O Século 16

Manifesta-se uma certa renitência em aplicar à arte do Extremo Oriente termos como «arcaico», «clássico» ou «maneirista», que têm um emprego corrente na história da arte européia. Sem dúvida que também no Extremo Oriente existem pontos máximos e médios, mas o que de facto caracteriza a sua arte e a distingue da europeia é precisamente a duração e a continuidade, tornando difícil a utilização das noções de progresso e declínio, que pressupõem altos e baixos nas predisposições artísticas, consoante um ritmo determinado e fatal.
Se se pode falar na Europa de uma arte clássica no século V a. C. e de outra, cerca de 1500 d. C., entre as quais parecem contar-se longos períodos estéreis, reconhecem-se hoje no Extremo Oriente pontos altos, por volta de 1100 e 300 a. C., e 750 e 1500 d.C., mas só com a presunção da ignorância se poderia afirmar que os séculos ainda obscuros representem um declínio ou uma queda. Simplesmente ainda não foram explorados, e quase mensalmente chegam do Extremo Oriente relatórios sobre novas escavações, novas descobertas e novos trabalhos, até mesmo a respeito de assuntos que se julgava há muito estarem conhecidos ou que se tinham classificado com excessiva pressa. Os próprios chineses empregam expressões como os “quatro mestres” da época Yuan, os “quatro mestres” da época Ming, os “oito originais” de Yang Tcheu, etc.
Por “quatro mestres” da época Ming designam o que nós chamaríamos os seus clássicos de aproximadamente 1500. Posteriormente, os chineses do século XVI deram-se conta de que um Chen Tcheu e um T'ang Yin, um Wen Tcheng-ming e um Kieu Ying constituíram pontos de referência para os artistas - e não apenas para os pintores-, de tal maneira que nenhum queria ficar aquém deles. [...]
Na China, também desde meados do século XVI, não apenas as formas se afinaram e se tornaram visivelmente construídas com total consciência como ainda se arriscam harmonias de cor muito mais ousadas, claras e luminosas.
Nas artes decorativas o primeiro plano pertence à porcelana. Desde o século VIII que era objecto de exportações para a Ásia Menor. Hárune al Rashid possuía um gabinete com porcelanas chinesas, o que não poderia causar espanto pois que, se houve lugar fora da China onde se soubesse apreciar as qualidades da porcelana chinesa, esse lugar foi decerto o Próximo Oriente. Desde o século XIV que um continuo fornecimento de cerâmicas chinesas tomava o caminho do Ocidente, chegando algumas peças até à Europa e ganhando considerável preço durante a viagem.
Foi em 1517 que os navios portugueses chegaram pela primeira vez a Cantão, a fim de estabelecerem relações comerciais directas com a China, ou seja, antes de mais, comprar as porcelanas chinesas no local de origem. Em tal facto os Chineses viram uma homenagem prestada à sua arte e assim não sentiram a tentação de adaptar, para exportação, as formas e motivos das decorações ao gosto dos clientes europeus. No entanto, sem que tenha havido influência estrangeira, observamos cerca de 1550 tentativas audaciosas: motivos novos, em forma de faixas, e junções de cores que quatrocentos anos mais tarde são particularmente apreciadas. Talvez tenha sido a pintura moderna que nos tomou sensíveis à audácia das formas - por exemplo, dos peixes - na porcelana da época Kia-tsing, e que nos ensinou a apreciar os efeitos luminosos, absolutamente irreais, do amarelo dos esmaltes. Este amarelo oferece, juntamente com o azul cobalto e o verde, cores durante muito tempo tradicionais da cerâmica chinesa, novos e profundos contrastes.
Além das porcelanas, conservou-se um número relativamente elevado de obras de laca da época Wan-Li (1573- 1619), e um pequeno armário de laca vermelha talhada, datado de 1598, mostra o estilo da época. O tema que decora as diversas almofadas, divididas com muita clareza, é o dos dragões na caça às “pérolas da felicidade”, rodeadas originariamente por chamas, símbolo de longa vida e da revelação búdica do nirvana, e motivo decorativo desde há muito usado na arte chinesa. O desenho dos corpos, de contornos ondulantes em longas linhas irregulares, não podia ser mais vivo. O fundo está inteiramente decorado com águas e nuvens, e as molduras e coiceiras estão ornadas com grinaldas. Embora nenhuma superfície esteja livre, tudo é claro e fácil de apreender num relance; nenhuma grinalda é demasiado espessa ou sobrecarregada; o desenho permite ao gravador, seguindo-o de perto, gravar cada linha ou cada forma com nitidez e precisão. Se se passa a mão na superfície deste armário, não se sente nenhuma aspereza ou saliência irregular.
E a mão, freqüentemente, é mais apta a detectar a autenticidade de uma obra de laca ou, mesmo, fixar-lhe a sua idade. É sobretudo no final do século XVIII que as lacas gravadas apresentam por vezes traços agudos em arestas que desagradam ao tacto. Pelo contrário, a notável concepção e a excelente execução da época Wan-Li satisfazem quer o gosto quer a mão que se sirva destes objectos.
A maior figura desta época é Tong Ki-tch'ang (1555- 1636), cuja vida é o modelo ideal de um pintor letrado chinês. Aos 34 anos, admitido aos mais altos exames de Estado, passou imediatamente para a Academia Han-lin, o que significava que conhecia de cor os clássicos e que além disso era capaz de comentá-los de maneira tão viva que dele se esperava mais do que de um vulgar candidato. Segundo a filosofia chinesa, todos os dias cada pessoa - e principalmente o funcionário - é colocada perante decisões a tomar, que nenhuma lei pode determinar previamente. Eis por que razão os Chineses quanto menos importância dão às leis e aos decretos tanto mais esperam que as pessoas situadas em postos-chave sejam seguras, insensíveis às influências, conscienciosas e respeitadoras do direito. Tong Ki-tch'ang já no seu tempo passava por ser um modelo neste género. Aos 39 anos foi escolhido como preceptor do príncipe herdeiro e seguidamente tomou diversos cargos elevados: juiz, comissário de educação e até comissário provincial das finanças. A idéia moderna da especialização era ainda inteiramente alheia a este ideal de cultura humanista.
Na corte de Pequim havia dois partidos que então se opunham: o dos eunucos, dirigido por Wei Tchong-sien, que o imperador ouvia com demasiada freqüência, e o dos ministros e altos funcionários. Entre estas intrigas, Tong Ki-tch'ang manteve toda a sua lealdade e, quando pretenderam afastá-lo oferecendo-lhe um lugar mais importante, demitiu-se de todas as suas funções. Durante mais de vinte anos, viveu retirado não longe de Hang-Cheu, pintando, escrevendo ensaios e tornando-se o conselheiro de um importante circulo de amigos que se interessavam pelas artes e pelas letras. Tornou-se igualmente grande conhecedor de textos e quadros antigos: uma peça ostentando a sua assinatura era praticamente indiscutível. Em 1620, o seu antigo aluno sobe ao trono, mas falece depois de um ano no governo.
O sucessor conferiu a Tong Ki-tch'ang as mais honrosas funções. Não tendo, porém, conseguido impor-se contra o poderoso partido dos eunucos, Tong retirou-se novamente. Somente em 1627 foram afastados os eunucos, e Tong viu então recompensada a sua isenção e firmeza. Confiou-se de novo a este homem com setenta e sete anos a educação do príncipe herdeiro, função esta que desempenhou até aos oitenta anos.
Muitas obras lhe são atribuídas, mas ninguém sabe hoje com exactidão o que ele próprio pintou. Dadas as suas altas funções, numerosos amigos quiseram possuir uma pintura ou um autógrafo deste homem célebre, que, se dificilmente podia recusar-se, não tinha desejo algum de executar estas numerosas encomendas como se fosse um jovem encarregado.
E, assim, ensinou os seus dois alunos mais dotados a pintar no seu estilo, assinando ele as imagens e acrescentando (consoante o nível social do destinatário, a crer-se em malévolos críticos) uma inscrição mais ou menos longa. Vemo-nos perante concepções sobre a propriedade artística e a originalidade da personalidade do artista completamente diferente das européias. Aliás, temos a certeza de o nível da sua pintura corresponder à sua incontestável dignidade moral, porque na pintura chinesa, livre, independente de qualquer encomenda, em cada imagem o que conta é a expressão do ideal moral e não apenas a assinatura pessoal do autor. [...]
Seria erro grave considerar a pintura chinesa, por volta de 1600, como simplesmente moralista, ou até didáctica e sem humor, enquanto a japonesa teria uma tendência estética e poética. Um leque com fundo de ouro da época Wan-Li, que se encontrava outrora na colecção do imperador K'ang-hsi, tem a assinatura de Sun K'o-hung, o que origina algumas dúvidas. É possível que se trate de pintor um pouco mais novo, Lan Ying, que conhecemos graças a pinturas deste género.
Os motivos representados no leque de Wu-t’ong pertencem à imagética das flores e das aves. Vê-se nos ramos de uma paulóvnia um pardal de máscara. Isso já é um jogo de palavras, porque o pássaro em chinês chama-se Wu-t'ong, como a árvore. E ambos possuem qualidades aproximadas: da árvore Wu-t'ong, diz-se que “conhece o Outono” e que no primeiro dia desta estação deixa cair as primeiras folhas; o pardal é uma ave migradora que no Verão vai para o Norte e com os primeiros frescores do Outono regressa à China Central. Esta imagem representa, portanto, um desejo de frescura, expresso ao possuidor do leque, em perfeita conformidade com o uso prático do objecto, e a assinatura indica que o leque foi pintado num dia de Verão. [...]

W. Speiser e E. v. Erdberg-Consten “Extremo Oriente”. Lisboa: verbo, 1969


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