Descentralização e Arte Búdica

No ano 208 d. C., a dinastia Han acabava com a Batalha naval da Muralha Vermelha, no Iansequião médio. O Estado unificado, que durara quatrocentos anos, dividiu-se em três Estados que, cinquenta anos depois, se alteraram. Uma dinastia mais poderosa pretendeu dominar, mas não conseguiu impor-se aos senhores das províncias, que fundaram dezesseis dinastias “ilegítimas”. possuidoras de uma independência de facto. Em seguida, o império dividiu-se em duas partes: o Norte, onde reinavam os conquistadores turco-mongóis, sob o nome de uma dinastia Wei, e o Sul, onde se sucederam na capital, Nanquim, seis dinastias que se pretendiam legitimas.
Somente em 589 foi reunificado o Império. A partir de 630, a dinastia T'ang, entretanto chegada ao poder, libertou-o pela força das armas e aumentou-o. De 630 a 750, a China atingiu o cume do seu poderio político e o apogeu da sua arte. As suas fronteiras chegavam à Pérsia, e tornara-se uma potência mundial cujo nome desfrutava de grande consideração em toda a Ásia.
Os dois séculos entre 250 e 450 d. C. representam a época mais obscura da história da arte chinesa, mas não é de esquecer que as escavações sistemáticas na China são recentes, o que nos leva a confiar que estas lacunas virão a ser preenchidas. Sem dúvida alguma houve então grandes artistas, e os nomes dos pintores célebres que nos foram transmitidos indicam-no-los como Wang Hsi-tche e Ku-Kai- -tche (por volta de 346-407), de quem se conhecem diversas cópias de dois rolos, cópias estas que possuem um certo valor documental.

A arte búdica na China
Aproximadamente em 450 d. C. começa a série de obras escultóricas búdicas: por um lado, grandes estátuas de pedra que recobrem os Bancos de montanhas inteiras, onde se cavaram hipogeus, e, por outro, os bronzes, quase sempre de pequeno formato, visto que os maiores foram derretidos para se cunharem moedas. As inscrições permitem-nos seguir o desenvolvimento destas esculturas de inspiração religiosa de decénio em decénio, até 750. A maioria dos monumentos de pedra encontra-se no Norte, no território da dinastia Wei, cujo nome é empregado para designar esta época de arte; mas não se limita a estas esculturas toscas ou meramente simples toda a arte búdica de então, nem tão pouco a arte chinesa desta época, nem sequer o essencial desta arte. A importância de um centro como Nanquim, capital das Seis Dinastias (Lieu-Tchau), não pode ser subestimada, apesar de ainda não ser possível apreciá-la com justiça.
Poucas destas obras se conservam. Apenas as colossais e grandiosas figuras de animais que guardam os túmulos dos imperadores e dos príncipes testemunham esta antiga glória. As formas destas esculturas, poderosas, rigorosamente articuladas e de contornos firmes, não têm equivalente senão na caligrafia do estilo epigráfico de então. A série destes animais começa, igualmente, por volta de 450 d. C. e continua até ao século IX, com algumas lacunas e sem que esta pode- rosa grandeza, alcançada justamente pelos mais antigos monumentos de Nanquim, tenha sido mantida.
Depois da dinastia Han principiou uma época de fermentação que não termina simplesmente em 589 quando da reunificação da China. A par de idéias novas e de novas representações, as do budismo tiveram nesta época um papel importante, apesar de não ser primordial. Uma verificação antiga, enriquecida por descobertas recentes, põe aos historiadores de arte um problema importante e que necessita de pesquisas mais avançadas para ficar esclarecido; trata-se das relações entre a China e o Irão dos Sassânidas, cerca de 500 d. C.
As cerâmicas desta época, há alguns anos descobertas na China do Norte, permitem, por um lado, atribuir-lhe outras peças provenientes de escavações clandestinas e que não haviam sido datadas com precisão, e, por outro, levaram um investigador tão prudente como Th. Dexel a estabelecer que, por volta de 500, uma verdadeira revolução se processara na cerâmica chinesa. Todas as obras posteriores, pondo-se de parte as. formas incontestavelmente retrógradas, quase não manifestam parentesco com as obras antigas.
Outros exemplos vêm auxiliar esta tese e, como sempre, os mais significativos são os ornatos; em primeiro lugar, as plantas, sob formas que nos são familiares, grinaldas, palmetas, meias-palmetas, etc., sistemas ornamentais de há muito correntes na Ásia Anterior e no mundo antigo mediterrânico; em segUndo lugar, os alinhamentos de pérolas, simples ou múltiplos, que servem de orla, mas que também se apresentam como medalhões redondos, e em fiadas de corações e outras formas semelhantes, que são importantes temas da arte sassânida - mesmo que se não encontrem exclusivamente no Irão e retomem motivos mais antigos, como os das esculturas de Palmira.

A China e o Irão
Seria desprezar o essencial não relacionar esta ruptura do estilo com uma influência do budismo e o contacto com a Índia. A arte hindu dos séculos V e VI d. C. está muito pouco explorada, talvez menos ainda do que a arte sassânida, que tanto desejaríamos conhecer melhor e com mais certeza.
Os historiadores indicam-nos que o imperador Wei da China do Norte, T'ai Wu-t'i, depois da primeira grande perseguição aos budistas, que decorreu em 446 e se prolongou por seis anos em todo o Império, empreendeu uma expedição de grande envergadura em direcção ao Oeste, tendo alargado as fronteiras do seu império até ao Irão, cerca de 450. Estabeleceu assim um contacto directo com os Sassânidas, e os tesouros de moedas sassânidas recentemente descobertos na China do Norte trazem-nos o testemunho concreto das trocas comerciais entre esta e o Irão, que pouco conhecia do budismo e não desejava conhecê-lo melhor.
As fronteiras entre a China do Norte e a China Central nunca foram tão efectivas que impedissem a comunicação nos dois sentidos.
Bodhidharma, filho do príncipe de Ceilão, ficou célebre por ter ido, cerca do ano 500, a Nanquim e daqui ter alcançado sem dificuldade a China do Norte, onde viveu como eremita no Song-Chan. É venerado como fundador, na China, da Escola da Meditação, a Escola do Tch'an, que se tornou ainda mais famosa sob a forma japonesa da mesma palavra, o Zen. Não longe do local em que converteu o seu principal discípulo Hui-Ko, em japonês Eika, ergue-se hoje o pagode construído em 530, o mais antigo monumento de arquitetura conservado em território chinês.
A questão que nos pusemos, a propósito da arte sassânida e da acção que pôde exercer na arte chinesa, está ligado o importante problema da influência da Antigüidade Ocidental sobre o Extremo Oriente. Os Sassânidas seguiram-se aos Partas, os mais encarniçados adversários dos Romanos e cujos reis se designam a si próprios nas suas moedas como “filo-helenos", “amigos dos gregos”; mas os Sassânidas foram ainda mais longe do que os Partas, pelo menos na adopção da ornamentação e das formas de arte greco-romana, da qual guardaram, melhor do que o Ocidente, toda a pureza, quando já o império e arte romanos caiam em ruínas.
Quando se descobriram em Gandara, no vale de Cabul e nos arredores os primeiros sinais de formas antigas, julgou-se dever ao jovem conquistador Alexandre Magno a honra de uma acção civilizadora; mas de há muito se reconhecera que a arte de Gandara lhe é posterior e, de qualquer modo, relacionada com a arte imperial de Roma. Assim, que papel se haverá de atribuir, nesta sequência de tradições, aos Sassânidas e aos seus aparentados das planícies vizinhas do Norte? Este é, hoje ainda, um grande enigma da história universal da arte*.
*[ibidem comentários anteriores. N.t.]
Um dos monumentos mais característicos do estilo do século VI, e que mostra a larga extensão das relações nesta época, é certamente o grupo de baixos-relevos funerários que recentemente foi objecto de renovado interesse e de frutuosas discussões. Trata-se de cinco ou sete lajes de pedra de um túmulo conhecido de há muito tempo pela população local e situado nas redondezas de Tch'ang- Té, no território da antiga Ngan-Yang, a capital dos Chang - ou, se se prefere, de Ye, capital da dinastia turco-mongólica dos Ts'i do Norte (550-575).
Estes baixos-relevos ornavam, segundo toda a verossimilhança, o túmulo de um comerciante de classe elevada ou de um príncipe de origem iraniana vindo de uma região da vertente ocidental do Pamir, chamada Fergana. Não tem nada de surpreendente que um dos numerosos súbditos destas regiões, que cem anos antes pertenciam à federação do Império dos Wei, tenha vivido na capital dos seus sucessores e que, quando faleceu, fosse inumado faustosamente. O seu túmulo foi, sem dúvida, edificado conforme os costumes da sua pátria.
As interessantes questões que se põem a respeito deste culto, dos usos e dos objectos representados foram, desde há pouco, notavelmente esclarecidas por Gustina Scaglia. A procissão que se dirige a uma cerimônia de sacrifício é provavelmente conduzida pelo próprio defunto. Os servidores seguem-no, com estandartes e cavalos, e o conjunto dá uma imagem muito livre e muito concreta dos usos estrangeiros e dos tipos de construção então empregados na China. Não há dúvida possível: o artista que esculpiu este baixo-relevo era um chinês, e era corrente confiarem-se a chineses trabalhos idênticos.
O incentivo que das trocas com o Irão resultou para a arte chinesa manifesta o seu efeito cerca de 600, quando se integrou no seu sistema decorativo. As grinaldas, os orna- tos e as coroas de lótus são, desde então, traçados por mãos incontestavelmente chinesas, de tal modo que ninguém poderia reconhecê-los como contributos estrangeiros. Na mesma época, as características do estilo chinês ganham firmeza própria. [...]

Buda e Bodhisattva
Em 630 os imperadores da dinastia T'ang decidiram desenvencilhar-se dos perturbadores que afectavam a paz no Norte, consolidar as fronteiras da China e ampliá-las para além do Pamir. Até 751 a China é o maior e mais poderoso império asiático, que assegurava a todos os povos e a todas as religiões uma protecção livre e segura. A arte atingiu o seu apogeu com o imperador Ming-Huan (713-756), na corte de quem trabalharam algum tempo Li T'ai-po e Wu Tau-tsé, o maior pintor do Extremo Oriente. As formas esculturais sublinham as etapas desta ascensão e permitem-nos considerar esta evolução como uma progressão em linha recta de um estilo pré-clássico até um elevado classicismo.
No mosteiro de Chugu-ji, perto de Nara, uma estátua de madeira, esculpida decerto por volta de 660, com formas doces e lisas que poderiam fazê-la crer um modelo destinado à fundição de bronze, representa provavelmente o bodhisattva Maitreya, a figura do futuro Buda. Nenhum sinal permite uma caracterização mais exacta da sua aparência carnal. É simplesmente uma figura humana, expressando uma terna e quase irreal disposição benevolente. Às puras curvas do corpo, de uma inexprimível delicadeza, correspondem as pregas da veste, orientadas mais pela idéia de uma beleza quase ornamental do que por um desejo de realismo.
Um bodhisattva representa o último estado da existência real antes da dissolução, a entrada no estado do nirvana, do qual não se pode dizer nem o que é nem o que não é. É por esta razão que os bodhisattvas acompanham freqüentemente as figuras dos budas, formando trindades ou até grupos mais importantes. Por vezes ostentam ricas jóias ou correntes, enquanto a ausência de enfeites nos budas, regra geral, indica que a sua aparência terrena não representa mais do que um habitáculo de essências ideais de uma ordem muito diferente, impessoais e suprapessoais.
Os bodhisattvas de T'ien-Iong-chan são figuras que acompanham o Buda; e, assim, é difícil compreender imediatamente todos os seus movimentos e os seus gestos se se não tiver em vista o conjunto de que faziam parte. No grés mole das cavernas de T'ien-Iong-chan cavaram-se durante séculos santuários e esculpiram-se nas paredes as figuras das personagens sagradas. Nos nossos dias, muitas foram arrancadas em fragmentos; primeiro as cabeças, depois corpos inteiros, dispersaram-se por colecções de todo o Mundo, quando os coleccionadores começaram a entusiasmar-se por um estilo escultural que se situa na fronteira entre o arcaísmo e o classicismo.
As esculturas da gruta 14, do fim do século VII, não mostram ainda esse pleno sentido corporal, essa fidelidade à realidade que tão facilmente pode dominar o conteúdo simbólico. Tudo nelas deve ainda ser adivinhado, tudo fica ainda como uma promessa de maturidade e de conhecimento, sem que nada se refira ainda ao rigor e à dificuldade deste conhecimento. Depois do ornato dos meados do século VII, espécie de imagem revestida do sagrado, que era apenas amável e bela, um passo foi dado para uma representação mais rude, mas ainda não perfeita da realidade.
Este passo em frente foi efectuado pela escultura na primeira metade do século VIII, o seu século clássico. A cabeça, quase de tamanho natural, de Kuan-yin (ou seja, literalmente, do bodhisattva que escuta os gritos da criatura atormentada) mostra a vida na sua plenitude e, sob formas doces e amáveis, um rosto humano com o qual se poderia dialogar, apesar de os elementos secundários, como, por exemplo, os cabelos, serem de execução inferior. Sem negar a realidade humana pessoal, esta cabeça expressa uma elevação e uma dignidade transcendentes. Esta extraordinária escultura de bronze deve ser hoje considerada perdida, e deve-se ao Dr. K. R. von Roques tê-la fotografado em Xangai há alguns anos, existindo poucos bronzes deste gênero e com semelhante qualidade na China do século VIII.[...]

W. Speiser e E. v. Erdberg-Consten “Extremo Oriente”. Lisboa: verbo, 1969


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