
Durante a dinastia Han (sécs -3 +3), uma série de debates ocorridos na corte sobre questões econômicas fomentou a redação de um texto, intitulado Yantienlun – “Debates sobre o sal e o ferro” que se constitui, talvez, na primeira peça histórica estatal em que o foco central da discussão é a intervenção (ou não) do Estado na economia. As preocupações dos especialistas envolvidos neste processo abarcavam uma série de temas polêmicos, tais como o suborno dos “bárbaros” da fronteira, a regulação de preços, de impostos e, principalmente, o monopólio estatal do governo sobre certas áreas – neste caso, especificamente, a produção e comercialização do sal e do ferro. A questão era saber se o Estado, como provedor ideal de seu povo, deveria regular estes dois campos fundamentais da economia – de modo que isso beneficiasse a sociedade como um todo – ou, se a cobiça dos funcionários e nobres da corte não levaria a malversação dos lucros obtidos com os mesmos. Aliás, ao manter um monopólio, o Estado estaria concorrendo com comerciantes e manufatureiros?
“Entendemos que o modo de governar se baseia na prevenção da frivolidade ao mesmo tempo em que promove a moralidade, em terminar com a busca do beneficio egoísta e desejar o caminho da benevolência e do trabalho. Quando se enfatiza o beneficio, uma civilização floresce e melhoram os costumes dos homens. Recentemente, o monopólio do sal e do ferro, o imposto sobre licores e o tabelamento de preços foi estabelecido em todo o país. Isto implica uma relação financeira com o povo que mina sua natural honestidade e corrompe seu espírito solidário. Como resultado, uns poucos continuaram a exercer o fundamental (o cultivo da terra) e a maioria fará o secundário (comercio e indústria). Quando o artificial prospera a simplicidade declina. Quando o que e secundário floresce, o básico decai. A ênfase no secundário faz o povo decadente, a ênfase no básico mantém as gentes sem sofisticações. Quando as pessoas não são sofisticadas, a riqueza abunda; quando são extravagantes, tudo falta, e o frio e a fome tem lugar. Nós propomos que os monopólios do sal, do ferro e do licor, assim como o tabelamento, sejam abolidos. Deste modo se revitalizara o básico e o povo deixara de praticar o secundário. Assim, a agricultura voltará a prosperar. Isto é o apropriado”. (Yantienlun – Debates sobre o Sal e o Ferro).
As questões consideradas no tratado mostram, na história da China, uma mudança de perspectiva em relação ao modo antigo de encarar o sistema econômico. Ainda que o forte da produção estivesse fundamentalmente ligado ao campo – e assim o será até o tempo da revolução comunista – a economia, como um todo, envolvia uma estrutura muito mais complexa, como constataram os debatedores; e a solução dada – a imposição do monopólio de sal e ferro pelo Estado – implicou uma investigação profunda sobre como operava a sociedade chinesa, e de que maneira se davam estas atividades econômicas.
Antes de Han
Nas dinastias anteriores (Xia, Shang, Zhou e Qin), a legislação econômica sempre incidiu, diretamente, sobre a produção agrícola. As taxações, inclusive, estavam ligadas a terra e as colheitas. No Shijing, o antigo “Tratado dos Poemas”, uma canção fala da avareza dos ministros, preocupados em financiar guerras que arrasavam as colheitas, aumentavam impostos e destruíam a vida das famílias pobres:
Ratos grandes, ratos grandes, deixem-nos pedir
Que não roam nosso milho.
Mas os ratos grandes a que nos referimos são vocês,
Com quem tratamos durante três anos,
E todo êsse tempo nunca conhecemos
Um olhar de bondade para conosco.
Despedimo-nos de Wei e de vocês;
Há muito ansiamos por uma terra mais feliz.
Ali, em ambiente mais adequado, tranqüilos nos sentiremos.
Ratos grandes, ratos grandes, deixem-nos pedir
Que não devorem nossas colheitas de trigo.
Mas os ratos grandes a que nos referimos são vocês
Com quem há três anos vimos convivendo;
E durante todo êsse tempo vocês nunca fizeram
Um só ato bondoso que alegrasse nosso destino.
A vocês e a Wei damos adeus,
Em breve iremos para aquêle Estado mais feliz.
Ó feliz Estado! Ó feliz Estado! Lá aprenderemos a bendizer nossa vida.
Ratos grandes, ratos grandes, deixem-nos pedir
Que não comam os rebentos de nossos cereais.
Mas os ratos grandes a que nos referimos são vocês,
Com quem convivemos durante três anos.
De vocês não nos veio, nesse tempo todo,
Uma só palavra de conforto no meio de nossas tristezas.
Despedimo-nos de vocês e de Wei;
E vamos voando para outras paragens mais felizes.
Ó paragens felizes, dirigimos os passos para lá!
Lá nossos gemidos e nossos pesares terminarão.
O sistema feudalizado da dinastia Zhou (o Fengjian) arrecadava diretamente sobre as comunas, e estes tributos ficavam nas mãos dos nobres e reis – uma parte simbólica, somente, era destinada ao imperador Zhou como tributo de vassalidade. As preocupações constantes com a produção agrícola disfarçam, contudo, a importância de outras atividades econômicas. Na época Shang, por exemplo, a manufatura de bronzes atinge uma quantidade (e qualidade) que supera em muito o fabrico artesanal, caracterizando, no mínimo, a formação de corporações organizadas de trabalhadores.
Foi um autor legista, Shang Yang (séc. -4), que primeiro atentou para a correlação entre produção econômica, sociedade e a manutenção do Estado. Shang acreditava ser necessária uma intervenção nas atividades produtivas, de modo a gerar riquezas que pudessem ser arrecadadas pelo governo para financiar suas operações militares e um corpo burocrático especializado, capaz de administrar o país sem a participação de elites locais. Esta idéia de centralização não pressupunha, ainda, estatizações, mas um controle rígido sobre o comércio e a terra;
No domínio dos assuntos internos relacionados com as pessoas, não há nada mais difícil do que a agricultura. Dai que uma fácil administração não os consiga induzir à mesma. O que se chama de uma fácil administração? Quando os agricultores são pobres e os comerciantes são ricos, quando as pessoas sagazes obtêm lucros e os que buscam cargos itinerantes são numerosos. Pelo que, os agricultores, apesar do seu trabalho extremamente árduo, obtêm pouco lucro e, perante a carência deste, encontram-se numa situação mais grave do que os comerciantes e lojistas e toda a espécie de pessoas sagazes. Ao lograr-se restringir o número deste último tipo, então, mesmo que fosse esse o desejo, não se poderia evitar que um estado se tornasse rico. Dai dizer-se: “Caso se pretenda enriquecer o país através da agricultura, então, no limite das fronteiras, os cereais devem ser prezados, os impostos para aqueles que não são agricultores devem ser consideráveis e os direitos sobre o lucro obtido nos mercados devem ser pesados, com o resultado de que as pessoas são forçadas a possuir terra. Uma vez que aqueles que não possuem terras são obrigados a comprar cereais, estes serão prezados e aqueles que possuem terras tirarão, assim, proveito. Quando aqueles que possuem terras obtêm lucro, existirão muitos que se dedicarão [à agricultura]. Quando os cereais são prezados e o respectivo negócio não é lucrativo, enquanto se impõem, além disso, pesados impostos, as pessoas não falharão em suprimir os comerciantes e lojistas e toda a espécie de gente sagaz nem em dedicar-se a exploração do solo. Pelo que a força do povo será completamente exercida na exploração do solo. Daí que aquele que organiza um estado deveria permitir que os soldados detivessem a totalidade dos lucros nas fronteiras e que os agricultores detivessem a totalidade dos lucros do mercado. Se a primeira situação ocorrer, o estado será forte e se a segunda ocorrer, será rico. Por conseguinte, aquele que, no estrangeiro, é forte em tempo de guerra e, na pátria, é rico em tempo de paz, alcançará a supremacia. Uma vez que, se os cereais são baratos, o valor do dinheiro é elevado, e os cereais baratos representam agricultores pobres, e valores elevados de dinheiro representam comerciantes ricos; e se as ocupações secundárias não são proibidas, então (...). (Shang Yang).
Na contramão disso, Mêncio, confucionista, defendia um ponto de vista liberal da economia – quanto mais as pessoas produzissem para si próprias, maior seria a fartura e a riqueza -, dispensando, assim, um controle do governo. O campo deveria ser livre para produzir seu necessário, e o excedente viria naturalmente:
Se o tempo indicado para lavrar a terra não é perturbado, haverá mais cereal do que se pode consumir. Se não permite introduzir redes nos remansos e lagoas, haverá mais peixes e tartarugas do que se pode consumir. Se se utilizam os machados nas colinas e nos bosques unicamente no tempo apropriado, haverá mais madeira do que se pode utilizar. Quando o cereal e os peixes e as tartarugas são mais do que se pode comer, habilita-se o povo a alimentar sua vida e chorar seus mortos, sem nenhum ressentimento contra ninguém. Essa situação na qual o povo alimenta sua vida e enterra seus mortos sem nenhum ressentimento contra ninguém é o primeiro passo do governo real”. “Plantai amoreiras em torno das casas com seus cinco mâu e as pessoas de cinqüenta anos poderão vestir-se de seda. Se tiverdes aves domésticas, porcos e cães, não descuideis das épocas de cria e as pessoas de setenta anos poderão comer carne. Não deixeis passar o tempo adequado ao cultivo da granja com seus cem mâu e a família de várias bocas que dela se alimenta não sofrerá fome. Atentai bem na educação das escolas, especialmente inculcando nelas os deveres filiais e fraternos e os homens de cabelos brancos não serão vistos a levar pelas estradas cargas na cabeça ou nas costas. Nunca se viu um governante do Estado onde semelhantes resultados surgem — gente de setenta anos vestindo seda e comendo carne, gente de cabelos brancos que não sofre de fome nem de frio – deixar de alcançar a dignidade real”. “Seus cães e porcos comem os alimentos dos homens e não toma medidas restritivas. Há gente que morre de fome pelos caminhos e não lhes entrega o que têm depositado nos seus celeiros. Quando morre o povo, diz: “Eu não tenho culpa. A culpa é do ano, que é mau”. Qual é a diferença entre apunhalar um homem e matá-lo dizendo: “não fui eu, foi a arma? Deixe Sua Majestade de culpar o ano e instantaneamente virão a si os homens de todas as Nações".
Ambos os pontos de vista tinham a agricultura como foco central, mas eram extensíveis as atividades artesanais. Nesta época, delineia-se também a visão que a sociedade terá das classes produtivas, presente no texto de Guanzi (um autor legista da fase pré-Han): em primeiro lugar viriam os letrados, donos do conhecimento e da sapiência; depois, os agricultores, sustentáculos da sociedade; em terceiro viriam os artesãos, que só transformam a matéria em objeto e os vendem; por fim, a classe dos comerciantes – detestada – por fazer lucro com as necessidades das pessoas. Esta visão idealista suprime, obviamente, a realidade pobre de agricultores, dura dos artesãos, e necessária dos mercadores – mas é, antes de tudo, uma construção ideológica. Deixa de fora, também, as oligarquias rurais, um incômodo perene na história do país.
Até aqui, nenhum modelo havia se estabelecido em definitivo, variando de reino para reino. A atribuição fundamental do Estado se constituía, efetivamente, em proclamar o calendário para as atividades agrícolas, e sua interferência no tema continuava bastante superficial. As necessidades construídas pelo advento dos Estados Combatentes (-481 -221) transformariam a economia num problema central destes reinos, dos quais Qin seria o mais bem sucedido.
Qin e Han
Qin empreendeu projetos fundamentais para dinamização da economia, além de unificar pesos, medidas e moedas. Tais operações foram indispensáveis para consolidar sua posição de domínio perante os outros Estados, podendo manter um vasto exército e consolidando a reunificação da China. Se algo há que contribuiu para derrocada dos Qin, foi sua terrível pressão política sobre a sociedade; a economia, funcional a custo de sacrifícios tremendos, ia bem. Alguns monopólios estatais foram ensaiados (como a fabricação de armas), mas o controle sobre a economia ainda se baseava nas regulamentações e impostos.
Coube aos Han implementar este sistema, aumentando sua extensão pela incorporação de novas áreas comerciais e tecnológicas. Os Han empreendem uma abertura de mercados, exportando seda (entre outros produtos) para o exterior - a famosa rota da seda surge nesta época -, facilitando o trânsito interno de mercadorias e comerciantes, e estimulando a produção de ferro, papel, sal, e outros produtos rentáveis. Sima Qian deu, no Shiji, um testemunho claro dessa época:
Em suma, Shansi produz madeira, cereais, linho, pelos de boi e jades. Shandong produz peixe, sal, laca, sedas e instrumentos musicais. Qiangnan (ao sul do Yangzi) produz cedro, zu (madeira dura para a fabricação de blocos de impressão), gengibre, canela, minérios de ouro e estanho, cinábrio, chifres de rinoceronte, carapaças de tartaruga, pérolas e couros. Lungmen produz pedra para tabuletas. O norte produz cavalos, bovinos, carneiros, peles e chifres. Cobre e ferro são muitas vezes encontrados por toda parte, nas montanhas, espalhados como peões num tabuleiro de xadrez. É de tudo isso que o povo da China gosta, e tais artigos atendem às necessidades de sua existência e das cerimônias para os mortos. Os homens do campo os produzem, os atacadistas os trazem do interior, os artesãos trabalham neles e os mercadores com eles negociam. Tudo isto se verifica sem a intervenção do governo ou dos filósofos. Cada qual faz o melhor que pode e utiliza seu trabalho para obter o que quer. Assim, os preços procuram seu nível, indo as mercadorias baratas para onde são mais caras e dessa forma baixando os preços mais altos. As pessoas seguem suas respectivas profissões e o fazem por sua própria iniciativa. É como o fluir da água, que procura o nível mais baixo dia e noite, sem parar. Todas as coisas são produzidas pelo próprio povo sem que lho peçam e transportadas para onde há precisão delas. Não é verdade que tais operações ocorrem naturalmente, de acordo com seus próprios princípios? O Livro de Zhou diz: “Sem os lavradores, não serão produzidos víveres; sem os artesãos, a indústria não se desenvolverá; sem os mercadores, os bens de valor desaparecerão; e, sem os atacadistas, não haverá capitais e os recursos naturais de lagos e montanhas não serão explorados”. Nossos alimentos e nossas vestes vêm dessas quatro classes, e a riqueza e a pobreza variam com o volume dessas fontes. Com isso, em escala maior, beneficia-se um país; em escala menor, enriquece-se uma família. São estas as inevitáveis leis da riqueza e da pobreza. (Shiji, O Livro das Histórias, de Sima Qian).
No entanto, o crescimento descontrolado destas atividades econômicas preocupou o governo, promovendo o debate presente no Yantienlun. A riqueza material, aliada a cobiça, não trouxe consigo um bem estar pleno para a sociedade, e muitas desigualdades sérias e profundas continuavam a existir. A classe comerciante tornou-se atuante junto à corte e a administração pública, pleiteando cargos, facilidades, e preocupando severamente as instâncias políticas. O peso desta pressão econômica incidiu diretamente sobre a população. Uma anedota do Kungzi Jiayu (escrito na época Han, embora se remeta a um período anterior), ilustra bem o quadro em que viviam os camponeses:
Confúcio contou a seguinte história: Certa vez, ia eu passeando pelas montanhas e vi uma mulher a chorar junto a um túmulo recente. Perguntei-lhe a causa de seu pesar e ela, secando as lágrimas, respondeu:
- Somos uma família de caçadores. Meu pai foi comido por um tigre. Meu marido foi mordido por um tigre e morreu. E agora, meu filho...
- Por que, então, não te mudas deste lugar?
Não - respondeu a mulher.
- Por que não?
- Porque aqui - replicou a mulher - não há coletores de impostos.
As tentativas do Estado em intervir diretamente nas atividades econômicas se situam, portanto, numa busca de harmonia. O Estado é a presença do Céu na Terra; ele deve buscar o bem estar do povo, como dizia Mêncio. Mais tais políticas iriam variar ao longo do tempo, e no final dos Han, o compromisso dos imperadores com os financistas e comerciantes fez com que todos os tipos de concessão fossem dadas, minando a estrutura de arrecadação do Estado e destruindo-o.
Novas áreas comerciais
Mas a estrutura econômica básica da China continuou sendo a produção agrícola, cravada na sociedade com peça inseparável de sua existência. A produção de arroz é um exemplo vivo disso: exigente, ela não pode ser realizada com ajuda de maquinários, envolve necessariamente um grande número de pessoas – a família camponesa – e se apresenta bastante rentável, além do próprio produto poder ser empregado das mais diversas formas. Esta flexibilidade permitiu que o arroz fosse – e seja, ainda -, o alimento básico da China e de várias outras nações asiáticas. Em contrapartida, praticamente não existiram escravos como mão de obra em larga escala – a China tinha escravos, mas nunca foi uma economia escravista.
Pilares como estes dão forma a uma parte da economia que não se alterou com o tempo, exceto quando do aumento de sua extensão. Mas a retomada dos períodos Tang e Song reavivou sobremaneira a economia, aumentando os campos de trabalho e produção. Esta é a época em que surge a porcelana, uma das molas mestras da economia chinesa nos próximos séculos, e a seda volta novamente a ser exportada em grandes quantidades, produzida por corporações cujo conhecimento de seu fabrico é guardado a sete chaves. Em torno do século 11, os Song conseguiam produzir uma quantidade de ferro que só seria igualada pela Europa 6 séculos depois.
Uma invenção chinesa favorece todo este movimento produtivo: a impressão do papel-moeda. Vinculado a um valor em prata, o papel-moeda facilitava enormemente o comércio, e causaria uma forte impressão nos europeus que chegariam depois.
O descompasso da época Ming e Qing
Mas o crescimento traz seus problemas, é a regra da oposição complementar. Os Ming (sécs. 13 a 17) vêem os europeus chegarem, e junto com eles, toda uma nova demanda comercial. As porcelanas saem como nunca, e a balança comercial parece positiva. No entanto, a população aumenta bastante, o que começa a fazer baixar a renda geral. A produção agrícola começava a se mostrar insuficiente para sustentar a sociedade. O primeiro dos imperadores Min, Hongwu, teve uma preocupação aguda com a agricultura que, no entanto, foi abandonada por seus sucessores. Aparentemente, esperava-se que a entrada de recursos em prata superasse o crescente déficit, mas tal não aconteceu.
A ascensão do Qing no séc. 17 foi acompanhada de medidas para restabelecer a economia, cujo equilíbrio continuou frágil. A esperança de continuar a manter a produção agrícola subsidiada pela prata estrangeira levou os Qing a inovar, criando corporações comerciais (Hong) responsáveis por negociar e obter o maior lucro possível junto aos mercadores estrangeiros – principalmente europeus. No entanto, a população aumentou ainda mais, fomentando crises periódicas de fome e epidemias – e consequentemente, afetando a estrutura produtiva da sociedade.
Os Qing e a queda do império
Os Qing careciam de uma política econômica inovadora. Suas estruturas políticas, no século 18, estavam estagnadas e corrompidas; a ausência de inovação tecnológica dificultou, igualmente, a criação de novas atividades rentáveis e da produção. As Guerras do Ópio e a abertura dos portos chineses as nações européias deu o golpe final na tradição econômica do país. O início do séc. 19 trouxe, finalmente, a crise estabelecida para o país. Pela primeira vez em sua história, a China tinha uma balança comercial deficitária; os tratados desiguais exigiram do governo alfândegas, indenizações exorbitantes, a abolição das Hong e traziam, para dentro do território, produtos manufaturados estrangeiros que começaram a destruir a indústria local. As tentativas de reforma – fracassadas pela atitude recalcitrante da imperatriz Cixi – lançaram os chineses na pior fase de sua história, arruinando por completo seu modelo econômico tradicional – e por conseqüência, o próprio império Qing.
A República
A proclamação da república, em 1911, trouxe esperança – mas não soluções – para o povo chinês. Havia uma grande indecisão sobre adotar um modelo econômico liberal, semelhante ao europeu, ou investir num outro tipo, inovador, de orientação socialista-marxista. Sun Yatsen tinha uma certa inclinação ao socialismo, mas seu curto tempo de governo não permitiu desenvolver nada de prático. A ascensão de Jiang Jieshi (Chiang Kaishek) e a divisão da China entre republicanos e comunistas tornou o país um palco de lutas insustentável, onde a definição de um novo modelo econômico seria, também, a opção do país para a modernidade. A solução só se deu, como sabemos, em 1949, com a vitória comunista. A república chinesa continuaria a existir, porém, em Taiwan.
A Economia Socialista
Maozedong recebeu um país destroçado, mas percebeu que muito da estrutura econômica tradicional havia permanecido – a China ainda era, de qualquer forma, um país agrário. Sua percepção em investir num comunismo agrícola e camponês, ao invés de industrial, surtiu um efeito bastante positivo nos primeiros anos de seu governo. Mao conseguiu recuperar uma parte substancial da produção agrícola, conseguido dirimir – mesmo que exiguamente – o problema alimentar. De início, o modelo adotado de industrialização rápida – a construção de indústrias de base, dentro de uma linha clássica do pensamento soviético – modificou consideravelmente o panorama da indústria chinesa, que herdou, ainda, as instalações japonesas da segunda guerra na Manchúria.
Mas Mao era um revolucionário nato, e não necessariamente um administrador capacitado. Políticas como a dos Planos Qüinqüenais e do Grande Salto (na década de 50) se mostraram desastrosas, ao tentar promover um crescimento rápido e artificial da economia. Um sistema socialista não é, a princípio, concorrencial e de mercado; por causa disso, o estímulo ideológico não podia substituir o pragmatismo da realidade e das necessidades econômicas do país, e o desenvolvimento esperado não ocorreu. Até 1976, contudo, Mao tentou de várias formas compensar as deficiências de sua política econômica, oscilando entre sucessos e fracassos. Após sua morte, não tardou para que uma linha pragmatista assumisse o poder, reformulando muitas das diretrizes do comunismo chinês. Em 1977, a política das 4 modernizações incluía como uma de suas metas principais a reforma da indústria, tanto tecnologicamente quanto comercialmente. As fábricas deveriam ser preparadas para gerar lucro, alimentando os cofres do Estado e aumentando os salários dos empregados.
A situação atual
O impulso a modernização lançou a economia chinesa a um novo patamar de sucesso. Mais preocupada em concorrer no mercado do que, propriamente, seguir uma cartilha antiga, os chineses conseguiram rapidamente absorver novas tecnologias, alcançando níveis de produtividade, a custos baixos, que reformularam por completo o panorama da economia mundial. Hoje, em torno de 75% dos brinquedos mundiais, por exemplo, são feitos na China. A maior migração de créditos americanos se dá para a China também, com a qual os EUA já têm uma balança comercial deficitária. O país buscou, inicialmente, entrar no mercado internacional por meio de produtos baratos, inovadores e relativamente úteis. O fenômeno das lojas de 1,99 é resultado direto desta política, mas uma gama muito maior de produtos já faz parte de nosso cotidiano. Um grande número de indústrias estrangeiras tem se instalado no país, atraídas pelo mercado vasto, pela infra-estrutura operacional e pela mão de obra atraente, qualificada e de baixo custo. Em contrapartida, os chineses estabeleceram duras leis de remessa de lucros, conquistando em pouco tempo uma grande reserva cambial.
Os desafios da China moderna são os de sustentar este crescimento. A grande poluição, a migração de trabalhadores do campo para a cidade em busca de empregos melhores e o conseqüente desabastecimento alimentar são problemas imediatos, cujos números e valores – sempre hiperbólicos nesta sociedade – já estão fazendo com que o Estado se preocupe, novamente, em como interferir na economia.
O resultado dessas relações complexas mostra que a China, em definitivo, nunca perdeu sua importância no planeta. Ao reconquistar um lugar estratégico na geopolítica mundial, o país traz consigo uma estrutura milenária, calcada num sentido de esforço e trabalho próprios desta civilização. O que vemos hoje é, de certo modo, a mesma China de séculos atrás – a analogia, entretanto, nos remete a procurar saber se hoje a sociedade é como a dos Tang, dos Ming, ou é algo novo. A capacidade em se adaptar dá novamente as cartas; tal como acontece no continente, Taiwan também encontrou, por meio de um outro modelo moderno (liberal), um desenvolvimento significativo.
A China comunista se constitui, ainda, um modelo para as ex-nações socialistas, ideologicamente desorientadas, e para os países do terceiro mundo, cuja economia agrária anseia, um dia, por mudar. Este “Socialismo de Mercado”, contradição que só a mentalidade chinesa poderia conceber, explicar e aceitar, é um dos sistemas guias para o século 21.
“Entendemos que o modo de governar se baseia na prevenção da frivolidade ao mesmo tempo em que promove a moralidade, em terminar com a busca do beneficio egoísta e desejar o caminho da benevolência e do trabalho. Quando se enfatiza o beneficio, uma civilização floresce e melhoram os costumes dos homens. Recentemente, o monopólio do sal e do ferro, o imposto sobre licores e o tabelamento de preços foi estabelecido em todo o país. Isto implica uma relação financeira com o povo que mina sua natural honestidade e corrompe seu espírito solidário. Como resultado, uns poucos continuaram a exercer o fundamental (o cultivo da terra) e a maioria fará o secundário (comercio e indústria). Quando o artificial prospera a simplicidade declina. Quando o que e secundário floresce, o básico decai. A ênfase no secundário faz o povo decadente, a ênfase no básico mantém as gentes sem sofisticações. Quando as pessoas não são sofisticadas, a riqueza abunda; quando são extravagantes, tudo falta, e o frio e a fome tem lugar. Nós propomos que os monopólios do sal, do ferro e do licor, assim como o tabelamento, sejam abolidos. Deste modo se revitalizara o básico e o povo deixara de praticar o secundário. Assim, a agricultura voltará a prosperar. Isto é o apropriado”. (Yantienlun – Debates sobre o Sal e o Ferro).
As questões consideradas no tratado mostram, na história da China, uma mudança de perspectiva em relação ao modo antigo de encarar o sistema econômico. Ainda que o forte da produção estivesse fundamentalmente ligado ao campo – e assim o será até o tempo da revolução comunista – a economia, como um todo, envolvia uma estrutura muito mais complexa, como constataram os debatedores; e a solução dada – a imposição do monopólio de sal e ferro pelo Estado – implicou uma investigação profunda sobre como operava a sociedade chinesa, e de que maneira se davam estas atividades econômicas.
Antes de Han
Nas dinastias anteriores (Xia, Shang, Zhou e Qin), a legislação econômica sempre incidiu, diretamente, sobre a produção agrícola. As taxações, inclusive, estavam ligadas a terra e as colheitas. No Shijing, o antigo “Tratado dos Poemas”, uma canção fala da avareza dos ministros, preocupados em financiar guerras que arrasavam as colheitas, aumentavam impostos e destruíam a vida das famílias pobres:
Ratos grandes, ratos grandes, deixem-nos pedir
Que não roam nosso milho.
Mas os ratos grandes a que nos referimos são vocês,
Com quem tratamos durante três anos,
E todo êsse tempo nunca conhecemos
Um olhar de bondade para conosco.
Despedimo-nos de Wei e de vocês;
Há muito ansiamos por uma terra mais feliz.
Ali, em ambiente mais adequado, tranqüilos nos sentiremos.
Ratos grandes, ratos grandes, deixem-nos pedir
Que não devorem nossas colheitas de trigo.
Mas os ratos grandes a que nos referimos são vocês
Com quem há três anos vimos convivendo;
E durante todo êsse tempo vocês nunca fizeram
Um só ato bondoso que alegrasse nosso destino.
A vocês e a Wei damos adeus,
Em breve iremos para aquêle Estado mais feliz.
Ó feliz Estado! Ó feliz Estado! Lá aprenderemos a bendizer nossa vida.
Ratos grandes, ratos grandes, deixem-nos pedir
Que não comam os rebentos de nossos cereais.
Mas os ratos grandes a que nos referimos são vocês,
Com quem convivemos durante três anos.
De vocês não nos veio, nesse tempo todo,
Uma só palavra de conforto no meio de nossas tristezas.
Despedimo-nos de vocês e de Wei;
E vamos voando para outras paragens mais felizes.
Ó paragens felizes, dirigimos os passos para lá!
Lá nossos gemidos e nossos pesares terminarão.
O sistema feudalizado da dinastia Zhou (o Fengjian) arrecadava diretamente sobre as comunas, e estes tributos ficavam nas mãos dos nobres e reis – uma parte simbólica, somente, era destinada ao imperador Zhou como tributo de vassalidade. As preocupações constantes com a produção agrícola disfarçam, contudo, a importância de outras atividades econômicas. Na época Shang, por exemplo, a manufatura de bronzes atinge uma quantidade (e qualidade) que supera em muito o fabrico artesanal, caracterizando, no mínimo, a formação de corporações organizadas de trabalhadores.
Foi um autor legista, Shang Yang (séc. -4), que primeiro atentou para a correlação entre produção econômica, sociedade e a manutenção do Estado. Shang acreditava ser necessária uma intervenção nas atividades produtivas, de modo a gerar riquezas que pudessem ser arrecadadas pelo governo para financiar suas operações militares e um corpo burocrático especializado, capaz de administrar o país sem a participação de elites locais. Esta idéia de centralização não pressupunha, ainda, estatizações, mas um controle rígido sobre o comércio e a terra;
No domínio dos assuntos internos relacionados com as pessoas, não há nada mais difícil do que a agricultura. Dai que uma fácil administração não os consiga induzir à mesma. O que se chama de uma fácil administração? Quando os agricultores são pobres e os comerciantes são ricos, quando as pessoas sagazes obtêm lucros e os que buscam cargos itinerantes são numerosos. Pelo que, os agricultores, apesar do seu trabalho extremamente árduo, obtêm pouco lucro e, perante a carência deste, encontram-se numa situação mais grave do que os comerciantes e lojistas e toda a espécie de pessoas sagazes. Ao lograr-se restringir o número deste último tipo, então, mesmo que fosse esse o desejo, não se poderia evitar que um estado se tornasse rico. Dai dizer-se: “Caso se pretenda enriquecer o país através da agricultura, então, no limite das fronteiras, os cereais devem ser prezados, os impostos para aqueles que não são agricultores devem ser consideráveis e os direitos sobre o lucro obtido nos mercados devem ser pesados, com o resultado de que as pessoas são forçadas a possuir terra. Uma vez que aqueles que não possuem terras são obrigados a comprar cereais, estes serão prezados e aqueles que possuem terras tirarão, assim, proveito. Quando aqueles que possuem terras obtêm lucro, existirão muitos que se dedicarão [à agricultura]. Quando os cereais são prezados e o respectivo negócio não é lucrativo, enquanto se impõem, além disso, pesados impostos, as pessoas não falharão em suprimir os comerciantes e lojistas e toda a espécie de gente sagaz nem em dedicar-se a exploração do solo. Pelo que a força do povo será completamente exercida na exploração do solo. Daí que aquele que organiza um estado deveria permitir que os soldados detivessem a totalidade dos lucros nas fronteiras e que os agricultores detivessem a totalidade dos lucros do mercado. Se a primeira situação ocorrer, o estado será forte e se a segunda ocorrer, será rico. Por conseguinte, aquele que, no estrangeiro, é forte em tempo de guerra e, na pátria, é rico em tempo de paz, alcançará a supremacia. Uma vez que, se os cereais são baratos, o valor do dinheiro é elevado, e os cereais baratos representam agricultores pobres, e valores elevados de dinheiro representam comerciantes ricos; e se as ocupações secundárias não são proibidas, então (...). (Shang Yang).
Na contramão disso, Mêncio, confucionista, defendia um ponto de vista liberal da economia – quanto mais as pessoas produzissem para si próprias, maior seria a fartura e a riqueza -, dispensando, assim, um controle do governo. O campo deveria ser livre para produzir seu necessário, e o excedente viria naturalmente:
Se o tempo indicado para lavrar a terra não é perturbado, haverá mais cereal do que se pode consumir. Se não permite introduzir redes nos remansos e lagoas, haverá mais peixes e tartarugas do que se pode consumir. Se se utilizam os machados nas colinas e nos bosques unicamente no tempo apropriado, haverá mais madeira do que se pode utilizar. Quando o cereal e os peixes e as tartarugas são mais do que se pode comer, habilita-se o povo a alimentar sua vida e chorar seus mortos, sem nenhum ressentimento contra ninguém. Essa situação na qual o povo alimenta sua vida e enterra seus mortos sem nenhum ressentimento contra ninguém é o primeiro passo do governo real”. “Plantai amoreiras em torno das casas com seus cinco mâu e as pessoas de cinqüenta anos poderão vestir-se de seda. Se tiverdes aves domésticas, porcos e cães, não descuideis das épocas de cria e as pessoas de setenta anos poderão comer carne. Não deixeis passar o tempo adequado ao cultivo da granja com seus cem mâu e a família de várias bocas que dela se alimenta não sofrerá fome. Atentai bem na educação das escolas, especialmente inculcando nelas os deveres filiais e fraternos e os homens de cabelos brancos não serão vistos a levar pelas estradas cargas na cabeça ou nas costas. Nunca se viu um governante do Estado onde semelhantes resultados surgem — gente de setenta anos vestindo seda e comendo carne, gente de cabelos brancos que não sofre de fome nem de frio – deixar de alcançar a dignidade real”. “Seus cães e porcos comem os alimentos dos homens e não toma medidas restritivas. Há gente que morre de fome pelos caminhos e não lhes entrega o que têm depositado nos seus celeiros. Quando morre o povo, diz: “Eu não tenho culpa. A culpa é do ano, que é mau”. Qual é a diferença entre apunhalar um homem e matá-lo dizendo: “não fui eu, foi a arma? Deixe Sua Majestade de culpar o ano e instantaneamente virão a si os homens de todas as Nações".
Ambos os pontos de vista tinham a agricultura como foco central, mas eram extensíveis as atividades artesanais. Nesta época, delineia-se também a visão que a sociedade terá das classes produtivas, presente no texto de Guanzi (um autor legista da fase pré-Han): em primeiro lugar viriam os letrados, donos do conhecimento e da sapiência; depois, os agricultores, sustentáculos da sociedade; em terceiro viriam os artesãos, que só transformam a matéria em objeto e os vendem; por fim, a classe dos comerciantes – detestada – por fazer lucro com as necessidades das pessoas. Esta visão idealista suprime, obviamente, a realidade pobre de agricultores, dura dos artesãos, e necessária dos mercadores – mas é, antes de tudo, uma construção ideológica. Deixa de fora, também, as oligarquias rurais, um incômodo perene na história do país.
Até aqui, nenhum modelo havia se estabelecido em definitivo, variando de reino para reino. A atribuição fundamental do Estado se constituía, efetivamente, em proclamar o calendário para as atividades agrícolas, e sua interferência no tema continuava bastante superficial. As necessidades construídas pelo advento dos Estados Combatentes (-481 -221) transformariam a economia num problema central destes reinos, dos quais Qin seria o mais bem sucedido.
Qin e Han
Qin empreendeu projetos fundamentais para dinamização da economia, além de unificar pesos, medidas e moedas. Tais operações foram indispensáveis para consolidar sua posição de domínio perante os outros Estados, podendo manter um vasto exército e consolidando a reunificação da China. Se algo há que contribuiu para derrocada dos Qin, foi sua terrível pressão política sobre a sociedade; a economia, funcional a custo de sacrifícios tremendos, ia bem. Alguns monopólios estatais foram ensaiados (como a fabricação de armas), mas o controle sobre a economia ainda se baseava nas regulamentações e impostos.
Coube aos Han implementar este sistema, aumentando sua extensão pela incorporação de novas áreas comerciais e tecnológicas. Os Han empreendem uma abertura de mercados, exportando seda (entre outros produtos) para o exterior - a famosa rota da seda surge nesta época -, facilitando o trânsito interno de mercadorias e comerciantes, e estimulando a produção de ferro, papel, sal, e outros produtos rentáveis. Sima Qian deu, no Shiji, um testemunho claro dessa época:
Em suma, Shansi produz madeira, cereais, linho, pelos de boi e jades. Shandong produz peixe, sal, laca, sedas e instrumentos musicais. Qiangnan (ao sul do Yangzi) produz cedro, zu (madeira dura para a fabricação de blocos de impressão), gengibre, canela, minérios de ouro e estanho, cinábrio, chifres de rinoceronte, carapaças de tartaruga, pérolas e couros. Lungmen produz pedra para tabuletas. O norte produz cavalos, bovinos, carneiros, peles e chifres. Cobre e ferro são muitas vezes encontrados por toda parte, nas montanhas, espalhados como peões num tabuleiro de xadrez. É de tudo isso que o povo da China gosta, e tais artigos atendem às necessidades de sua existência e das cerimônias para os mortos. Os homens do campo os produzem, os atacadistas os trazem do interior, os artesãos trabalham neles e os mercadores com eles negociam. Tudo isto se verifica sem a intervenção do governo ou dos filósofos. Cada qual faz o melhor que pode e utiliza seu trabalho para obter o que quer. Assim, os preços procuram seu nível, indo as mercadorias baratas para onde são mais caras e dessa forma baixando os preços mais altos. As pessoas seguem suas respectivas profissões e o fazem por sua própria iniciativa. É como o fluir da água, que procura o nível mais baixo dia e noite, sem parar. Todas as coisas são produzidas pelo próprio povo sem que lho peçam e transportadas para onde há precisão delas. Não é verdade que tais operações ocorrem naturalmente, de acordo com seus próprios princípios? O Livro de Zhou diz: “Sem os lavradores, não serão produzidos víveres; sem os artesãos, a indústria não se desenvolverá; sem os mercadores, os bens de valor desaparecerão; e, sem os atacadistas, não haverá capitais e os recursos naturais de lagos e montanhas não serão explorados”. Nossos alimentos e nossas vestes vêm dessas quatro classes, e a riqueza e a pobreza variam com o volume dessas fontes. Com isso, em escala maior, beneficia-se um país; em escala menor, enriquece-se uma família. São estas as inevitáveis leis da riqueza e da pobreza. (Shiji, O Livro das Histórias, de Sima Qian).
No entanto, o crescimento descontrolado destas atividades econômicas preocupou o governo, promovendo o debate presente no Yantienlun. A riqueza material, aliada a cobiça, não trouxe consigo um bem estar pleno para a sociedade, e muitas desigualdades sérias e profundas continuavam a existir. A classe comerciante tornou-se atuante junto à corte e a administração pública, pleiteando cargos, facilidades, e preocupando severamente as instâncias políticas. O peso desta pressão econômica incidiu diretamente sobre a população. Uma anedota do Kungzi Jiayu (escrito na época Han, embora se remeta a um período anterior), ilustra bem o quadro em que viviam os camponeses:
Confúcio contou a seguinte história: Certa vez, ia eu passeando pelas montanhas e vi uma mulher a chorar junto a um túmulo recente. Perguntei-lhe a causa de seu pesar e ela, secando as lágrimas, respondeu:
- Somos uma família de caçadores. Meu pai foi comido por um tigre. Meu marido foi mordido por um tigre e morreu. E agora, meu filho...
- Por que, então, não te mudas deste lugar?
Não - respondeu a mulher.
- Por que não?
- Porque aqui - replicou a mulher - não há coletores de impostos.
As tentativas do Estado em intervir diretamente nas atividades econômicas se situam, portanto, numa busca de harmonia. O Estado é a presença do Céu na Terra; ele deve buscar o bem estar do povo, como dizia Mêncio. Mais tais políticas iriam variar ao longo do tempo, e no final dos Han, o compromisso dos imperadores com os financistas e comerciantes fez com que todos os tipos de concessão fossem dadas, minando a estrutura de arrecadação do Estado e destruindo-o.
Novas áreas comerciais
Mas a estrutura econômica básica da China continuou sendo a produção agrícola, cravada na sociedade com peça inseparável de sua existência. A produção de arroz é um exemplo vivo disso: exigente, ela não pode ser realizada com ajuda de maquinários, envolve necessariamente um grande número de pessoas – a família camponesa – e se apresenta bastante rentável, além do próprio produto poder ser empregado das mais diversas formas. Esta flexibilidade permitiu que o arroz fosse – e seja, ainda -, o alimento básico da China e de várias outras nações asiáticas. Em contrapartida, praticamente não existiram escravos como mão de obra em larga escala – a China tinha escravos, mas nunca foi uma economia escravista.
Pilares como estes dão forma a uma parte da economia que não se alterou com o tempo, exceto quando do aumento de sua extensão. Mas a retomada dos períodos Tang e Song reavivou sobremaneira a economia, aumentando os campos de trabalho e produção. Esta é a época em que surge a porcelana, uma das molas mestras da economia chinesa nos próximos séculos, e a seda volta novamente a ser exportada em grandes quantidades, produzida por corporações cujo conhecimento de seu fabrico é guardado a sete chaves. Em torno do século 11, os Song conseguiam produzir uma quantidade de ferro que só seria igualada pela Europa 6 séculos depois.
Uma invenção chinesa favorece todo este movimento produtivo: a impressão do papel-moeda. Vinculado a um valor em prata, o papel-moeda facilitava enormemente o comércio, e causaria uma forte impressão nos europeus que chegariam depois.
O descompasso da época Ming e Qing
Mas o crescimento traz seus problemas, é a regra da oposição complementar. Os Ming (sécs. 13 a 17) vêem os europeus chegarem, e junto com eles, toda uma nova demanda comercial. As porcelanas saem como nunca, e a balança comercial parece positiva. No entanto, a população aumenta bastante, o que começa a fazer baixar a renda geral. A produção agrícola começava a se mostrar insuficiente para sustentar a sociedade. O primeiro dos imperadores Min, Hongwu, teve uma preocupação aguda com a agricultura que, no entanto, foi abandonada por seus sucessores. Aparentemente, esperava-se que a entrada de recursos em prata superasse o crescente déficit, mas tal não aconteceu.
A ascensão do Qing no séc. 17 foi acompanhada de medidas para restabelecer a economia, cujo equilíbrio continuou frágil. A esperança de continuar a manter a produção agrícola subsidiada pela prata estrangeira levou os Qing a inovar, criando corporações comerciais (Hong) responsáveis por negociar e obter o maior lucro possível junto aos mercadores estrangeiros – principalmente europeus. No entanto, a população aumentou ainda mais, fomentando crises periódicas de fome e epidemias – e consequentemente, afetando a estrutura produtiva da sociedade.
Os Qing e a queda do império
Os Qing careciam de uma política econômica inovadora. Suas estruturas políticas, no século 18, estavam estagnadas e corrompidas; a ausência de inovação tecnológica dificultou, igualmente, a criação de novas atividades rentáveis e da produção. As Guerras do Ópio e a abertura dos portos chineses as nações européias deu o golpe final na tradição econômica do país. O início do séc. 19 trouxe, finalmente, a crise estabelecida para o país. Pela primeira vez em sua história, a China tinha uma balança comercial deficitária; os tratados desiguais exigiram do governo alfândegas, indenizações exorbitantes, a abolição das Hong e traziam, para dentro do território, produtos manufaturados estrangeiros que começaram a destruir a indústria local. As tentativas de reforma – fracassadas pela atitude recalcitrante da imperatriz Cixi – lançaram os chineses na pior fase de sua história, arruinando por completo seu modelo econômico tradicional – e por conseqüência, o próprio império Qing.
A República
A proclamação da república, em 1911, trouxe esperança – mas não soluções – para o povo chinês. Havia uma grande indecisão sobre adotar um modelo econômico liberal, semelhante ao europeu, ou investir num outro tipo, inovador, de orientação socialista-marxista. Sun Yatsen tinha uma certa inclinação ao socialismo, mas seu curto tempo de governo não permitiu desenvolver nada de prático. A ascensão de Jiang Jieshi (Chiang Kaishek) e a divisão da China entre republicanos e comunistas tornou o país um palco de lutas insustentável, onde a definição de um novo modelo econômico seria, também, a opção do país para a modernidade. A solução só se deu, como sabemos, em 1949, com a vitória comunista. A república chinesa continuaria a existir, porém, em Taiwan.
A Economia Socialista
Maozedong recebeu um país destroçado, mas percebeu que muito da estrutura econômica tradicional havia permanecido – a China ainda era, de qualquer forma, um país agrário. Sua percepção em investir num comunismo agrícola e camponês, ao invés de industrial, surtiu um efeito bastante positivo nos primeiros anos de seu governo. Mao conseguiu recuperar uma parte substancial da produção agrícola, conseguido dirimir – mesmo que exiguamente – o problema alimentar. De início, o modelo adotado de industrialização rápida – a construção de indústrias de base, dentro de uma linha clássica do pensamento soviético – modificou consideravelmente o panorama da indústria chinesa, que herdou, ainda, as instalações japonesas da segunda guerra na Manchúria.
Mas Mao era um revolucionário nato, e não necessariamente um administrador capacitado. Políticas como a dos Planos Qüinqüenais e do Grande Salto (na década de 50) se mostraram desastrosas, ao tentar promover um crescimento rápido e artificial da economia. Um sistema socialista não é, a princípio, concorrencial e de mercado; por causa disso, o estímulo ideológico não podia substituir o pragmatismo da realidade e das necessidades econômicas do país, e o desenvolvimento esperado não ocorreu. Até 1976, contudo, Mao tentou de várias formas compensar as deficiências de sua política econômica, oscilando entre sucessos e fracassos. Após sua morte, não tardou para que uma linha pragmatista assumisse o poder, reformulando muitas das diretrizes do comunismo chinês. Em 1977, a política das 4 modernizações incluía como uma de suas metas principais a reforma da indústria, tanto tecnologicamente quanto comercialmente. As fábricas deveriam ser preparadas para gerar lucro, alimentando os cofres do Estado e aumentando os salários dos empregados.
A situação atual
O impulso a modernização lançou a economia chinesa a um novo patamar de sucesso. Mais preocupada em concorrer no mercado do que, propriamente, seguir uma cartilha antiga, os chineses conseguiram rapidamente absorver novas tecnologias, alcançando níveis de produtividade, a custos baixos, que reformularam por completo o panorama da economia mundial. Hoje, em torno de 75% dos brinquedos mundiais, por exemplo, são feitos na China. A maior migração de créditos americanos se dá para a China também, com a qual os EUA já têm uma balança comercial deficitária. O país buscou, inicialmente, entrar no mercado internacional por meio de produtos baratos, inovadores e relativamente úteis. O fenômeno das lojas de 1,99 é resultado direto desta política, mas uma gama muito maior de produtos já faz parte de nosso cotidiano. Um grande número de indústrias estrangeiras tem se instalado no país, atraídas pelo mercado vasto, pela infra-estrutura operacional e pela mão de obra atraente, qualificada e de baixo custo. Em contrapartida, os chineses estabeleceram duras leis de remessa de lucros, conquistando em pouco tempo uma grande reserva cambial.
Os desafios da China moderna são os de sustentar este crescimento. A grande poluição, a migração de trabalhadores do campo para a cidade em busca de empregos melhores e o conseqüente desabastecimento alimentar são problemas imediatos, cujos números e valores – sempre hiperbólicos nesta sociedade – já estão fazendo com que o Estado se preocupe, novamente, em como interferir na economia.
O resultado dessas relações complexas mostra que a China, em definitivo, nunca perdeu sua importância no planeta. Ao reconquistar um lugar estratégico na geopolítica mundial, o país traz consigo uma estrutura milenária, calcada num sentido de esforço e trabalho próprios desta civilização. O que vemos hoje é, de certo modo, a mesma China de séculos atrás – a analogia, entretanto, nos remete a procurar saber se hoje a sociedade é como a dos Tang, dos Ming, ou é algo novo. A capacidade em se adaptar dá novamente as cartas; tal como acontece no continente, Taiwan também encontrou, por meio de um outro modelo moderno (liberal), um desenvolvimento significativo.
A China comunista se constitui, ainda, um modelo para as ex-nações socialistas, ideologicamente desorientadas, e para os países do terceiro mundo, cuja economia agrária anseia, um dia, por mudar. Este “Socialismo de Mercado”, contradição que só a mentalidade chinesa poderia conceber, explicar e aceitar, é um dos sistemas guias para o século 21.
Nenhum comentário:
Postar um comentário