Mirações do Celeste


O que podemos designar como uma "filosofia"chinesa nasceu, de modo bem diferente, do seu congênere grego. Não nos ateremos aqui se tais formas de pensamento nascidas na China podem - ou não - ser denominadas "filosofia"; tal discussão, essencialmente ocidental, xenófoba e solíptica, só faz perder a tradição clássica deste lado do mundo. Com a exceção de Voltaire, Schopenhauer e mesmo Nietzsche, o restante dos autores se perdeu em definições efêmeras sobre o tema, menosprezando de modo arrogante outras formas de pensar alheias a sua genealogia.

Disso resulta que uma estrutura de interpretação como a chinesa se torna incompreensível para nós; milenar, durável, rico, múltiplo e cheio de novidades, o pensar chinês representa um desafio epistemológico, constantemente brecado por estas discussões efêmeras. Posto isso, nos proporemos a analisar a tradição chinesa por ela mesma, independente das classificações que se lhe queira atribuir. Pela sua própria existência, ela já merece respeito, e constitui o alicerce fundamental desta civilização.

As raízes

O nascimento do pensar chinês está ligado a um passado temporalmente insondável. Ainda não temos condições de afirmar quando ou como a estrutura da filosofia chinesa começou a se consolidar, pois nossos conhecimentos históricos sobre isso só nos dão indícios. Podemos, no entanto, estimar algumas aproximações, e suas fases.

Em torno do século -12, no início do período Zhou, uma estrutura interpretativa da natureza delineou-se no Yijing (o Tratado das Mutações), que fazia compreender o funcionamento da natureza por meio de duas coordenadas básicas fundamentais, Yang e Yin. Devemos ter um grande cuidado ao interpretar estas duas noções, pois elas não são classificações orgânicas e absolutas de eventos ou substancias - elas são, como dito, coordenadas para entender o que uma coisa está, em essência, ou em que posição ela se situa num sistema categórico. Ou seja, uma coisa está em oposição à outra numa determinada situação - e uma só existe porque a outra lhe faz uma oposição complementar, necessária para a manifestação de ambas.

Assim, a luz só existe em função da escuridão; o macho em função da fêmea, a mesa em função de apoiar papéis, a água em função do fogo, o verão em função do inverno, etc...Mas, cada coordenada Yang traz, em si, a semente de Yin, e vice-versa, como representado no sistema Taiji (o supremo sistema), aqui identificado:


No Yijing, estas coordenadas são representadas por linhas, e supunha-se que a identificação de um arranjo ideal de linhas (o hexagrama) podia mostrar tendências da natureza ou das energias, do que resultou o seu caráter oracular extremamente marcante.

As seqüências binárias do Yijing foram depois estendidas ao entendimento das estações, da formação do calendário, da constituição de uma numerologia, da determinação dos espaços (visuais, materiais e estéticos, numa junção extensa e complexa), aos estudos da natureza e da ritualística (um estágio primitivo da sociologia). O conjunto de aplicabilidades do Yijing penetrou profundamente na ciência antiga chinesa. É possível que o texto tenha sido redigido em função de observações práticas da natureza, mas o modo como ele se encontra estruturado manifesta uma interpretação matemática (e de algum modo mítica) extremamente bem articulada e raciocinada, capaz de impressionar vivamente autores modernos como Leibiniz.

A dinâmica (Li) princípio - (Qi) energia

A antiguidade chinesa conhece, pois, uma forma de dualismo, mas que poderíamos melhor classificar como oposição complementar. Primeiro, porque uma depende da outra para existir, e cada uma das coordenadas em análise depende de outra (e não a exclui). Segundo, porque como cada uma dessas coordenadas apresenta-se em um estágio de "existência" (com duração limitada), um ser ou objeto "está", e não "é".

Assim, o pensamento chinês desconhece o problema do "ser" (como verbo ou princípio), e preocupa-se no modo como uma coisa se "concretiza" num determinado tipo de realidade apreensível. Esta manifestação se dá a conhecer por uma materialização; o que lhe dá sentido (ou forma, alma, estrutura) chama-se Li (princípio); sua forma é composta por uma "energia universal", ou vapor, chamado Qi. O conceito de Qi antecipa em séculos a idéia de que a energia se condensa e se transforma em matéria. Como sempre, é necessário que haja oposição para haver existência.

Alguns autores procuraram ver neste Li a concepção de alma ou espírito, mas isso não é correto; Li pode "representar' a idéia de alma, se a contrapusermos ao corpo. No entanto, Li pode ser também o oposto do Nada (ou "não está"), se ele representa o motor da existência de algo. Como foi dito, o sistema yin-yang representa, neste caso, uma oposição necessária, mas não absolutamente total das coisas. Logo, este sistema compreende uma complexa rede de categorias que se distribuem, indefinidamente, na natureza.

Li, como um principio perene que determina o conjunto de características de uma categoria se contrapõe, igualmente, a concepção de mutação (Yi), responsável pelo modo como algo se manifesta no real. Ou seja, há um Li que determina que todos os seres humanos nascem com dois braços, pernas, olhos, etc. Se isso é perene e uniforme, então, o que se opõe a isso é a mutação; daí porque as pessoas nascem todas diferentes, e tal regra também não pode mudar. Há sempre quatro estações do ano, mas cada uma é sempre ligeiramente diferente da outra. Esta dinâmica nunca muda, e serve para explicar a multiplicidade das existências.

O surgimento da Ética

Em torno do século -6, este sistema não foi mais suficiente para dar conta dos problemas que assolavam a sociedade da época. Fome, guerras, corrupção dos costumes, falência das crenças morais, todas estas circunstancias - essencialmente recorrentes na época - chegaram a um tal nível de exacerbação que prenunciavam um cataclisma.

Não houve, necessariamente, uma ruptura com o pensamento antigo. Ao contrário; entendia-se, em linhas gerais, que a crise era motivada por uma desconexão do ser humano com este entendimento da natureza. Como inventora de algo que lhe é única e especial - a cultura - a humanidade apegara-se aos aspectos mutáveis da mesma e esquecera como funcionavam seus princípios ordenadores, causando uma tremenda perturbação na harmonia entre o ser humano e a natureza (ou, nas palavras chinesas, entre o "Céu e a Terra"). Assim, o pensar chinês não nasce de rompimentos, nem se debate com os problemas míticos; ele planeja uma forma de continuidade, mas que se transponha às necessidades pragmáticas do cotidiano.

A preocupação dos autores e doutrinas que surgem nesta época é, pois, encontrar um Dao (via, método), que equacionasse e desse solução a estes problemas. Estas teorias (e conseqüentes metodologias) abordavam, pelos mais diversos ângulos, a questão do Dao - seu cerne estaria na política, na educação, na lei, no próprio ser humano? As diversas interpretações possíveis originaram um número grande de Jias (escolas), dando origem a um período conhecido como das "Cem escolas de pensamento".

Confúcio e a Escola dos Letrados (Rujia)

O primeiro dos pensadores a detectar esta crise foi Confúcio, defensor de uma proposta renovadora para a sociedade. Embora defendesse a cultura antiga e sua continuidade, o mestre entendia que era necessário investigar a razão dos problemas para solucioná-los - e a reposta encontrada por ele foi a deficiência na estrutura educativa, incapaz de conscientizar os seres humanos sobre o seu papel no mundo.

Confúcio era, portanto, um árduo defensor da vida em sociedade, da consciência crítica, das artes e da educação. Sua proposta, distante das explicações religiosas e vagamente metafísica (para isso, o Yijing lhe bastava), atinha-se as necessidades do povo e da organização governamental. Reformar, estudar e retificar-se eram as palavras de ordem de uma ética que pregava o respeito mútuo, as obrigações sociais (Li, ou "ritual") e a manutenção da Harmonia.

Apesar de seu discurso - ou por causa dele, justamente -, Confúcio foi odiado por vários políticos da época. Nobres, reis, ministros e funcionários formavam um ativo time de antagonistas do velho professor, tentando inclusive matá-lo numa oportunidade. A doutrina do mestre parecia defensora de uma velha ordem, de contornos até mesmos conservadores, mas exigia honestidade, probidade e sabedoria. Isto estava muito longe dos interesses reais das classes dominantes.

Como disse Chan Wing-tsit, em seu breve (porém brilhante) artigo "História da Filosofia Chinesa", de 1939, a trajetória do pensamento chinês se dá como numa longa sinfonia, em que o confucionismo constitui o fundo estruturante da sociedade chinesa, e que volta de tempos em tempos para o centro das discussões filosóficas, a fim de ser reformulado. Esta observação é bastante profunda e pertinente. O pensamento de Confúcio, apesar da oposição inicial dos governantes, foi assimilado pela sociedade, e tornou-se o seu modo de entender-se e expressar-se. Aquilo que o povo não sabia dizer por si de suas histórias e tradições, o confucionismo parece explicar. Este sucesso conquistou, gradualmente, todos os níveis da civilização chinesa.

Os seguidores de Confúcio formaram um núcleo de estudos denominado Rujia (escola dos letrados), cujo objetivo era aplicar o pensamento confucionista na reforma social e, se possível, desenvolve-lo. Neste primeiro momento, os seguidores de maior destaque foram Mengzi (Mencio) e Xunzi. Ambos consolidaram o papel do confucionismo filosófico, embora tenham criado linhas diferentes de pensamento. Mengzi acreditava numa bondade inata do ser humano, no papel do povo na administração do governo (o mandato celeste) e na ênfase dos valores morais. Quanto a Xunzi, defendia um pessimismo natural em relação à sociedade e as pessoas, mas acreditava indefectivelmente na questão da educação.

O Confucionismo retornaria a voga no período Han (sécs. -3 +3), quando tornaria-se doutrina oficial da dinastia. Mais adiante, analisaremos este desenvolvimento, entendendo os ciclos pelas quais a doutrina seria revigorada.

O Daoísmo

Um grupo de pensadores dessa mesma época denominou-se "seguidores da via (dao)", defendendo que a solução para a crise da sociedade envolvia um abandono dos vícios humanos e o desapego a materialidade. Eremitas, misteriosos, distantes, os daoístas afirmavam que "A Via" era uma, a própria natureza. As instituições políticas deviam ser abandonadas, um certo hedonismo e a liberdade eram a verdadeira lei humana.

Laozi, Zhuangzi e Liezi foram seus principais representantes, embora pouco possa se afirmar sobre sua existência. Se Laozi foi um autor hermético, Zhuang era um vulgarizador da doutrina, embora seus pensamentos sejam amplamente apreciados nos dias de hoje. Bem cedo, o daoísmo aproximou-se da religião popular e fundiu-se a ela, perdendo muito do seu lado filosófico. Por outro lado, ele se transformou no opositor complementar do confucionismo, elaborando e estruturando o pensamento religioso dessa civilização.

Outras Escolas

Para além de confucionistas e daoístas, outras escolas tiveram seu tempo e participação no período das "Cem escolas". Coube aos seguidores de Mozi, autor quase contemporâneo de Confúcio, elaborarem um crítica pesada contra o pensamento dos letrados. Baseados numa moral popularista e comunitária, os moístas abominavam a nobreza, a cultura antiga e as diferenças sociais. Pensavam poder mudar o mundo por meio de um socialismo primitivo, cujos propósitos eram claros, porém radicais demais. Se angariaram simpatia do povo por um tempo, logo caíram no esquecimento em função de sua intransigência intelectual e por sua crítica perseguidora aos confucionistas.

O mesmo se deu em relação a escola Fajia (escola das leis). Surgida entre pensadores decepcionados com o andamento da estrutura política tradicional, os defensores da teoria das leis propunham um rompimento com o passado, a criação de um Estado forte, calcado em um direito duro e exigente, e um sistema administrativo rígido e controlador, capaz de inibir a corrupção e o desregramento. Shang Yang e Hanfeizi foram pensadores bem sucedidos na aplicação de suas idéias - embora tenham tido um fim trágico. Hanfei, inclusive, foi um dos principais auxiliares de Qinshi Huangdi na unificação do império Qin, e o resultado foi o que se viu: a radicalização serviu algum tempo para estabilizar, mas nunca conduzir. No fim, repetiu-se o ciclo yin-yang; quando um movimento chega ao extremo, leva ao seu próprio declínio.

Por fim, os nominalistas (Mingjia), representados por Gong sunlong e Huishi, transformaram-se nos representantes de um "sofismo" chinês. Sem uma proposta definida, sua preocupação era o exercício da linguagem como modo de compreensão filosófica. Para eles, as causas sociais seriam sempre uma disputa de interesses, cuja competência do ganhador definia seu sucesso.

A Escola Wuxing

Dentre essas escolas, uma delas conquistou um espaço específico dentro do pensamento chinês, a escola dos cinco estados - wuxing (ou ainda, agentes ou elementos). Esta escola inovava o pensamento científico antigo da teoria yin-yang, complementando-o através da formulação de uma teoria sobre os estados da matéria (qi). Segundo eles, Qi se concretizava em cinco estados físicos diferentes: fogo, água, madeira, metal e terra. Estes estados se engendravam em um ciclo de criação e destruição, dando dinâmica ao processo de transformação da realidade.

Por esta teoria, as criaturas e coisas têm, portanto, uma certa quantidade de Qi materializado num certo estado; do mesmo modo, a regra da mutação determina que cada exemplar de uma mesma categoria tenha suas especificidades (tamanho, intensidade, adição de outras formas de qi, etc.) que lhe garantem sua singularidade. A teoria Wuxing não só organizou as categorias classificatórias da ciência chinesa como também, deu uma base para o surgimento e a consolidação da medicina. Esta junção manter-se-ia até os dias atuais na estrutura do pensamento tradicional.

O Período das grandes sínteses

A época Han enseja a formação das grandes sínteses, realizadas por autores que se colocavam acima das discordâncias escolares. Em linhas gerais, porém, entendeu-se a coexistência do confucionismo (no espaço político, educativo e social) com o daoísmo (no espaço religioso e mitológico). Empreendeu-se, inclusive, uma dedicada recuperação das obras confucionistas, perseguidas durante o período Qin.

Os grandes pensadores deste momento foram Lujia, autor de um tratado político que defendia um modo de governar liberal, embasado num confucionismo de matizes daoístas; Dong Zhongshu, organizador de uma teoria política que conciliava o mesmo confucionismo com a teoria wujing, justificando a autocracia imperial e comprovando a individualidade humana; Liuan, autor daoísta preocupado com questões de estratégia e administração pública; e por fim Wang Chong, um cético confucionista cujas observações científicas instigaram o espírito crítico dos pensadores chineses.

Além destes, a ciência chinesa encontrou avanços notáveis com Zhang Heng, eminente matemático, geólogo e astrônomo. Tais conquistas não mantiveram a eternidade do império, mas transformaram-se em condições definitivas para o avanço da filosofia chinesa.

Momentos de transformação

Durante o período de desunião decorrente do fim da Dinastia Han, a chegada do Budismo foi a grande novidade para o pensamento chinês. A vinda de pregadores budistas, provenientes da Índia, foi resultado das características proselitistas desta doutrina, que acreditava numa pregação universalista. Inicialmente, os budistas foram associados a um mito daoísta, e acreditava-se que eles se constituíam numa forma estrangeira dessa escola. Em breve, porém, constatou-se que estes missionários defendiam uma disciplina original, capaz de apresentar desafios razoáveis as correntes tradicionais do daoísmo e confucionismo.

A proposta budista trazia inovações para a sociedade chinesa. Esta escola propunha que a libertação individual se encontrava num esforço meritório, fosse por meio da meditação ou da beneficência. Para as parcelas menos favorecidas da sociedade, este discurso era extremamente atraente - ainda mais quando alguns dos pregadores prometiam o paraíso celeste para aqueles que praticassem boas ações.

Embora os daoístas possuíssem formas de meditação semelhantes as budistas, uma concorrência estabeleceu-se entre eles. Até então, os mestres do Dao não se preocupavam em criar escolas ou templos, buscando muitas vezes a reclusão no meio das florestas. Os budistas, porém, ofereciam indiscriminadamente seus ensinamentos, e como não receavam afirmar ter poderes mágicos - atributo, até então, do daoísmo religioso - logo arrebanharam um grande número de adeptos, e forçaram os daoístas a rever sua misantropia recalcitrante.

Quanto aos confucionistas, pouco afeitos às questões ditas "religiosas", sua preocupação com o budismo surgiu quando este pareceu afetar a ordem social. A doutrina estrangeira, defensora de uma concepção de reencarnação, propunha que a crença em ancestrais não era válida; que as relações espirituais se sobrepunham as familiares e sociais; que atingir a plenitude da alma, por meio da meditação, envolvia muitas vezes o abandono do trabalho mundano; por fim, que estas teorias deviam estar à frente dos problemas "materiais". Além disso, o discurso budista parecia individualista em excesso; os confucionistas acreditavam na reforma íntima, mas de modo que ela servisse também a comunidade.

Grande parte destas críticas foram elaboradas por Hanyu, o único grande confucionista do período Tang. No mais, a escola dos letrados encontrava-se acomodada, preocupada mais com os sistemas de exames imperiais do que propriamente com problemas filosóficos. O Confucionismo teria que esperar a época Song para revigorar-se.

Quanto aos daoístas, sua resposta foi pautada basicamente na obra de Ge Hong, autor que catalogou e organizou as práticas do daoísmo religioso e da alquimia. Ge propiciou o surgimento daquilo que, na China, sistematiza a diferença entre o que é uma discussão filosófica (Jia, escola) e aquilo que poderíamos dizer "religioso" (Jiao, ensinamento). Assim, quando os daoístas se referiam aos ensinamentos clássicos, classificavam-no como "daojia"; suas práticas, crenças e liturgias eram afirmadas, porém, como "daojiao". A terminologia encontrou ressonância na intelectualidade, e no final da época Song, os escritos já utilizavam "sanjiao" (três ensinamentos) para designar a coexistência entre confucionismo, daoísmo e budismo.

A linha que determina estas separações é tênue, mas interessante; os confucionistas nunca construíram um corpo de crenças que classificassem como "jiao", no sentido religioso, exceto aquelas já presentes no Liji; quanto aos budistas, sempre foram "jiao", talvez por seu discurso ser, essencialmente, metafísico.

A questão é que o budismo, para estabelecer-se na China, precisou também sinizar-se. Frente aos desafios impostos por uma cultura milenarmente organizada, os budistas buscaram adaptar seu vocabulário e conceitual a língua chinesa. Trouxeram uma nova iconografia, inspirada na Rota da Seda, e traduziram textos do sânscrito e do páli que hoje só se encontram no budismo chinês. As grutas de Dunhuang, patrimônio mundial localizado no norte do país, constituíram uma vasta biblioteca de textos originais chineses e indianos que foi redescoberta, somente, no período do final do séc. 19.

Note-se que o budismo, curiosamente, não promoveu grandes autores filosóficos (não incluímos aqui os patriarcas, claro), e nem desenvolveu grandes aprofundamentos teóricos; a grande novidade dos chineses foi a elaboração do método Chan (no japonês, Zen), que deu um novo caráter as formas de busca iluminativas para o budismo. O centro do Chan é o sistema de meditação, considerado "rígido e duro" para os antigos padrões budistas - no entanto, o mesmo se mostrava capaz de promover avanços físicos e espirituais rápidos e destacados, promovendo assim mudanças nos aspectos disciplinares do budismo.

Momentos de Introspecção

Durante a época Song, um novo movimento começa dentro do mundo do pensamento chinês. O confucionismo, estagnado pela assimilação ao sistema político imperial e incapaz, até então, de responder aos desafios metafísicos budistas, encontrava-se num momento de introspecção e renovação.

O grande nome desta profunda reforma no confucionismo foi Zhuxi (1130 - 1200). Zhuxi não foi, obviamente, o único autor de seu período; precedido por pensadores como os irmãos Zheng, que já vinham apontando a necessidade de uma avaliação dos conceitos confucionistas calcada num sistema racionalista, Zhuxi faz, porém, uma modificação completa na estrutura da Rujia. Ele praticamente desmontou o sistema confucionista, analisou suas partes e apresentou-o, novamente, por meio de uma estrutura que revelava o seu funcionamento. Fez mais, ainda; buscou na cosmologia a raiz e os fundamentos pelos quais o mundo se estrutura, dando uma resposta que poderíamos classificar como "científica" à metafísica budista.

Zhuxi defendeu a perenidade do universo; a matéria (Qi) sempre esteve, está e estará em mutação, não tendo origem nem fim. Este é o princípio (Li) que rege o cosmos. A questão da origem, bem como do sentido da vida, pregada pelos budistas, é uma perda de tempo, um objeto inalcançável criado pela imaginação; "estamos", simplesmente. O problema da vida comum foi resolvido pela ética, já analisada por Confúcio e seus seguidores - devemos buscar um meio de conviver baseado num pragmatismo atual, interessado em nossa máxima preservação. Por fim, tal conhecimento só se atingiria gradualmente, pelo estudo - a propensão dos seres é uma potência, mas que apenas se realiza pelo esforço e desenvolvimento individual.

Visto assim, Zhuxi reafirmou muitos dos conceitos defendidos por Confúcio, mas o fez dentro de uma nova roupagem. Seu brilhantismo estava em cumprir, justamente, um desígnio do velho mestre: "sábio é aquele que, por meio do antigo, encontra o novo".

Zhuxi é considerado, ainda hoje, um dos grandes nomes do Confucionismo após Mencio. Seus comentários aos clássicos e sua volumosa obra foram incluídos no cânone dos letrados. Seu trabalho nos fornece muito sobre o sentido interpretativo que temos do confucionismo atualmente.

Desdobramentos Modernos

Mas o pensamento chinês não parou de evoluir. Numa apresentação sucinta como esta, é bastante difícil abranger a extensão de autores e de propostas filosóficas. Devemos nos ater, pois, as linhas principais.

No período Ming, uma nova linha teórica desdobrar-se-ia no panorama filosófico, a escola da Mente (xinxue ou xinjia). Seu questionamento é moderníssimo, e antecipa em séculos a construção dos problemas principais da Filosofia da Mente no Ocidente. Os pensadores desta linha renovadora buscavam entender o que era, e como funcionava, aquilo que podia ser classificado como Mente (xin). Tal consideração existia em função das conquistas empreendidas por Zhuxi no campo do confucionismo; 1o, não aceitar, deliberadamente, o argumento da "alma" como sede da razão e do raciocínio; 2o, se tal existe, então ela deve ser investigada como um fenômeno físico, único sobre o qual se pode estipular algo; 3o, a sede da razão é, então, aquilo que podemos investigar de forma consciente, que é nossa própria Mente.

Já no período Song um autor, chamado Lu Xiangshang, havia atentado para este problema; no entanto, foi Wang Yangming, da época Ming, quem decidiu aprofundar essa investigação. Para ele, razão e mente eram o mesmo, e se processavam como um fenômeno físico. Por causa disso, o conhecimento sobre as coisas podia ser "desperto", imediato, se a razão compreendesse ou percebesse, de átimo, como algo se processa. A investigação do mundo externo poderia ser, pois, uma investigação do interno - e consequentemente, todo o universo está contido no ser, tal como ser está contido no universo.

Tais assertivas nos levam a perceber, de modo inequívoco, uma influencia budista no discurso de Wang, mesmo que este disesse ser um letrado. No entanto, já percebemos que a estrutura do pensar chinês tende a síntese, e não à exclusão. Wang, pois, foi o contraponto de Zhuxi.

As implicações cientificas e éticas da obra de Wang são interessantes; pode realmente uma pessoa conceber, por exemplo, um outro planeta sem ter estado lá? Segundo Wang, isso é tão possível quanto imaginarmos uma experiência cientifica que, no final, acaba dando certo. Ao concebermos algo, apenas o fazemos por que tal já está em nós.

O surgimento do pensar contemporâneo

A última fase da China imperial, durante a época Qing, constitui um momento de perda de iniciativa intelectual entre os chineses. Embora alguns autores gostem de afirmar as grandes realizações do período, como a constituição do Siku Quanshu (a grande biblioteca de livros, ver o ensaio sobre Literatura deste volume), no geral o período Qing - exceto no final - é pobre de autores interessantes.

Isto se deve, em muito, ao fato desta ser uma dinastia estrangeira, preocupada mais em reprimir vozes nativas do que estimulá-las. Algo semelhante havia ocorrido na época da dominação mongol - naquele momento, o único grande pensador foi Yeluchucai, que convenceu os dominadores a não transformarem o país numa grande estepe, conseguindo preservar a cultura chinesa e a estrutura administrativa imperial.

Os Qing se estabeleceram, pois, como reacionários e conservadores. Não incentivaram o novo, senão num sentido estreito. A chegada dos europeus foi ainda mais impactante; os chineses, com uma tradição de pesquisa e conhecimento científico, viram-se cada vez mais superados pelos estrangeiros, ao ponto de praticamente limitar suas visões filosóficas ao campo moral, numa vã esperança de que isso salvaguardasse sua cultura. Caquético, o pensamento chinês desta época sofria de superficialidade e de dinamismo; recusava os desafios intelectuais, ao invés de encará-los e assimilá-los. O ressurgimento de um ímpeto intelectual só viria, novamente, com a crise. Foi o que ocorreu, finalmente, no ocaso dos Qing.

Os nomes mais importantes desta época - Kang Youwei, Liang Qichao, Zhang Binglin e Liu Shipei - partem sempre de um conjunto de premissas básicas consagradas no pensamento confucionista, mas endogenamente ligadas ao raciocício clássico chinês; 1o, trazer o campo de discussões para o âmbito pragmático, para que se pudesse capturar o princípio dos problemas; 2o, que contribuições os desafios propostos pelas formas de pensar ocidentais poderiam proporcionar ao pensamento chines?; e, 3o, qual o método mais eficaz para solucionar estes problemas?

As múltiplas propostas existentes envolviam, no geral, uma reformulação dos procedimentos éticos e educacionais da sociedade. O animo e a esperança, concomitantes a necessidade e ao desespero de reformar a China permitiram que, com a ascensão da república (uma concepção política ocidental), Sun Yatsen empreendesse um novo impulso na intelectualidade e para a filosofia chinesa, incorporando muito do trabalho realizado por estes autores. No entanto, os problemas econômicos e políticos do país exigiam mais, e a resposta para isso só viria com o comunismo maoísta.

O Comunismo de Maozedong

Não devemos ser ingênuos com o comunismo chinês, uma criação derivada da teoria marxista com uma brilhante inserção de valores antigos. Mao era um bom conhecedor do marxismo, mas era melhor ainda da realidade de sua sociedade. Adaptando o expediente revolucionário para uma nação agrícola, Mao defendeu ainda um resgate de antigas filosofias, tais como o Legismo e o Moísmo. Mao tinha um interesse em particular pelo regime de Qin, que teria unificado a China a custa de grandes realizações. Para ele, o legismo trazia uma série de considerações sobre a economia chinesa que encontravam eco, desde a antiguidade, até as épocas recentes. A objetividade das políticas legistas também lhe pareceram eficazes, e muito das acusações que pesam sobre a lei e o sistema político chinês de hoje devem-se a esse "revival" totalitário. No curto período chamado das "Cem flores", na década de 50, Mao conclamou os pensadores a criticar e avaliar o regime político chinês. Em breve, as discordâncias e criticas culminaram numa perseguição aos pensadores ditos "revisionistas", e na afirmação de uma visão dogmática. Tempos depois, um dos assessores de Mao, Lin Biao, conspirou contra o governo, foi expurgado e morto em circunstancias estranhas e realizou-se uma grande campanha na China chamada (e publicada) de "Crítica a Lin Biao e Confúcio"! Tais ecos mostram que, nem de longe, a teoria socialista fez desaparecer a cultura antiga.

Ainda é cedo, contudo, para analisar por completo o caráter da influencia marxista na China. Sinizado, o marxismo hoje em dia é empregado em outros sentidos bastante diferentes da teoria original. Como afirmou Denis Bloodworth em seu "Imagens da China", talvez Mao seja esquecido, como pode também tornar-se "Maozi" - tudo dependerá de como sua herança será interpretada.

O Futuro

A redescoberta do pensamento chinês vem se processando em frentes diferentes. Desde a década de 30, tanto na China como em outros países onde residem pensadores chineses, o resgate do pensamento tradicional vem sendo feito num sentido que poderíamos novamente entender como opositor e complementar. Por um lado, temos pensadores como Hu Shih, Chan Wing-tsit ou Feng Youlan que se detiveram, fundamentalmente, no resgate da tradição chinesa e sua divulgação no Ocidente; por outro, temos uma grande leva de autores cujas análises misturam, de modo original, as contribuições ocidentais com uma ou outra escola tradicional chinesa (um excelente estudo sobre esta situação atual é o de Chung-Ying Cheng e Nicholas Bunnin, "Contemporary chinese philosophy"). O Confucionismo, em si, está sendo reavaliado tanto em Taiwan como na China continental, nas suas formas filosóficas e sociológicas.

Os desafios, pois, são outros. Para os chineses, será o de continuar a entender as operações entre princípio e energia, perene e mutável, que se desdobram sobre sua forma de pensar; para os ocidentais, porém, deverá ser o de penetrar neste mundo, que lhe parece ainda tão inacessível ainda que convivam no mesmo planeta...ambos são os opostos complementares, numa dimensão universal do problema; e todas as vias são mirações do celeste.

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