Se o imperador desse o mau exemplo de reverenciar Buda] jovens e velhos, tomados do mesmo entusiasmo, acabariam, pouco a pouco, por negligenciar totalmente os assuntos de suas vidas; e se Vossa Majestade não o proibir, vê-los-emos acudir em multidão aos templos, dispostos a cortar um braço ou tirar fatias do próprio corpo como oferenda ao deus. Desse modo, nossos costumes e tradições seriam gravemente afetados, e nós próprios nos tornaríamos alvo de zombarias na face da terra - na verdade, um grave problema! Pois o Buda foi um bárbaro. Sua língua não era a língua da China; suas roupas eram de um corte estrangeiro. Ele não proferiu as máximas de nossos antigos governantes, nem se pautou pelos costumes que eles nos transmitiram. Não apreciava o vínculo entre príncipe e ministro, nem o laço que une pai e filho. Supondo, na verdade, que esse Buda tivesse vindo à nossa capital em carne e osso, enviado oficialmente pelo seu próprio Estado, então Vossa Majestade poderia tê-lo recebido com algumas palavras de admoestação, oferecendo-lhe um banquete e um traje, antes de o pôr fora do país com uma escolta de soldados, e assim evitando qualquer influência perigosa na mente do povo. Mas quais são os fatos? O osso de um homem há muito morto e decomposto vai ser admitido, sem dúvida, nos recintos do Palácio Imperial! Disse Confúcio: "Prestem todas as homenagens aos seres espirituais, mas mantenham-nos a boa distância”.
[Han Yu, traduzido para o inglês por Giles, Gems of Chinese Literature, pp. 125, 127.]
Os argumentos de Han Yu são dignos de nota. Como racionalista e humanista, ele manifesta sua acentuada antipatia pelo entusiasmo religioso. Mas opõe-se ao budismo principalmente porque não é chinês, não faz parte de suas próprias tradições. Han Yu e muitos de seus contemporâneos haviam-se afastado da antiga avidez do período Tang por tudo o que era estrangeiro, e estavam retomando às fontes chinesas genuínas. Ele evidenciou tal atitude em sua própria prosa, porquanto buscou reproduzir em forma simples o que era chamado "o estilo antigo" (gu-wen). Han Yu viveu nos últimos anos Tang mas prenunciou muito da atitude mental e da cultura que caracterizariam a dinastia Song. Os Tang posteriores e os Song não podem ser divididos; juntos, mostram a China deixando para trás a era "medieval" e ingressando na "moderna".
Os capítulos da presente obra acompanham a tradicional divisão cronológica por dinastias porque elas ainda são importantes, em si mesmas, e porque formam um quadro de referência universal em todos os exames de aspectos separados da cultura chinesa, como a arte, a literatura ou a economia. Contudo, o desdobramento dos acontecimentos nem sempre se encaixa nas divisões dinásticas. Assim, os homens dos Tang anteriores juntam-se aos das Seis Dinastias em seu contato com a vida das estepes, em suas tradições aristocráticas e militares, e em sua abertura a influências não-chinesas. Em contrapartida, os homens dos Tang posteriores e Song afastaram-se da tradição militar e daqueles esportes, como caça, artes marciais e exercício físico, que lhes são concomitantes. Empregaram mercenários, recrutados normalmente na mais baixa classe social, e desse modo passaram a desprezar a instituição militar como um todo. Os líderes políticos obtiveram suas posições oficiais através da erudição, e eram os valores e as atividades do espírito que eles tinham em alto apreço: a sabedoria polida, a poesia, as belas-artes e as belles lettres. É certo que a nascente civilização urbana da nova era poderia ter dado origem a uma nova classe governante e, por conseguinte, a novos ideais, como ocorreu nas cidades e classes mercantis da Europa. Mas não foi esse, comprovadamente, o caso na China. Os intelectuais estavam muito bem consolidados em suas posições. Houve uma difusão mais ampla de riqueza e uma elevação geral no padrão de vida para todos os que estavam acima da classe camponesa básica. Mas
os eruditos funcionários burocráticos mantiveram sua posição dominante - o passado estava do lado deles - e os mercadores e abastados latifundiários eram mais propensos a se tornarem seus aliados e nunca seus senhores. As classes sobrepunham-se em grande parte, uma vez que muitos dos funcionários eruditos derivavam suas fortunas da terra. E, à semelhança de Han Yu, tornaram-se cada vez mais hostis às coisas estrangeiras.
Além disso, o padrão de civilização chinesa estabelecido pelos Tang posteriores e, em especial, durante a dinastia Song, persistiu em todos os seus aspectos essenciais até o final do Império Chinês, passando pelas dinastias Ming e Qing, até o momento em que o impacto do Ocidente, de uma nova e maciça forma, provocou mudanças inevitáveis. Mudanças houve, é certo, após a dinastia Song, porquanto os mongóis e depois os manchus realizaram violentas irrupções na sociedade chinesa. Mas tais mudanças eram de fora para dentro e, num certo sentido, efêmeras. A forma chinesa básica permaneceu estável e as alterações internas foram poucas. Essa estabilidade era, em si mesma, uma importante realização, assinalando a concretização do ideal chinês - um bem-sucedido equilíbrio de forças. Mas, lamentavelmente, deu a impressão de uma civilização perpetuamente estática, obscurecendo o notável progresso feito pelos chineses nas formas sociais, nos métodos administrativos e nas invenções tecnológicas desde os tempos neolíticos até, digamos, o século XIII.
O período seguinte ao colapso dos Tang compreendeu as Cinco Dinastias ao norte e os Dez Reinos ao sul. Não se faz necessário tentar estabelecer aqui a distinção entre esses regimes, quanto à sua breve duração e localização; será suficiente sublinhar, de acordo com o que já dissemos, que a continuidade cultural foi mantida.
Um general chinês, Zhao Kuangyin, foi enviado em 960 pela última das Cinco Dinastias, a Zhou posterior, para rechaçar um novo inimigo nômade vindo do nordeste, os Khitan. Mas Zhao, com o apoio de suas tropas, tomou o poder para si mesmo e fundou a dinastia Song. Uma vez com o Norte da China sob seu controle, a conquista do Sul não se fez esperar. Mas não seria um império de um soldado. Em concordância com os métodos implantados pelos Tang posteriores, o novo Estado entregou os mais importantes postos a funcionários recrutados por exame. O sistema foi regulamentado e os exames eram realizados de três em três anos, em três níveis: um exame na prefeitura, um na capital e um no palácio, o último dos quais determinava, em grande parte, a nomeação e a promoção. a índice de aprovações nos primeiros dois níveis não passava usualmente dos 10%. Uma crítica constante ao sistema de exames era que favorecia os filhos de funcionários no exercício de cargos, os quais obtinham posições através de apadrinhamento, apesar de todas as precauções em contrário, ou graças a oportunidades educacionais negadas a outros concorrentes. Isso acontecia freqüentemente, mas a pesquisa revelou o interessante fato de que, de meados do século XII a meados do século XIII, mais de 50% dos candidatos aprovados provinham de novas famílias que não ocupavam previamente cargo nenhum.
Os funcionários eruditos desfrutaram durante o período Song um grau de influência maior do que em qualquer outro período da história chinesa. Eles conseguiram, durante toda a dinastia, impedir a ascensão ao poder de parentes imperiais e eunucos. Embora não fossem ameaçados do exterior, havia entre eles grandes suscetibilidades políticas, e partidos políticos de caráter conservador e reformista desenvolveram rivalidades de certa aspereza. a organograma governamental Song compreendia, em poucas palavras, um conselho de altos ministros, menos de dez em número, que assessoravam o imperador, e três órgãos principais: o secretariado, sob o qual funcionava um certo número de ministérios e juntas; um conselho privado, que se ocupava principalmente de questões militares; e uma comissão financeira, a qual provou ser eficiente e formou uma considerável reserva nas primeiras décadas da dinastia.
Essa situação satisfatória nos começos do período Song foi contrabalançada, porém, por novas ameaças dos nômades do Norte. Os Khitan, no Nordeste, e vários povos combinados no Noroeste, que adotaram o nome chinês de Xia, exerciam considerável pressão sobre os Song. Esses povos estavam parcialmente sinicizados através da longa associação com seus vizinhos chineses, em contraste com os inimigos dos Han, os Xiung-nu, e os inimigos dos Tang, as tribos turcas, ou os mongóis subseqüentes, todos eles muito pouco influenciados pela civilização chinesa antes de suas incursões.
Os khitan eram um povo criador de gado da Manchúria que se expandiu rapidamente, fez de Pequim uma de suas capitais e penetrou até Kaifeng em 947. Aí, derrubaram uma das Cinco Dinastias, a Jin posterior, e adotaram o nome dinástico de Liao, reivindicando legitimidade chinesa. Seu império, no auge, estabeleceu o controle sobre toda a Coréia, o Norte e o Sul da Manchúria e a parte da China setentrional a oeste da região dos Ordos. Os Song haviam recuperado a maior parte do Norte da China mas, na Paz de Shanyuan, em 1004, tinham sido compelidos a pagar um vultoso tributo anual aos khitan de 100 mil onças de prata e 200 mil rolos de seda. Esse tributo foi elevado para quantias ainda mais altas em 1042. Era tão grande o poder khitan que estavam em contato diplomático com o Japão, a leste, e o califado abássida, a oeste. O seu nome, khitan ou khitai, era usado para representar a China em persa e turco, e ainda é usado assim em russo. Foi também assim que Marco Pólo se referiu à China como Catai, e passou algum tempo antes que os navegantes europeus, que tinham conhecimento do nome China pelo que sabiam do tráfego marítimo pelas rotas do Sul, descobrissem que Catai e China eram a mesma coisa.
Os khitan foram enfraquecidos e tornaram-se menos agressivos através da faustosa vida chinesa, e seu império desmoronou-se em 1125, sob a pressão de um outro povo setentrional, os Jürchen. Uma parcela da nobreza khitan transferiu-se mais para oeste, na Ásia central, e aí estabeleceu um reino bem-sucedido, o qual foi influenciado pelo budismo e pelo cristianismo nestoriano. Sua vitória sobre os turcos seljúcidas, num dos curiosos atalhos da história, pode ter originado a esperança medieval européia de encontrar um aliado cristão contra os turcos no lendário reino de Prestes João.
A segunda fonte de pressão sobre os Song, que não eram belicosos e não possuíam aliados "bárbaros" como os Tang haviam tido, foi a dos Xia ou Xi Xia (Xia ocidentais), um povo com elementos tangutes, uigures, tibetanos e chineses na população. Viviam nas regiões fronteiriças do Noroeste da China, criavam cavalos, ovinos e camelos, e dedicavam-se ao comércio. Os imperadores Song também foram forçados a pagar-lhes um custoso tributo anual da prata, seda e chá. Os Xia foram finalmente destruídos pelo mongol Gêngis Khan, em 1227.
O favorável balanço fiscal construído pelos Song no início da dinastia exauriu-se gradualmente, não tanto pelas exigências de tributos quanto pelas despesas de manutenção de exércitos mercenários. Essas considerações de economia e defesa deram azo a propostas de reforma por certos ministros, entre os quais o mais eminente e o mais controvertido foi Wang Anshi (1021-1086).
Gozando do apoio do imperador, Wang Anshi instituiu um certo número de medidas de reforma de grande alcance e espantosamente semelhantes aos dispositivos de controle econômico empregados no mundo moderno. É provável, entretanto, que Wang Anshi fosse motivado pela preocupação prática e administrativa com a solvência e eficiência do governo, e não por considerações ideológicas, "socialistas" ou puramente humanitárias, embora ninguém possa afirmar de maneira peremptória o que estava na mente dos reformadores Song. A fim de fortalecer a base camponesa do Estado, Wang concedeu empréstimos aos agricultores a juros de 20%, então considerados muito razoáveis. Conhecida como a Lei dos Brotos Verdes, essa medida habilitou os agricultores a contraírem empréstimos para a compra de sementes de cereais na primavera e a reembolsarem o Estado após a colheita. No caso de uma colheita ruim ou de desastre natural, havia uma cláusula que previa o adiamento dos pagamentos até o ano seguinte. Wang instituiu controles de preços e ampliou o crédito às pequenas empresas. Racionalizou os impostos, que eram pagos em espécie, vendendo cereal in loco ou exportando-o para áreas necessitadas, somente transferindo o saldo dessas transações para a capital, a fim de poupar nos elevados custos de transporte. Alterou a incidência do imposto territorial, a fim de distinguir entre campos de alta e baixa rentabilidade, e substituiu a corvéia por pagamentos em dinheiro. Na área da defesa, tentou o alistamento de camponeses em sua própria proteção, incentivando a criação de milícias civis sob a chefia de pequenos nobres locais, com prêmios concedidos aos que se distinguissem nos exercícios de instrução e como arqueiros. Numa nova medida, providenciou para que os agricultores tivessem cavalos de propriedade do Estado alojados em suas fazendas e para uso no trabalho de lavoura, mas com o compromisso de que um membro da família se apresentaria para serviço com o cavalo, se convocado numa emergência, a fim de se integrar a uma milícia montada.
Wang Anshi foi severamente criticado pelos conservadores em conseqüência de tais medidas, as quais, hoje em dia, parecerão racionais e benéficas a muitos. Algumas eram novas e outras eram antigas medidas aplicadas mais radicalmente. Entre seus opositores havia figuras respeitáveis, como o historiador Sima Guang (1019-1086) e o poeta e ensaísta Su Dongpo (1036-1101). Uma das críticas dizia que, ao envolver o Estado no comércio até o nível de varejo local, ele estava rebaixando e humilhando o imperador, ao fazê-lo "mascatear carvão e gelo como qualquer pequeno mercador". (O velho preconceito oficial contra os comerciantes deve ser aqui lembrado.)
A oposição era, sem dúvida, insuflada pelos interesses pessoais dos usurários e latifundiários que exerciam forte influência junto à classe oficial. Algumas medidas, como a Lei dos Brotos Verdes, foram sabotadas por administradores desonestos, embora esse plano tivesse sido ensaiado primeiro num projeto-piloto, numa área limitada, e ficasse demonstrado que funcionava bem. Mas Wang sofria, inegavelmente, de uma certa arrogância de poder - ele era conhecido como "o premier obstinado". De qualquer forma, a maioria de suas reformas, instituídas em 1069, foram abolidas com a morte do imperador Shen Zong em 1085.
Não muito depois desses eventos, a dinastia Liao (Khitan) seria tragada por um novo poder nômade, os Jürchen, cuja base se situava muito mais ao norte, no rio Sungari, na Manchúria. Investindo de forma avassaladora na direção sul, não tiveram muito trabalho para colocar os Liao fora de combate e arrasar a capital Song, em Kaifeng, em 1126. Com sua própria capital em Pequim, estabeleceram uma dinastia conhecida como a Jin, ou Kin, que significa "ouro", possivelmente derivado das areias auríferas de seus rios setentrionais.
Essa conquista motivou a divisão da dinastia Song, sendo a segunda metade, de 1127 a 1279, denominada a Song Meridional. A corte Song foi forçada a retirar-se de Kaifeng e a instalar um novo governo em Hangzhou. Traçou-se uma nova fronteira no vale do rio Huai e, a maior parte do tempo, os Song no Sul lograram coexistir com os Jin no Norte. Mas houve resistência guerrilheira aos Jin em Shandong e incursões periódicas por ambos os lados. Os Song ainda estavam envolvidos em pesados gastos comas milícias, não atenuados pelo aparelhamento de uma frota de guerra no século XII.
Apesar dos repetidos golpes que lhes eram infligidos pelos nômades do Norte, os Song estavam comparativamente seguros em seu santuário meridional, porquanto uma profusão de lagos e rios tornava impossíveis as operações em grande escala da cavalaria nômade. A economia de rizicultura Song prosperou, especialmente depois da introdução de variedades meridionais de arroz que davam duas colheitas por ano. A sociedade apresentava uma incrível riqueza e variedade, com o desenvolvimento da vida urbana. As cidades formavam um contraste impressionante com a vida rigorosamente controlada da Changan dos tempos Tang, com seus mercados administrados pelo Estado e seu toque de recolher para cada bairro separado da cidade. Em Kaifeng, a capital Song, desenvolveu-se um padrão de muito maior liberdade, o qual foi repetido nas cidades Song meridionais, onde mercados fora do controle estatal cresceram à sombra das grandes portas das cidades, para serem mais tarde adotados, por assim dizer, e incluídos no interior de uma nova muralha. Não tardaram em surgir outros mercados e bairros de diversões, e artesãos e firmas particulares de todas as espécies localizavam-se por toda a cidade a bel-prazer. A vida urbana era variada pela constante chegada dos ricos do interior, que viviam de suas rendas no que era agora uma sociedade capitalista e não feudal, e pela chegada dos pobres, que aí encontravam trabalho como criados, pequenos caixeiros e empregados em tavernas, casas de chá, cabarés e inúmeras oficinas. Havia oficinas para a fabricação de papel, cerâmica, objetos de metal. impressão de livros. artigos de laca e muitos outros para uso ou para luxo. Outros ganhavam a vida no submundo de ladrões. escroques e prostituídos de ambos os sexos.
Um padrão de vida mais elevado e até uma pitada de luxo tornaram-se possíveis para um muito maior número de residentes urbanos do que antes. Isso podia ser visto em mansões mais elaboradas, rico mobiliário, jardins belamente traçados e o culto da haute cuisine. O intercâmbio de mercadorias foi facilitado por uma vasta frota de navios de todas as tonelagens, numa rede de navegação interna que compreendia as costas, portos, rios e lagos do Sul da China.
Numa sociedade dotada de maior mobilidade, um novo desenraizamento deu lugar à consciência de novas necessidades para ajuda e proteção mútuas. Assim, novos agrupamentos humanos surgiram, como as corporações de mercadores e as associações de clãs, muitas das quais tomaram providências no sentido de, a título de doação perpétua entregarem propriedades agrícolas a fundações de caridade. com vistas à educação e ao amparo de membros indigentes do clã.
Tecnologia
As invenções a serem creditadas aos chineses dos períodos Tang posterior e Song são surpreendentes em seu número e complexidade. Já mencionamos o papel e a impressão, que tinham uma longa ancestralidade mas só entraram em uso comum durante os Song. A esses inventos cumpre adicionar dispositivos especializados como um escapamento hidraulicamente acionado para o mecanismo de relojoaria de um instrumento astronômico. onde caçambas eram enchidas numa cadência fixa e, esvaziando-se sozinhas graças a um mecanismo de desengate, repartiam o tempo em divisões muito precisas; ou um lança-chamas alimentado a óleo e que, acionado por um êmbolo duplo, proporcionava uma descarga contínua.
Os dois principais campos de inovação nessa era encontravam-se na construção naval e nas armas de fogo. O grande junco oceânico dos séculos X e XI despertou a admiração dos experientes marinheiros árabes e foi facilmente o líder de seu tempo. Tinha compartimentos estanques, quatro cobertas, quatro a seis mastros, e podia transportar uns mil homens. Estava equipado com velas de pano e de esteira para habilitá-lo a navegar tanto de vento em popa como à bolina. Foram inventados barcos de roda, com uma grande roda de popa e até 12 rodas adicionais de cada costado, acionadas por homens através de pedais ou manivelas. Esses barcos podiam atingir consideráveis velocidades. Mas as inovações mais importantes foram o cadaste e a bússola ou agulha de marear. O compasso na forma de uma agulha flutuante foi usado primeiro por geomantes e depois adaptado ao uso marítimo. Era conhecida na China desde, pelo menos, 990, e foi mencionada na Europa em 1190, mas só começou a ter grande uso prático em barcos europeus a partir de 1280.
Quanto às armas de fogo, diz-se comumente que os chineses inventaram a pólvora mas, sensatamente, só a usavam em fogos de artifício. Infelizmente não foi isso o que aconteceu. Catapultas com granadas explosivas foram empregadas com êxito pelos Song contra os Jürchen numa batalha em 1161. O uso de pólvora como força propulsora de projéteis parece ter sido objeto de experimentos desde 1132. No começo, foram usados tubos de bambu ou madeira para morteiros, sucedendo-Ihes os tubos de bronze e ferro nas guerras sino-mongóis de 1280. O uso da pólvora como carga de projeção parece ter chegado à Europa através dos mongóis e dos árabes.
Pintura Paisagística
As perturbações da época Song não diminuíram o interesse da classe intelectual pelas atividades culturais. Com efeito, o impulso que elas receberam durante a dinastia Tang atingiu seu ponto culminante com os Song, sobretudo no campo do paisagismo. Entre as muitas artes da China - fundição em bronze, talha em jade, escultura, arquitetura, a pintura de pássaros e flores, e a produção de obras-primas em cerâmica e laca - a arte da pintura paisagística assumiu o lugar supremo como a arte clássica por excelência. No Ocidente, a forma humana foi o ponto de interesse central durante a quase-totalidade de sua história, desde a escultura dos gregos, passando pelas pinturas medievais e renascentistas da Sagrada Família e de figuras clássicas, até os interiores holandeses e o retratismo dos séculos XVII e XVIII nas escolas francesa e inglesa. A paisagem como tema dominante surgiu comparativamente tarde, em associação com o movimento romântico. As obras de Constable, Turner e Corot datam todas da segunda metade do século XVIII. Na China, as coisas foram diferentes. Embora o Homem fosse o principal foco da filosofia, os artistas desde o século VIII ou mesmo antes encontraram sua inspiração na Natureza - e não em um aspecto ou outro mas na Natureza como um todo. A Natureza em seus vários cambiantes de sol e névoa, nas variações das estações, no equilíbrio de altas montanhas e cursos d'água fluindo nas planícies, não só aliviava e revigorava o espírito do artista mas atraía sua mente como uma pista para o harmonioso funcionamento do universo, seu dao ou Caminho. Pois o artista como artista, fossem quais fossem suas outras preocupações, tendia a ser um recluso, um individualista e um daoísta. A pintura paisagística era, pois, o modo mais grandioso e mais satisfatório de representar a Natureza como um todo, de afagar um sentimento de comunhão com a Natureza e de se sentir parte integrante da ordem cósmica.
Aí reside a razão para uma importante diferença no ponto de vista e na perspectiva do pintor na arte ocidental e na chinesa. O olho do artista ocidental recebe a cena desde o nível do homem de estatura mediana, de 1,60m a 1,80m acima do solo. O artista chinês trabalha de um ponto de vista elevado, como se estivesse no alto de uma colina oposta à cena, de modo que se livra de um excesso de minuciosos e irritantes detalhes no primeiro plano e pode obter uma visão geral do todo. Ou poderíamos dizer que ele não tem um ponto de vista fixo e que o seu olhar vagueia à vontade, horizontal e verticalmente. A idéia de perspectiva múltipla ou indeterminada parece fantasiosa até olharmos pela primeira vez para uma paisagem Song, como "Templo Budista nas Colinas depois da Chuva", por Li Cheng (ativo c. 940-967). O templo situa-se numa colina, a meia altura, com quedas d'água à esquerda e mais ao longe. Por detrás dele, sobranceiros a um vale enevoado, erguem-se dois picos de altura imponente. O primeiro plano, fundindo-se imperceptivelmente no resto da pintura, mostra-nos as voltas mais próximas do rio, uma barranca escarpada à esquerda, com árvores retorcidas e desgrenhadas, e camponeses e cortesãos descritos em minucioso detalhe, comendo e bebendo na estalagem usada pelos peregrinos que visitam o templo. Quase todas as partes da cena, altas e baixas, estão repletas de interesse e podem ser apreciadas com satisfação desde o ângulo do artista; no entanto, a pintura é um todo.
A composição de Li Cheng é na muito conhecida forma de um rolo pendente. Mas a perspectiva variável funciona também no rolo manual horizontal, que se destina a ser desenrolado da direita para a esquerda e visto uns 5Ocm de cada vez. Um excelente exemplo é uma seção de um rolo por Xu Daoning (ativo no final do século X e começos do século XI), intitulado "Pescaria num Riacho da Montanha". A massa montanhosa separa dois vales que correm diretamente desde o espectador até se perderem nas cordilheiras distantes ao fundo. Cada um dos vales pode ser visto em sucessão como a cena principal. Mas há um terceiro vale à esquerda que forma uma cena própria, engenhosamente centrado por um pico de modesta altitude, atrás do qual o vale bifurca-se para a direita e a esquerda. Os acentos de primeiro plano são marcados aqui e ali por árvores escuras e alguns barcos de pesca no rio, mas os contornos da montanha são intencionalmente dissolvidos em aguada, à medida que a pintura recua na distância, criando uma sensação esfuziante de vastidão de espaço.
Laurence Sickman comenta que
"a forma de rolo horizontal é a culminação do gênio criativo chinês em pintura. É a única forma pictórica no mundo que confere à arte uma verdadeira progressão através do tempo. À medida que o observador avança ao longo de tal rolo, há um elemento distinto do tema que se desenrola e se desenvolve de um modo muito parecido e, diga-se de passagem, com um mecanismo idêntico àquele como um tema é desenvolvido na poesia ou na música ocidental. A composição desses rolos seria impossível com um ponto de fuga fixo e uma perspectiva de um só ponto. É preciso haver múltiplos pontos de fuga, um diluindo-se imperceptivelmente no seguinte.(...) É impossível olhar compreensivelmente um rolo de paisagem sem que nos tornemos parte integrante dela e sem penetrarmos no mundo de montanhas e rios do artista. Nesses rolos de paisagens aparece repetidamente uma estrada ou vereda no começo, e somos quase forçados a segui-Ia. Essas estradas dirigem a atenção do espectador e instruem sua visão. Ele deve caminhar de vez em quando no primeiro plano, olhando as planícies e as colinas distantes; é conduzido às próprias colinas, atravessa pontes, escala montanhas, repousa em templos situados nas alturas; ocasionalmente, poderá escolher entre a estrada e um barco e, com freqüência, é levado completamente para fora das vistas, desaparecendo atrás de um barranco para reaparecer mais longe".
[Sickman e Soper. The Art and Architecture of China, p. 108].
Além da questão de perspectiva, um segundo ponto prático separa a arte chinesa da ocidental; diz respeito ao veículo empregado e conseqüente técnica. As obras de arte ocidentais clássicas são executadas em óleos sobre telas, ao passo que as pinturas chinesas são feitas de tinta solúvel na água sobre seda ou papel altamente absorvente. São usadas cores, é claro, mas a maioria da arte mais apreciada é feita em preto e branco, com delicadas variações de cinzento. Quando são empregadas tintas de óleo, é possível apagar uma parte da tela e refazê-Ia em nova versão. Mas com nanquim e aquarelas, uma vez feito o traço ou dada a pincelada, nada pode ser refeito ou alterado. O artista chinês em caligrafia ou pintura - e as duas são consideradas virtualmente uma só - deve, portanto, exercitar-se repetidamente, até que tenha adquirido tal controle sobre a pena ou o pincel que, na obra final, possa mover-se com inteira confiança e sem erro ou hesitação. Para fins de exercício prático, existem métodos estereotipados de pintar folhas, pedras, relva, bambus, montanhas, pinheiros, pássaros e uma série imensa de outros itens, enumerados e esquematizados à maneira chinesa. Mas, uma vez dominada a técnica, o gênio do artista pode alçar vôo em plena liberdade e usando seu próprio estilo pessoal. Essa "decolagem" é comparada pelos críticos chineses ao vôo de um dragão penetrando nas nuvens. O estado de espírito do artista é de suprema importância para se alcançar esse fim. Por via de regra, ele não está pintando o retrato de uma cena real. Visitará as montanhas e os rios, e embeber-se-á no cenário. Depois, regressando ao seu estúdio, dispondo em ordem os pincéis, a tinta e o papel numa mesa limpa, e desanuviando seu próprio espírito nesses preparativos, ele passará ao papel, com segurança e em rápidas pinceladas, quando o momento amadurecer, a composição ideal que já existe em sua mente. Concluído o vôo do dragão, as palavras de um crítico do século XVII podem então ser verdadeiras: "O melhor método é aquele que nunca foi um método”.
O espírito dos grandes artistas Song foi afetado por influências filosóficas que provêm do Daoísmo e do Budismo. A concepção daoísta da totalidade da natureza já foi mencionada em relação a isso, mas a ênfase daoísta sobre o vazio também é de grande significado. O Não-Ser é tão importante quanto o Ser na natureza do Dao.
Isso foi ilustrado no Dao De Jing, o Clássico do Caminho e seu Poder, pelo fato de que uma tigela comum somente é valiosa por causa do que aí não há, o espaço interior criado pelas paredes da tigela, no qual o conteúdo - arroz, sopa ou qualquer outra coisa - pode ser colocado. Esse princípio do valor positivo do vazio emerge em pintura no uso criativo do espaço pelo artista. Seria ocioso pretender que essa idéia existe somente na China, pois todos os grandes artistas, em qualquer parte do mundo, empregam-no instintivamente na composição. Entretanto, é uma importante e consciente característica de todas as paisagens chinesas e, em particular, da pintura Song posterior, onde é usada com habilidade consumada.
Após o colapso do governo Song no Norte, o primeiro imperador Song meridional, Gao Zong, reuniu na Academia de Pintura em Hangzhou, no famoso lago Ocidental, o maior número que podia de artistas que tinham sido membros da Academia anterior. Esta fora fundada pelo pai de Gao Zong, o imperador Hui Zong (que reinou em 1101-1125), ele próprio um notável pintor de pássaros e flores. Entre os mais famosos membros da nova Academia estavam Ma Yuan (c. 1190-1224) e Xia Gui (c. 1180-1230). Ambos esses artistas exibiram, num grau muito superior ao conhecido no Império Song Setentrional, essa qualidade de sugestão, de uso do espaço deliberadamente deixado à parte, incitando o observador a buscar em sua própria imaginação o que está poderosamente ausente na seda à sua frente. “Paisagem ao Luar", de Ma Yuan, por exemplo, mostra um sábio jovial e seu criado num pequeno e chato afloramento rochoso no canto inferior esquerdo do rolo vertical. Estão à sombra de um frondoso e enrugado pinheiro e, por detrás deles, à esquerda, ergue-se um precipício com alguns pinheiros empoleirados precariamente à sua beira. À direita, no vale embaixo, há uma pequena árvore retorcida e um modesto relevo de agulhas rochosas. Mas toda a direita superior da pintura foi deixada em branco, sentindo-se que está inundada de luar espectral, embora a própria lua não esteja visível em parte alguma. Uma outra pintura, "Paisagem em Tempestade Outonal", de Xia Gui, vai ainda mais longe no vazio intencional. Não surpreende que essa pintura esteja numa coleção particular no Japão, pois os japoneses são fiéis à sua preferência pela sugestão em vez da declaração clara em toda a arte. Nela, as folhas estão sendo arrancadas de uma árvore vergada pela forte ventania, e um homem minúsculo, sob um chapéu de chuva, esforça-se por atravessar uma estreita ponte a fim de alcançar a cabana sob a árvore. Os dois terços superiores da pintura pouco mais contêm do que parte de um penhasco alcantilado, com uma árvore enfezada no topo, e a sugestão de um pico montanhoso a grande distância. O resto deve ser uma nuvem rodopiante, pois nada existe aí para ser visto. O efeito é assustador mas, de algum modo, humanizado e tolerável; até mesmo, num curioso sentido inverso, exultante.
A influência do domínio budista de pensamento pode ser vista no modo como o Homem está subordinado à Natureza na arte paisagística da China. O homem, pescando, cavalgando, bebendo numa taverna, está usualmente presente, ou traços do Homem na forma de templos, pontes, ou barcos; mas eles são ananicados em tamanho e importância pela vastidão da cena natural. O Homem faz parte da Natureza mas não a domina, como na tradição hebraica, nem procura controlá-la, como na tradição científica ocidental. Esse é também um aspecto da totalidade do processo universal no Daoísmo. Mas é particularmente forte no Budismo, onde a imanência do Buda em todas as coisas evoca sentimentos religiosos e onde o homem, animais e até plantas e pedras, todos são envolvidos numa interminável cadeia de ser. Durante quase toda a era, praticamente pintura sim, pintura não, poderia ser usada para ilustrar isso, mas uma de Zhu Ran (ativo no final do século X) presta-se a exemplificar esse ponto com especial sutileza. Embora tenha sido intitulada "Buscando Instrução nas Montanhas Outonais", não há qualquer figura humana visível, apenas o telhado de colmo debilmente discernível de um rústico mosteiro aninhado numa ravina do sopé de ondulantes colinas. O próprio Zhu Ran era sacerdote budista.
A mais ostensiva influência das idéias budistas é observada no famoso par de pinturas por Liang Kai (ativo c. 1200) chamado "Patriarcas da Seita Chan (ou Zen)". Um ancião de nariz chato, desenhado com extrema economia de linhas, está agachado e ergue uma pesada faca com que desbasta uma cana de bambu para fazer um bordão. A vista por detrás do rosto, a três quartos, revela extrema concentração. É essa concentração e obstinação que não se exibe simplesmente, mas é a sua religião Zen na vida cotidiana, por meio da qual ele se perde e encontra o Buda, interior. O outro ancião está fazendo algo deveras inominável pelos padrões confucianos e budistas; ele está furioso, batendo os pés e rasgando escrituras, a sagrada palavra escrita. Mas, por outro lado, o Zen não depende de escrituras, ou sabedoria, ou ritual, mas tão-somente da experiência imediata, incomunicável e individual da iluminação. A força vívida e o vigor espiritual dessas pinturas são assinalados nas poucas linhas mais carregadas e nos ângulos agudos das roupas e dos segmentos descarnados de rocha e galhos que completam a cena. Aqui, tudo o que fosse estranho e supérfluo foi reduzido ao mínimo e somente ficou a interioridade.
Muitos grandes nomes dessa era de mestres foram omitidos nesta breve descrição: Guan Tong, em meados do século X, Dong Yuan no final e Fan Guan, ativo de 990 a 1030, todos do Império Song Setentrional. Li Tang foi o mais célebre dos acadêmicos reagrupados em 1138 no Império Song Meridional, e Mu Qi (também conhecido como Fa Chang) foi um sacerdote e pintor famoso de temas Chan (Zen) na primeira metade do século XIII. Um artista que representou a transição entre os pintores da era Song e os da dinastia Yuan foi o excêntrico e mundano intelectual Mi Fei (1051-1107), amigo do poeta SuDongpo. Seu estilo solto e impressionista não era aceitável para o imperador Hui Zong, e nenhuma de suas obras foi incluída na coleção imperial. Mas seu estilo inspirou Ni Zan, um artista ainda menos tradicional da dinastia Yuan. Ni Zan orgulhava-se de sua "falta de graciosidade"; foi ele quem replicou à observação de um amigo de que seus bambus não pareciam bambus: “Ah, mas uma ausência total de semelhança é difícil de realizar; nem todos conseguem isso”. [Ni Zan, citado em The Legacy of China. ed.organizada por R. Dawson, p. 205.]
Neoconfucionismo
Como novas tendências e crescente refinamento se tomaram evidentes em tantas áreas durante a era Song, não surpreende que também a filosofia passasse por mudanças de grande importância. A tendência para repudiar o Budismo e retornar aos clássicos confucianos iniciada por Han Yu prosseguiu. Mas o Confucionismo que emergiu das especulações de Zhou Donyi e dos irmãos Cheng, na segunda metade do século XI, não era de forma alguma o mesmo dos dias de Confúcio e Mêncio. O desafio da metafísica budista indiana e do pensamento daoísta exigia que se prestasse alguma atenção a um quadro filosófico que servisse para explicar o mundo e a natureza humana. Havia considerável debate entre as várias escolas de pensamento mas, no final, prevaleceram os pontos de vista abrangentes de Zhu Xi (1130-1200), que se tornou, embora não fosse essa a sua intenção, o líder de uma nova ortodoxia, conhecida no Ocidente como Neoconfucionismo.
No sistema de Zhu Xi, que depende em parte de concepções formuladas anteriormente por outros pensadores, tudo no mundo foi constituído pela interação de dois fatores, o Li, ou forma do objeto, e seu qi, ou matéria. (O significado do segundo termo é, literalmente, "vapor" ou "éter".) Os Li de todas as coisas somam-se no tai ji, ou Grande Fundamento. A semelhança entre essa teoria e a teoria platônica de Idéias ou Formas salta imediatamente à vista, e o paralelo estende-se à noção do Grande Fundamento, a qual não é muito diversa da Idéia do Bem. No que se refere ao homem, o Li da natureza humana é comum a todos e basicamente bom, mas os homens variam em sua exemplificação de bem ou mal de acordo com os seus qi, ou suas dotações físicas. "Aqueles que recebem um ch'i [qi] que é claro são os sábios, em quem a natureza é como uma pérola jazendo em leito de água fria e cristalina. Mas aqueles que recebem um ch'i túrbico e opaco são os néscios e os degenerados, em quem a natureza é como uma pérola enterrada em água lodosa”.[Zhu Xi, Recorded Savings. zhuan 4.]
Houve um longo e contínuo debate entre a escola confucionista realista, descendente de Xunzi, que afirmou ser a natureza humana maligna, e os idealistas dependentes de Mêncio, que sustentavam ser ela boa. Zhu Xi defendia o ponto de vista de MêncÍo mas acrescentava que a educação recomendada por Mêncio deve ter por base xiu shen, o auto-aperfeiçoamento. Este termo também já fora usado antes, mas Zhu Xi interpretou-o numa acepção particular. Para ele, significava algo muito mais profundo do que a tradução de xiu shen para a nossa língua implica, algo da natureza de um compromisso pessoal. Diz ele que a meta deve ser alcançada pela "extensão do conhecimento através da investigação das coisas" e a "atenção da mente". Além disso, "a investigação das coisas", que soa um tanto descolorida ou friamente científica num idioma ocidental, não tinha essas conotações no pensamento de Zhu Xi. Afirma ele (zhuan 46) que a investigação das coisas "significa que devemos procurar o que ‘está acima das formas' através do que'está dentro das formas” [ou seja, o Li através do qi]. Então, "mediante o Li que ele já compreende [o estudante deverá] avançar ainda mais para adquirir o conhecimento exaustivo daquilo [com que não está familiarizado]". A dívida Song para com os elementos religiosos e psicológicos no Budismo está clara na conclusão de Zhu Xi nessa passagem, quando diz: "Quando alguém se esforçou por longo tempo, finalmente, uma manhã, abrir-se-á diante dele um completo entendimento. Daí em diante, haverá uma compreensão profunda de toda a multidão de coisas, externas ou internas, sutis ou grosseiras, e cada exercício mental será marcado pela completa iluminação”. [Zhu Xi. Commentary on the Great Learning, capo 5. Nesta seção, ver as transcrições de Fung Yu-lan, A Short History of Chinese Philosophy, traduzido por Derk Bodde]
Em 1313, um século após a morte de Zhu Xi, por um decreto da dinastia Yuan, os comentários de Zhu Xi sobre os Quatro Livros passaram a ser o padrão oficial para os exames do serviço civil e, assim, o homem que insistiu na investigação das coisas tornou-se o originador involuntário de uma ortodoxia que, com o passar do tempo, se tomou cada vez mais rígida. A comparação freqüentemente feita entre os dois contemporâneos, Zhu Xi e Tomás de Aquino, não é inteiramente descabida. Ambos foram dotados de espírito capaz de vastas sínteses; ambos formularam conceitos metafisicos derivados de fontes exteriores, num caso do Budismo, no outro de Aristóteles, com o objetivo de completarem e consolidarem um quadro de referência abrangente para idéias éticas ou religiosas oriundas de um reverenciado mestre anterior; e ambos fundaram ortodoxias que, depois de suas épocas, perduraram com poucas mudanças, por séculos.
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