Reter a Centralidade - o sentido de História para a China

Quando se analisa o ideograma shi - história - a interpretação clássica do mesmo nos indica uma mão que segura um pincel, ou estilete; "história", neste sentido, significa então anotar, registrar, escrever o passado.

Em sua forma sintética, no entanto, shi parece englobar na parte superior o ideograma zhong - meio, centralidade. Isso poderia significar que história representa, também, "reter a centralidade"? O que viria a ser isso?

Reter o fio condutor
Significaria que, desde o início, quando os chineses começam a fazer história - e isso teve origem, provavelmente, bem antes de Confúcio - o ato de registrar o passado não significa apenas anotá-lo, mas também, guardar o fio condutor que o permeia, que o estrutura, entre as tensões da permanência e do desaparecimento. A história acontece em ciclos, para os chineses; trata-se, então, de perceber em que momento deste ciclo estamos. Estamos numa fase de ascensão (yang) ou dissolução (yin)?

Esta estrutura macrocósmica se manifesta na reprodução das épocas dinásticas; o que é a alternância de casas imperiais senão o inevitável ciclo de mutação, de concretização ou dissolução? E, no entanto, não é isso justamente a única coisa que permanece - a mudança?

A história é uma literatura

A história é um escrito, na China, que se supõe "baseado em fatos reais". Se há uma metodologia em sua constituição, trata-se da busca obsessiva por documentos, fontes, escritos, memoriais, datas e objetos materiais que comprovem uma tese. Desde cedo, os historiadores chineses são arquivistas e bibliotecários especializados. Confúcio foi o primeiro deles, e Sima Qian (séc. -2 -1) aperfeiçoou estes procedimentos. No entanto, esta mesma literatura se assenta em opiniões. Os autores mais decididos pensavam a história como uma interpretação, uma metáfora da realidade, impossível de ser reconstituída em sua totalidade - e por causa dessas opiniões, como foi o caso de Sima - podiam chegar a ser punidos severamente, quando suas análises iam de encontro ao senso comum ou a um conjunto de interesses escusos.

O sentido de verdade

Esta história é, antes de tudo, um parâmetro atemporal - ela mostra o passado, para que se compreenda o presente e se planeje o futuro. Confúcio disse: "mestre é aquele que, por meio do antigo, revela o novo". Sobre a história, então, recai a importante responsabilidade de construir e fundamentar "verdades" sobre a vida, a política, a virtude e a moral.

Eis a razão pela qual, muitas vezes, o compromisso de um historiador com o poder estabelecido degrada a força da própria história, na China. Se ela nasce para guardar o fio condutor dos acontecimentos, ela é, ao mesmo tempo, manipulável por ser literatura. Disso decorrem incalculáveis polêmicas, divergências seculares de interpretação, debates incessantes sobre o sentido de uma ou outra informação ou acontecimento. A descoberta de um antigo texto perdido pode significar tanto o abalo de concepções já estabelecidas como também, uma possibilidade criativa de referendar uma postura clássica.

Curiosamente, são os autores que constantemente re-interpretam a história que se transformam em seus paradigmas (leiam o texto sobre literatura, para compreender melhor estas questões canônicas). Liu Zhiji, Sima Guang, Zhuxi, entre muitos outros, foram estudiosos que criticaram e reescreveram a história que tinham em mãos. O Shitong, de Liu Zhiji (período Tang), trata-se inclusive de um manual sobre como se deve investigar e escrever história, informando-nos sobre os procedimentos de pesquisa, interpretação, e o fundo moral da mesma. Tratava-se de um avançadíssimo instrumento metodológico na época, praticamente sem par.

Os avanços e recuos da historiografia chinesa se desenrolaram dentro de sua própria estrutura de pensamento até o advento do comunismo, o grande impacto no "modo chinês" de fazer história. Antes do comunismo, a tentação desta história milenar era tão forte que os europeus que decidiram estudar a China se renderam a ela, utilizando a tradição como fonte.

A China como problema

Foi esta mesma história chinesa que colocou em xeque o inicio da historiografia moderna ocidental, nos séculos 18-19, por meio da famosa "querela" da cronologia. Os europeus que haviam decidido criar métodos para a história entendiam que a análise de documentos era o cerne, o método e a comprovação da mesma. Ora, a China dispunha de tudo isso; e no entanto, sua cronologia não remetia os primeiros soberanos chineses a uma época anterior a criação do mundo pelo Deus cristão?

O incomodo desta situação levava ao inevitável conflito entre religião e ciência: aceitar uma significava, automaticamente, negar a outra. A história, com um método baseado na razão, punha em dúvida a crença no criacionismo divino, e tudo por causa de uma civilização distante que não se preocupara com as origens.

O resultado desta polemica marcou o tom que, doravante, os europeus empregariam usualmente com o resto do mundo africano e asiático. Decidiu-se, arbitrariamente, que a história chinesa continha muito de mitologia; que muito do que ela afirmava não poderia ser provado justamente por não se pautar nos métodos ocidentais; e por fim, que quase tudo sobre os tempos clássicos era lendário ou obscuro - com o que, a tradução de um ou outro texto de mitologia ou romance referendou esta concepção de modo aliviante para os historiadores europeus da época. Nesta época, portanto, é que um autor como Hegel podia se vangloriar de ter lido "todo o pensamento chinês", tendo acesso à meia dúzia de obras e concluindo, de forma arrogante, que ali só havia superstição e costume.

A modernidade

Voltemos à época moderna; o início da arqueologia na China, feita por ocidentais, foi complementada de modo natural pelos textos e pelo antiquarismo clássico chinês. A teoria marxista é que dá, de fato, uma virada nas concepções tradicionais. Os comunistas chineses buscaram, de todo modo, transplantar a periodização marxista para sua cronologia histórica - há que se perguntar se os mesmos não se sentiam a vontade, simplesmente, trocando os ciclos tradicionais por estes "novos ciclos" importados.

Novamente, a tentativa de utilizar uma teoria externa ao pensamento chinês só funcionou quando ela se adaptou ao mesmo - a força de uma tradição não se quebra tão facilmente, e se ela se modifica, é muito mais em virtude de pressões internas do que por uma imposição dogmática. No entanto, a história da China oferecia contrapontos interessantes às teorias ocidentais. Um exemplo clássico é a questão do feudalismo na China - se tal sistema existiu na história desta civilização, ao que tudo indica ele ocorreu durante o período Zhou (sécs. -11 -3), pois todas as características econômicas e sociais da época apontam para isso - ou seja, ele teria acontecido muito antes da Europa. Não é, então, um anacronismo temporal e teórico classificá-lo como tal? Do mesmo modo, a idéia de "Idade Média" não significa nada para os chineses, a não ser que estejamos utilizando-a como medida temporal - e neste período, a China Tang era simplesmente a maior civilização do mundo.

Atualmente, as propostas comunistas continuam a ser utilizadas na historiografia chinesa, mas estão plena e gentilmente contaminadas pela historiografia clássica, provavelmente num desejo consciente dos próprios chineses de revalorizar o seu passado. Os projetos do futuro não envolvem mais, felizmente, a aniquilação da antiguidade, como se pregou no tempo de Maozedong. O sentido de história, mais uma vez, é o da continuidade - reter a centralidade, pensar sempre o que permanece e não o que já se foi, pois o antigo é o alicerce do novo. A mudança é inevitável, assim como a existência é extinguível. A história, então, é a preservação de tudo o que pode significar a idéia de ser chinês; e consequentemente, os chineses a trazem dentro de si.

Os ciclos dinásticos

A história tradicional se orienta, como dissemos, por ciclos dinásticos. Os tempos anteriores a eles são de difícil análise, e o que temos de mais recente e preciso sobre isso veio com a arqueologia. A China tem um passado proto-histórico riquíssimo, tão antigo quanto o africano ou europeu. A cultura de Zhoukoudian indica a existência do paleolítico; depois, as culturas de Longshan e Yangshao apresentam as cerâmicas e rudimentos do que seriam as civilizações organizadas posteriores.

Sobre isso, pouco fala a história chinesa clássica; eles são sempre chamados de "tempos antigos", quando os seres humanos viviam em grande dificuldade para lidar com a natureza. As descrições destas épocas remotas se assemelham muito a do cotidiano das comunidades indígenas brasileiras; é provável que os primeiros historiadores chineses agissem como antropólogos, e ao perambular pelo interior do país, encontraram comunidades que preservavam este modo de vida, supondo-o ser primitivo:

No princípio não havia nem ordem moral ou social. Os homens conheciam apenas suas mães, e não seus pais. Quando famintos, saía, a caça; quando saciados, jogavam os restos fora. Devoravam os alimentos com pele e pelos, bebiam sangue, cobriam-se de couro e de juncos. (Baihutong, de Bangu).

Nos tempos primitivos os homens moravam em cavernas, e vivam nas florestas. [...] nos tempos antigos sepultavam os mortos cobrindo-os como uma camada de galhos secos, deixando-os livre sobre a terra, sem túmulo ou jardim.(Dazhuan do Yijing)

Este tempo será iluminado pelos patriarcas fundadores da civilização, Foxi, Nugua e Shen Nong. Os três ensinam aos homens primitivos tudo que precisam para viver: cozinhar, caçar, costurar, medir os espaços, utilizar os trigramas (guas), plantar, etc...são sábios, antes de tudo, e não seres fantásticos ou divinais. Somente na época Han os daoístas os transformariam em deuses. O mesmo se sucede com 5 soberanos posteriores, dos quais fazem parte Huangdi (o imperador amarelo) - todos são seres humanos, mas suas histórias seriam preenchidas por lendas dos mais diversos tipos.

Estas figuras todas se apresentam, para nós, lendárias, e sobre elas não temos nenhuma comprovação ainda. O último dos 5 soberanos teria entronado Yu, o grande, como fundador da dinastia Xia - e aí, as coisas se complicam um pouco.

Yu é uma figura singular - ele seria o Noé chinês, tendo salvo o país do dilúvio, mas de modo absolutamente frustrante para nossas mitologias; sua política de contenção das águas envolveu dez anos de trabalho duro, construindo diques, canais, pontes, etc. Sem arca ou mensagem dos deuses, Yu é uma ponte entre um passado lendário e uma dinastia que parece ter existido de fato.

Até algum tempo atrás, a dinastia Xia era pura lenda. Maurizio Scarpari, no ótimo e recente "China Antiga" nos traz, porém, algumas das evidencias arqueológicas que mudaram o plano da história em relação a este período. O que mais a China nos reservará sobre estes tempos obscuros?

Shang

Os Xia foram substituídos pelos Shang, cujas datas oscilam entre -1600 -1100. Organizados num sistema de cidades-estado, os Shang constituíam, contudo, alguma espécie de unidade política, representado por um sistema monárquico registrado em listas reais, em que se encontram o nome dos reis, linhagens e clãs. O legado desta civilização é inumerável: desde a escrita, que surge em carapaças oraculares, ao domínio inigualável do bronze, passando por avanços inúmeros na agricultura e no domínio dos animais.

Zhou

Das dinastias, os Zhou constituem a mais duradoura em termos temporais: -1100 até aproximadamente -256, e aqui a história tradicional chinesa já dispõe de fontes seguras para se construir.

Os Zhou substituem o sistema administrativo dos Shang por um outro, que fundia atribuições governamentais, econômicas e pessoais. Denominado Fengjian, este modo de governar pode ser dito, em nosso conceitual, muito do próximo da idéia de feudalismo, como apontamos anteriormente. A figura do soberano consiste em articular, dirigir e mediar as relações entre vários territórios distintos, ligados a ele por contratos de vassalagem. As comunas agrícolas respondem a estes nobres, que muitas vezes guerreiam entre si, e empreendem uma política quase autônoma em seus territórios.

A tendência neste caso é a fragmentação do poder, fenômeno que passou a ocorrer em torno do século -8. Estes acontecimentos são denunciados por Confúcio na crônica das Primaveras e Outonos (Chunqiu), e dão margem a uma grande especulação ética e política sobre a realidade da época. Surge, pois, o período das "Cem escolas filosóficas", em que mestres debateriam como solucionar os problemas da sociedade. Sobraram-nos somente os relatos daqueles tidos como mais importantes, ou que alcançaram algum tipo de destaque.

Em torno de -481, os estados maiores haviam consolidado sua posição de preponderância e restaram em número de 7, prontos a entrarem num conflito aberto e declarado ao qual a mediação de Zhou não surtia mais sentido. É o período dos Estados Combatentes, onde a luta pela supremacia e por uma nova unificação chinesa desenrolou-se sem tréguas durante séculos, vindo a terminar apenas em -221 com a vitória total do reino de Qin.

O tempo dos Zhou é marcado pela criação da teoria do Mandato Celeste - uma investidura da natureza (ou "Céu") para que uma casa real administrasse o país. A perda do mandato significa a perda da virtude por parte dos governantes, e o período de degradação se iniciava. É aqui que os chineses dão partida a suas interpretações cíclicas da história; cada dinastia tem seu período de ascensão e queda; do mesmo modo, cada período dinástico é comandado por uma visão de mundo introspectiva ou cosmopolita - em todas as escalas, a alternância da mutação se faz presente, tal como principio que determina as mudanças permanece sempre o mesmo.

Império Qin e Han

Que fique claro, a historiografia tradicional chinesa entendeu que os períodos Xia, Shang e Zhou também foram imperiais, e o que houve foi apenas uma mudança nas políticas administrativas do mesmo. Portanto, o advento dos Qin significa uma grande modificação neste panorama, mas não necessariamente a formulação de algo novo.

Qinshi Huangdi, o primeiro (e da fato, único) soberano Qin assumiu o poder em -221, e a lista com suas realizações é enorme. Unifica o país, pesos, medidas, leis, centraliza a administração pública (amparado em seus conselheiros legistas), cria uma máquina governamental eficaz; por outro lado, seu mausoléu com milhares de guerreiros de terracota, a construção da grande muralha, as campanhas militares, a repressão intelectual (com direito à queima de livros e intelectuais) e social custam milhares de vidas ao povo. Ao morrer, em -207, uma revolta geral toma conta da sociedade, que derruba a dinastia numa guerra interna dura, porém rápida. Muito se discute hoje, entre os intelectuais chineses, os aspectos despóticos de Qin; mas quantas vidas a mais custariam para a China o período dos Estados Combatentes? A figura de Qinshi Huangdi, tradicionalmente escalpelada pela historiografia, está sendo recuperada pela nova visão marxista chinesa. Há que se perguntar se, realmente, o que este soberano fez não foi muito diferente dos seus congêneres egípcios, mesopotâmicos, persas ou romanos - mas na China, os números sempre impressionam por sua magnitude, dando pouco espaço a reflexões proporcionais. No entanto, o sistema legista empregado por ele era deveras totalitário, e se era necessário para o processo de unificação, exasperou rapidamente as estruturas sociais. Muita força se esgota rápido - o exagero de yang desperta, assim, a força yin, que dissolve e faz fluir.

Por conta disso, os Han (-206 +220) parecem ter aprendido a lição, tendo sobrevivido bastante e sofrendo apenas um interregno (os Xin, de +15 +25, considerados usurpadores), que marca sua divisão entre "anteriores" (ou, ocidentais) e "posteriores" (orientais) por conta da mudança de capital.

Os Han absorvem a estrutura governamental Qin, mas a suavizam, dando uma liberdade muito maior ao povo. A China da época se expande, e vive uma de suas fases de ouro; abre-se a rota da seda, divulga-se o papel (dito inventado nesta época, mas na verdade bem anterior), expulsam os bárbaros do norte (que viriam a ser os Hunos, invasores da Europa), a economia cresce e expande-se o número de escolas e letrados. O Confucionismo, adotado como doutrina oficial de governo, favorece um panorama intelectual e científico rico, repleto de criações inovadoras, que vão desde a elaboração de teorias cósmicas inovadoras como também, a invenção do aço, do sismógrafo e da bússola.

Um sistema vasto e pesado como este exigia uma burocracia eficaz, que os Han conseguiram promover por algum tempo; mas, como manda a história chinesa, uma dinastia não pode durar para sempre. Incapaz, pois, de suportar as exigências do seu próprio peso, os Han se desfazem em três reinos (Sanguo), gerando um novo período de caos. Para o historiador, é a repetição do ciclo, inexorável.

Tang e Song

Até que, em 618, uma nova casa real aproveita a frágil unificação promovida pelos Sui (+581 +618) e retoma a união da China em suas mãos. Estes foram os Tang, responsáveis pela nova fase de sucesso do país.

Enquanto o Ocidente se debatia em calamidades e o Islã se expandia, os Tang conseguiram manter a coesão política e a integridade do território chinês, criando a maior nação da época. Reabrem a rota da seda, estimulam um comércio rico, recebem as religiões do oeste complacentemente (é a época em que budismo, islamismo, judaísmo e cristianismo, além das religiões pagãs chegam) e figuram-se muito mais artistas (sua marca é a cerâmica tricolor, com temas estrangeiros), poetas - numa míríade deles, temos Libai e Dufu - e negociantes do que, propriamente, conquistadores.

Mas era difícil suportar as pressões de uma geopolítica tumultuado como a deste período. Novamente, ao dissolver-se, a China cai na anarquia social e no conflito. Tem que esperar até a vinda dos Song (+960 +1279), que juntam os pedaços da civilização e lhe dão um novo caráter. Introspectivos, dedicam-se a filosofia - na qual Zhuxi, o grande mentor do neoconfucionismo, é seu luminar-, pintura, a porcelana (cuja técnica se espalha nesta época), descobrem a pólvora e constituem uma cultura magnífica, de recursos econômicos vastos, mas alheia ao estrangeiro. É com dificuldade, pois, que eles percebem a chegada dos mongóis de Gengis Khan - e tendo recursos inúmeros para reagir, ainda assim não oferecem uma resistência sistemática e organizada, desintegrando-se diante do invasor.

Yuan

Como tudo que vem pela força, o domínio mongol é efêmero, rápido, mas deu-se a conhecer pelo seu cosmopolitismo (com exceção da dura repressão aos chineses) que atraiu inúmeros missionários e viajantes ocidentais, dos quais o mais destacado teria sido Marco Polo - se este, realmente, foi até lá. Sem experiência em governar grandes impérios - mas apenas, em derrubá-los-, os mongóis foram expulsos em 1368, atravessando a muralha a pé, numa indignidade ímpar.

Ming

Mas a nova dinastia chinesa, os Ming, incorpora muito da violência de seus predecessores. Esta dinastia constrói-se sobre um receio ao estrangeiro e aos movimentos sociais. Tal dilema se reproduz, diretamente, na oposição entre liberdade individual e econômica; se as corporações ming produzem porcelana que vendem ao resto do mundo, preferem, no entanto, que os mesmos estrangeiros não passem dos portos. A chegada dos missionários ocidentais - e os portugueses tem a preeminência neste movimento durante um bom tempo - é recebida com desconfiança. A armada de Zheng He, que décadas antes singrou todo o oceano Índico e parte do Pacífico, apodreceu no cais e as tecnologias navais foram abandonadas. A hermeticidade dos Ming, que com grande dificuldade dialogava com o resto do mundo, tornou-os míopes a realidade circundante, repetindo o erro dos Song; e em 1644, invasores do norte (os manchus), convocados para debelar uma revolta interna, aproveitam a oportunidade e se lançam a conquista do poder. Se tornariam, assim, a última dinastia imperial da China - os Qing.

Qing

Estas repetições guardam, no entanto, algum sentido de evolução. Se os Ming achavam que sua soluça era isolar-se do mundo, os Qing perceberam que o ideal, talvez, fosse construir um modelo para desenvolver tais relações. Mesmo sendo estrangeiros, eles buscaram não repetir erros cometidos pelos Yuan, e em poucos anos os chineses foram reincorporados a vida administrativa do país. Os estrangeiros são recebidos nos portos, podem comerciar, mas sofrem severas restrições e são observados - o receio convive com a necessidade e a realidade.

Este mundo Qing vai indo bem, mas o processo iniciado já na época Ming, aos poucos, se manifesta de modo reincidente; há uma dificuldade tremenda, além de um temor, em se investir em novas tecnologias (elas podem cair nas mãos do povo, afinal), e a insistência dos europeus em conquistar novas posições dentro do mercado irrita os imperadores. Alheios às transformações que o capitalismo impunha ao Ocidente - ainda que os chineses dessem, indiretamente, sua contribuição econômica para isso - o modelo autocentrado e xenófobo dos Qing fica obsoleto para lidar com as novas circunstancias do tempo. O século 19 traria a surpresa desagradável da modernidade para a China.

O Período Moderno

Já em sua primeira metade, os ingleses trazem a frota real para as Guerras do ópio, numa demonstração inesperada e surpreendente de poder. Os Qing vêem seu mundo ruir aos poucos quando se confirmam, também, seus temores internos com a revolta Taiping, de inspiração religiosa cristã e com os Boxers - debelados à custa de uma intervenção militar estrangeira. Assinando tratados infames, a China vê perder seu espaço, honra e dignidade no mundo. A última imperatriz, Cixi, é um atestado da incapacidade absoluta dos manchus manterem o poder - sua habilidade em negociar é tão lendária quanto sua cegueira política. Ela conseguiu, deliberadamente, impedir todas as tentativas de reforma do governo chinês - só assim ela poderia viver em seu mundo de fantasias na Cidade proibida, ignorando os acontecimentos no resto da China.

Em 1911, Sun Yatsen articula o processo político que enterra o império e inaugura a primeira república asiática, de orientação vagamente socialista. Sun também era um político hábil, mas um administrador limitado. Sua morte, em 1927, encerra sua decisiva, mas breve, participação no processo político chinês. Doravante, a sociedade dividiria-se entre o governo de Jiang Jieshi (Chiang Kaishek) e a proposta revolucionária do Marxismo, liderado por Maozedong.

O conflito se arrastaria ao longo de décadas, passando pela invasão japonesa de 1936 e a segunda guerra mundial. No final, em 1949, o carisma e a organização dos comunistas expulsariam os restos da república, em frangalhos, para a ilha de Taiwan. A China se dividiria em duas, situação que perdura até agora.

A China comunista

Chegamos a etapa final destas unificações e desagregações. O uso de uma ideologia estrangeira para realizar o novo governo da China foi inédito, mas não estranho - tratava-se apenas de sinizá-lo, tal como foi feito no budismo. As experiências péssimas com o capitalismo imperialista também decidiram na escolha deste modelo de modernização. Entre idas e voltas, a China voltou a ser poderosa com Maozedong, empregando um sistema político duro como foi o legista. No entanto, foram-se 50 anos e o país já sente novos ares de liberdade. A economia anda a todo o vapor, e as dissensões sociais e políticas vão caminhando - na China, o tempo se mede em décadas e séculos. Por conta disso, a aparente inimizade de Taiwan e a China continental tendem a diluir-se, dando-se a aproximação pela via comercial mas, principalmente, cultural.

Por fim, o sentido desta introdução histórica...

Se breve, esta apresentação da história chinesa referenda, para os próprios, o seu sentido de continuidade. Os movimentos se repetem, os ciclos de alternam e a civilização não cessa de evoluir. Uma estrutura que se desagrega é a base da futura sociedade; ainda que ela aguarde a estagnação e a crise, o descompasso entre a realidade e o modo de ver o mundo é sempre superado (mesmo que isso leve séculos). Ao estudar o passado, busca-se reter o fio condutor, a permanência, os elementos da cultura que dão as orientações para a existência e a coesão da sociedade. Esta é a centralidade. Como disse Liu Zhiji, no Shitong:

O homem vive em sua forma corporal entre o céu e a terra, e sua vida dura tanto como a de uma mosca de verão, ou como o passo de uma égua manca vista por um buraco na parede. Assim, durante todos estes anos ele vive penando, pensando que seus méritos não serão reconhecidos e lamenta que, logo apos sua morte, seu nome será esquecido. Por isto, desde os grandes imperadores, aos reis menores e aos mortais mais comuns, desde o cortesão aos ermitãos, em suas distantes covas e cabanas, todo o mundo, todos, de um modo ou de outro, se preocupam com estas questões. E por quê?

Porque todos têm seu coração roubado pela ânsia de imortalidade. E o que é, enfim, a imortalidade? Não é mais que ter o próprio nome escrito em um livro. Se o mundo não tivesse livros, se cada época não tivesse seus historiadores, então estes homens sábios como Yao e Shun, ou os tiranos como Jie e Zhou, uma vez mortos e perdidas suas formas, antes que a terra de suas tumbas endurecesse, o bem e o mal já haveriam se misturado, se confundindo, e ambas, beleza e maldade, se encontrariam perdidas para sempre. Mas, ainda que exista o ofício da historia, ainda que os livros continuem existindo, ainda que os homens morram e entrem na noite e no silêncio eterno, seus atos permanecerão, brilhando como estrelas da via Láctea.

Assim, quando alguém quiser estudar o passado, a única coisa que deverá fazer é pegar um livro em sua estante, e seu espírito entrará em contato com o passado. Não necessitará sair de sua casa, e sua vista alcançará mil anos. Verá o que fizeram os bons e quererá imitá-los, verá o que fizeram os perversos, e ponderará sobre isso em seus pensamentos.

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