O Império do Meio


Aquilo que chamamos "China" é, em seu idioma original, Zhong Guo - País (Guo) ou Reino do Centro (Zhong). Pretendeu-se denominar este mundo de várias formas, e entre as antigas encontram até algumas belas (como "Catai", importada de um idioma mongólico). Mas a China, mais que um país ou reino é, em si, uma civilização. Isso significa que a construção de um sistema de governo dentro e para esta cultura envolve especificidades - algumas delas que fazem passar longe, inclusive, o que entendemos como "política". A noção de ser o centro do universo - o mundo do meio - apenas reforçou a peculiaridade dos regimes e das formas chinesas de governar-se, bem como o entendimento do assunto.

O mundo imperial é a sua construção mais duradoura, mas nem sempre única e imóvel, como propuseram os historiadores da longa duração. O fenômeno do império chinês é digno de nota, afinal; como algo fundado a pelo menos 4 mil anos atrás veio a se desfazer, somente, em 1912? Por analogia, é como se o último faraó do Egito abdicasse na mesma época! O tempo é marcante nesta análise - quando Qin empreendeu a unificação imperial no século - 3, os chineses já se acreditavam descendentes de uma civilização com, ao menos, 2 milênios de cultura.

O que estudaremos neste capítulo é como os chineses desenvolveram métodos para gerir seu próprio universo, em consonância com suas teorias filosóficas e administrativas. Um descompasso sério estebelece-se, por vezes, entre as teorias e as práticas, mas algumas características substâncias se mantém. Um estudo deste, portanto, é também uma constatação de um ideal de ordem que esta civilização construiu para si.

As concepções antigas
Embora crendo-se descendentes de uma cultura antiqüíssima, os chineses demoraram um bom tempo para redigir os meios pelos quais possamos compreender sua estrutura governamental antes do século - 6. Se nada sabemos sobre a Dinastia Xia nestes termos, sobre os Shang as pesquisas apontam para a existência de uma realeza palaciana, pautada em um poder organizado por reis e cuja sucessão era garantida dentro do clã, em caráter hereditário.

As dimensões do espaço chinês fomentaram uma transformação deste sistema, incapaz de administrar vastas extensões de terra. Com a vinda dos Zhou, no séc. -12, o poder se reestrutura no sistema Fengjian - que anacronicamente classificamos como "feudalismo", embora possua muitas de suas características - estabelecendo uma monarquia central cujo poder encontrava-se, porém, fracionado em diversos reinos. A autonomia destes reis e seus palácios era suficiente para que os chineses não construíssem, ainda, a noção de um país. Acreditando fazer parte de uma mesma cultura, as variações regionais sobre costume, escrita, leis eram suficientes, no entanto, para que os chineses não desenvolvessem uma cosmovisão administrativa de sua própria civilização.

Como o mesmo poder encontrava-se nas mãos dos clãs dominantes, não havia espaço para o que entendemos, aqui, como uma ação política por parte da população. As revoltas camponesas eram geradas pela falência da produção, fome ou pobreza - dificilmente contestava-se o regime, apenas sua eficiência. Tal mentalidade nos faz inferir, portanto, que a idéia central deste sistema, desde antiguidade, constitui-se numa relação contratual e moral, longe de perfazer uma teoria devidamente organizada.

O Mandato Celeste
Foi no século -6, pois, que o onipresente Confúcio dedicou-se a investigar, interpretar e propor o cerne de uma teoria "política" para a civilização chinesa. Indo além, o mestre propunha que suas observações não se aplicavam somente ao presente, mas provinham justamente de uma longa tradição estabelecida, a qual sua proposta de conservação e revigoramento se aplicava.

O que Confúcio afirmava é que o império existia desde a época Xia, e possuía algo em torno de 2000 a 3000 anos de existência; suas formas administrativas modificaram-se conforme a necessidade, pois imperadores como Yu, por exemplo, moravam em cabanas (!) e tinham uma vida extremamente simples; que o poder de administrar a terra provinha do Céu, e daí ser chamado Mandato Celeste (Tian Ming); e que esta razão cosmológica defendia uma articulação (nos moldes da oposição complementar) de vários binômios, tais como "homem e natureza", "indivíduo e família", "família e Estado", etc. na formação de uma escala hierárquica e funcional da sociedade. Novamente, a interpretação do sistema administrativo não pressupunha uma "ação política" por parte do povo; cabia ao governo organizar, ordenar e atender reclamações pelos canais corretos, fazendo a sociedade funcionar por meio dos compromissos pessoais, sociais e econômicos.

Em primeiro lugar, porém, devemos compreender o que Confúcio queria dizer com este Mandato do Céu; o Céu, aqui, não é entendido como uma entidade pessoal ou um deus em particular, mas como uma razão ecológica de existência. Estamos inseridos na natureza, e fazemos parte de seu funcionamento. Para mantermos a ordem e harmonia (He), é necessário que os seres humanos encontrem seus papéis na vida cotidiana e na existência. Administrar este complexo sistema impedido seus excessos, executando a lei e interferindo nas calamidades é atributo de um ser, portanto, que é escolhido pela natureza para estar no poder - o filho do céu, ou imperador (Di). Ele deve definir e aplicar os atributos governamentais, morais e virtuosos que mantém a conexão equilibrada com a natureza. A perda desta conexão implica nos excessos ou ausências, que fomentam as catástrofes naturais, e por conseqüência, a perda do Mandato. Um governante não se encontra preparado para realizar seu papel apenas por ter nascido no momento certo; mediante um grande esforço intelectual e ético ele alcança esta capacidade, e recebe em troca a ordem e a grande paz (Taiping).

As implicações da proposta confucionista foram recebidas de forma diferenciada pelos governantes da época; todos concordaram com a ancestralidade de seus direitos, poderes e atribuições. No entanto, a grande maioria detestou as obrigações, os discursos moralistas e a necessidade de retificar-se para manter o equilíbrio. Por causa disso, Confúcio foi perseguido; séculos depois, a sucessão de crises mostrou que a harmonia havia se tornado impossível, e o mestre foi tido como vidente.

A Teoria do Poder Imperial
No caos dos Estados Combatentes, as teorias de governo desdobraram-se, existindo propostas daoístas, moístas e legistas. Esta última tornou-se extremamente atraente para o Estado de Qin, em função de seu discurso centralizador e unificador. Os legistas entendiam a razão de governo como forma de por uma ordem marcial no mundo; para isso, o recurso simples das leis, e o monopólio econômico e da violência bastavam para estimular as relações produtivas e inibir o crime e a desarmonia. Por outro lado, esta proposta entendia que era necessário um rompimento com passado para a instauração desta nova forma administrativa, sem o que o vício dos antigos regimes - para eles representados em grande parte por Confúcio - repetir-se-ia indefinidamente.

O Legismo compreendia o próprio ser humano como ator das questões ditas políticas, excluindo a idéia de que o Céu determinava a existência das casas dinásticas. Para a manutenção do poder bastava uma força militar poderosa, comandada diretamente pelo príncipe. Com estas diretrizes Qin conseguiu, paulatinamente, sair de uma posição inferior diante dos outros reinos e tornar-se a nova casa imperial do país.

As conquistas administrativas de Qin fizeram o seu primeiro imperador acreditar que estava reinventando a sua civilização - motivo pelo qual ele se auto denominou o "Primeiro imperador de Qin", ou Qinshi Huangdi, como se nunca houvera antes nenhum outro soberano na China como ele.

Se a estrutura administrativa mostrou-se relativamente eficaz, ela foi incapaz de inibir as revoltas que se sucederam após a morte de Qinshi. Tais movimentos foram causados por uma profunda insatisfação com a repressão social e a espoliação econômica, que havia afastado os bandidos das estradas mas também, matou e prendeu milhares de camponeses em corvéias infindáveis promovidas pelo governo. Mencio, um dos discípulos posteriores de Confúcio, afirmou - desenvolvendo um dos aspectos já propostos pelo antigo mestre - que a função de um governo é o bem estar do povo; e se ele não for capaz de cumpri-la, perde inevitavelmente o mandato celeste pelas mãos do mesmo povo. Esta concepção ressoaria profundamente na continuidade do império chinês.

O Império Han
Ao assumirem o poder, os Han decidiram que seria melhor manter parte da estrutura administrativa desenvolvida pelos Qin, posto sua eficácia comprovada. No entanto, medidas atenuantes como a diminuição dos impostos, redução de punições, abolição de crimes e estímulo ao livre pensamento fizeram desta época um momento próspero da história chinesa.

Os Han perceberam que poderiam aprimorar ainda mais esta nova estrutura, resgatando conceitos das doutrinas confucionista e daoísta. Tal proposta aparece num pouco conhecido texto, o Xinyu, de Lujia (séc -3), que define um novo papel para a arte de governar. Lujia estava presente na ascensão do primeiro imperador Han, Liu Bang, e tornou-se seu principal conselheiro. Seu entendimento sobre o império consistia em renovar a idéia do Mandato Celeste (já que as conclusões de Confúcio e Mencio se mostraram acertadas), reformando o sistema administrativo dentro de novos critérios. Um deles, que viria a ser a mola mestra da sociedade chinesa no futuro, baseava-se na antiga idéia confucionista de escolher os funcionários públicos mediante exames seletivos, colocando nos cargos os mais capazes e competentes. Com isso, a China desenvolvia o primeiro sistema de concurso em todo mundo, e tal proposta tornaria-se o meio principal de ascensão dentro do governo.

Se a questão administrativa ficava resolvida por esse expediente, restava ao governo, no entanto, organizar o sistema dentro de critérios éticos que mantivessem o seu poder e, ao mesmo tempo, não se mostrassem repressivos como foram aqueles empregados por Qin. O Mandato Celeste reforçava a centralização do poder, mas esse deveria ser diluído pelas administrações locais. Cabia ao Estado o papel de intervir quando necessário, e promover em larga escala a educação e os bons costumes; por outro, o imperador deveria interferir o mínimo possível no cotidiano e nas atividades econômicas, deixando o povo livre de obrigações desnecessárias - aqui, Lujia utiliza inclusive o conceito de "wuwei" (Não ação) empregado pelos daoístas.

Tais fusões fizeram do Estado chinês uma máquina funcional equilibrada, razoavelmente eficiente e com funcionários, em geral, capacitados. Os meios de ação política do povo em geral continuavam baseados na petição, no campo jurídico e na mobilização ocasional; no entanto, a abertura dos concursos públicos promoveu um aumento substancial na mobilidade social, distribuindo a participação das classes sociais no poder, e a ação direta dos funcionários nas províncias e localidades melhorou a qualidade da administração pública.

A estrutura de sucessão
Confúcio entendia que a melhor forma de sucessão era a meritória, e não hereditária. Durante toda a história imperial da China discutiu-se sobre as vantagens dos dois sistemas, embora moralmente o sistema meritório parecesse o mais correto. No entanto, a grande ênfase dada à família criava uma contradição - afinal, quem seria mais confiável do que os próprios filhos, netos ou sobrinhos?

Não houve uma solução final para isso, embora a tendência fosse dos imperadores nomearem um de seus filhos como sucessores - isso era necessário, já que o filho mais velho não herdava automaticamente o cargo. A fórmula usual encontrada foi a de um soberano ter vários filhos, e entre eles "designar o mais sábio". Cumpriam-se assim os dois requisitos, não desautorizando o sistema de seleção meritória.

Eunucos
Um grupo que se associou intimamente ao poder foi o dos eunucos, homens que se castravam para obter cargos de confiança no governo, fosse como conselheiros, assistentes, auxiliares, etc. A lógica por trás desta prática era de que os eunucos, incapazes de gerar descendentes, não poderiam então fazer uso de suas riquezas e bens, senão em vida, e teriam pouco interesse no luxo. Além disso, a privação do desejo sexual diminuiria ainda mais suas intenções de poder dominador, colocando-os como servis e em posição de inferioridade.

Os letrados odiavam profundamente os eunucos, pois os tinham como fofoqueiros, intrigadores e ignorantes. De fato, alguém que se privava de sua masculinidade e esperava obter poder pelo meio mais fácil era visto como um ser repugnante e desprezível, aproveitador e incompetente. No entanto, os eunucos bailavam em torno dos haréns imperiais, das concubinas, das famílias reais, e serviam numa ampla gama de serviços domésticos e administrativos que os tornavam grandes intercessores junto aos poderosos. "Escreva uma petição ou pague um eunuco", dizia um adágio antigo. Desde a época Han, os eunucos se transformaram, num órgão parasitário do poder.

Mesmo assim, os governos não abriram mão deles. Sendo difícil o uso de um homem ou mulher em tarefas de confiança íntima, os eunucos conquistaram um espaço no poder que se manteve até o fim do império. Ser eunuco se constituía no meio mais rápido de ascensão dentro do governo e na sociedade, e a habilidade da intriga e da espionagem eram consideradas um complemento ideal. Por outro lado, a servidão era o seu destino, e sem um patrão, um eunuco dificilmente encontrava uma posição social.

Organização administrativa

Nas "Histórias modelo", iniciadas por Sima Qian e que contam a cronologia das dinastias, encontram-se tratados sobre a estrutura de governo das dinastias, fornecendo-nos um quadro amplo destas instituições, bem como as mudanças nelas efetuadas.

Sabemos, por estas fontes, que na época Han, por exemplo, o imperador era auxiliado, diretamente, por 3 conselheiros principais e 9 ministros. Os 3 conselheiros eram o chanceler (Zheng Xiang), o secretário imperial (Yushi Dafu) e o grande general (Tai Wei), e cabia-lhes, respectivamente, coordenar os assuntos de Estados externos, internos e militares. Já os ministros possuíam atribuições que incluíam desde a tesouraria e a guarda palaciana até mesmo o cuidado com as estrebarias imperiais. Por meio destes ministros, se faziam executar as ordens junto as administrações locais - governadores, prefeitos e postos militares, recebendo deles relatórios periódicos.

No período Tang, com a evolução dos sistemas de concurso público, um conselho especial foi criado para cuidar deste assunto, bem como distribuir os funcionários em suas funções e cargos. O sistema aumentou o número de cargos, mas manteve, em essência, o mesmo funcionamento. No período Song, porém, as dimensões do governo forçaram a formação de um conselho de Estado no lugar dos 3 conselheiros imperiais. Este conselho, composto por 5 a 9 pessoas, era definido diretamente pelo imperador, mas provinha, em geral, de ministros experimentados. As máquinas comandadas pelos ministérios foi aperfeiçoada, mas também ficou mais pesada, sendo necessário a formação de um conselho fiscal interno.

Note-se que, até a chegada dos europeus, durante o período Ming, os chineses não contavam com um sistema diplomático claramente definido, sendo recebidos pela chancelaria imperial sob a designação de visitantes ou tributários. O sistema chinês entendia - com certa razão - ser único no mundo, mas a miopia das ultimas dinastias solapou o funcionamento desta estrutura.

O Concurso Público
O fenômeno dos concursos públicos foi tão intenso que os chineses chegaram mesmo a criar um deus que auxiliava os estudantes. A oportunidade de um cargo seguro, bem provido e de renome acalentava o sonho de muitas famílias, e um estudante aprovado tornava-se respeitado pelos seus familiares e mesmo na cidade de origem, quando estas eram pequenas.

Os conhecimentos exigidos baseavam-se numa análise das obras confucionistas, e se pretendia que um bom intelectual era, consequentemente, um bom administrador. Os exames eram feitos por especialidades: Livro da História (Shujing), Poesia (Shijing), Mutaçoes (Yijing), etc, e pedia-se ao candidato que fizesse um ensaio sobre determinado tema escolhido pela comissão julgadora. Tais comissões, organizadas entre os letrados imperiais, eram absolutas e incontestáveis.

Após o concurso, os funcionários eram designados, de acordo com sua colocação, para um determinado posto e função onde eram necessários. Como eram realizados de 3 em 3 anos, havia uma renovação de quadros, contando as substituições por aposentadoria ou abandono. Os melhores colocados podiam ser chamados para funções especiais ou escolherem os lugares em que desejavam servir. Não raro, a satisfação de alguns jovens era retornar a Terra natal com uma boa colocação. Modificações de colocação regional podiam ser feitas mediante acordos entre os aprovados, mediante permissão dos superiores.

Este sistema funcionou com bastante eficiência até a época Ming, quando começou a degenerar num meio político de fortalecimento de poder e repressão. Na época Qing, a manutenção do poder nas mãos dos Manchus praticamente destruiu a capacidade operativa dos funcionários, ainda que os concursos ocorressem. Diante das ameaças externas que viriam, estes servidores mostrariam-se incapazes de manter o poder e o governo funcionando.

Mandarins
A famosa figura do Mandarim é uma criação recente na história da China, e pode-se dizer que ela toma corpo, principalmente, durante o período Qing. O termo "mandarim" não existe em chinês, sendo uma evolução de "mandar", palavra cunhada pelos portugueses. Assim, mandarim equivale a "mandatário", alguém com poderes especiais.

Esta denominação equivale a um grupo especial de funcionários que detinham uma vasta extensão de poderes (jurídico, militar, executivo, econômico), agregando em nível local a representatividade legítima do imperador. Muitas vezes a vulgarização do termo criou confusão entre os funcionários do sistema de concursos e aqueles escolhidos diretamente pelos manchus para executarem funções especiais. Para entendermos como isso funcionava, devemos nos permitir uma analogia; imaginem, nos dias de hoje, um funcionário de carreira, que estudou com afinco durante anos, vem galgando postos por mérito ou por tempo de serviço, mas se encontra impedido de assumir o mais alto cargo de sua autarquia porque a nomeação para este último deve-se a um critério político, tal como a escolha feita pelo presidente para a chefia de um ministério. O que aconteceu com o dito "mandarinato" foi algo semelhante. Os manchus mantiveram o funcionalismo concursado, mas colocavam nos cargos de chefia (os mandarins) elementos de sua própria etnia, quebrando a estrutura de poder e a hierarquia. Além disso, a fusão dos poderes em suas mãos os permitia interferir em todas as repartições, prefeituras ou quartéis sobre sua jurisdição.

Assim sendo, era difícil para um chinês alçar um cargo de poder durante o período Manchu. Os portugueses acompanharam o período de transição entre os Ming e os Qing, captando a essência do problema. No entanto, como foi dito, o termo vulgarizou-se, e no século 19 costumava-se empregar a palavra para qualquer funcionário (concursado ou não) que tivesse algum tipo de poder, chefia ou influencia junto ao governo.

Não é preciso dizer que a ingerência manchu tornou o sistema público difícil de administrar. Salvo o raro talento de alguns oficiais, em geral os nomeados criavam atrito com seus subordinados concursados, que respondiam de forma cínica ou corrupta ao desmando. Na crônica portuguesa do séc. 19 "Ta si yang guo", a análise das forças armadas chinesas mostra, por exemplo, um nível de abandono e incompetência inacreditável para esta instituição.

A crise do sistema
Salvo uma frustrada tentativa de reforma em 1898, conhecida como "reforma dos 100 dias", promovida por um jovem imperador que foi logo derrubado, o império chinês agonizou, junto com sua maquina burocrática, durante longos anos. Nesta época o regime de concursos também foi abolido, mas nenhuma solução consistente foi proposta para substituí-la (enquanto isso, o ocidente adotou este regime de seleção, que posteriormente serviria para o ingresso no governo e nas universidades). O advento da República pretendeu dar algum tipo de ordem para a questão, elaborando planos educativos e governamentais inspirados em modelos europeus, mas praticamente sem sucesso. Novamente, foi à chegada dos comunistas ao poder, em 1949, que pos ordem na situação.

O regime comunista
O regime proposto por Maozedong absorveu a idéia da República, mas nos moldes do regime de partido único. Na prática, isso significou a diluição da participação política do povo, mas fomentou o seu acesso as instancias públicas. Novamente, não se idealizou na China continental um sistema eleitoral nos moldes das democracias ocidentais, substituíndo-o por um governo onde os funcionários graduados participavam de uma assembléia - o congresso chinês - no qual desempenhavam os papéis executivo e legislativo. O primeiro ministro, eleito neste congresso, desempenha o papel de governante, e o presidente, de representante do país.

Ao contrário do que se imagina, Mao nunca foi, porém, detentor de um poder absoluto e incontestável. Em 1966 ele chegou a ser afastado do poder, só retomando-o por força de uma ação popular iniciada pela Revolução Cultural. Pela primeira vez, ocorria no mundo comunista uma revolução dentro de outra - na visão chinesa, uma tentativa de evitar o revisionismo e manter a estrutura política e ideológica vigente. No entanto, tão logo Mao morre em 1976, a linha moderada assume o poder, inicia uma "desmaozição" do governo e enseja práticas econômicas e políticas mais flexíveis, proporcionando uma nova prosperidade para o país. Deng Xiaoping, artífice destas reformas e personalidade carismática, foi preso e resgatado várias vezes durante o regime maoísta, mas não criticou diretamente Mao ao assumir o poder - dedicou-se a indicar os excessos e erros do regime como um todo, mas não buscou quebrar a aura mítica do grande timoneiro.

Os dias de hoje encontram um partido que conserva muito, ainda, da antiga visão "política" chinesa. Um regime burocrático, pesado, cuidadoso, em vários aspectos repressor mas também, preocupado com o bem estar da população. Seja em discurso - mas com uma mobilização prática que impressiona os idealistas - o atual regime chinês entende que a prosperidade comum e o enriquecimento da sociedade beneficia a nação como um todo. A concepção parece extremamente simplista, mas tem dado provas de eficácia. O outro lado desta flexibilização está na noção de liberdade individual; ela ocorrerá, tal como desejam alguns especialistas ocidentais? Tal conjectura é muito pouco plausível, numa nação que ignorou a idéia de democracia e onde o conceito de ordem se sobrepõe ao da individualidade. A China de hoje tem uma criminalidade muito menor - em termos numéricos - do que os EUA, por exemplo. A manifestação de 1989 na praça Tiananmen também foi um fracasso em termos representativos, e a escalada de violência tão propalada pela mídia ocidental esteve muito aquém do que ocorreu de fato. Uma visão de mundo, estruturada no comunitarismo, entende que a execução do poder envolve rigidez, dada a extensão e o frágil equilíbrio da sociedade com o meio.

Assim sendo, o comunismo parece não ter apagado os vestígios da mentalidade imperial, embora tenha assumido ideologicamente uma série de compromissos com o bem estar do povo. Alguns especialistas gostam de dizer que o império chinês nunca desapareceu, na verdade, e que os governantes comunistas comportam-se como tal. Tal visão é um tanto exagerada, mas guarda um sentido de verdade; os chineses não pensam, ainda, em reformular por completo a sua noção política de mundo. Preferem os governos que pouco se metem em suas vidas, mas põe ordem nas ruas. Deixando as pessoas trabalharem, todos cuidarão de sua parte. Vagos, estes conceitos mascaram o antigo anseio de um governo paternalista, como proposto por Confúcio, que garanta as condições necessárias para a sociedade evoluir. Uma vez, no Lunyu, um discípulo de Confúcio lhe perguntou qual eram as três coisas fundamentais para um reino ser bem sucedido. O mestre lhe respondeu: "comida na mesa, um bom exército e confiança nos governantes". O Discípulo continuou a perguntar-lhe; se uma dessas coisas fosse tirada, qual seria a menos danosa? "O exército", disse o mestre; com barriga cheia e confiança nos governantes, as pessoas lutarão até a morte por seus país. "E se mais alguma coisa lhes fosse tirada, o que seria menos prejudicial?", continuou o discípulo. "A comida", respondeu Confúcio para o atônito aluno; "sem confiança nos governantes não se pode fazer nada. Se você confiar neles, pode lutar e passar fome pelo seu país; mas se não confia, pode ter comida na mesa e segurança nas ruas que você nunca se sentirá seguro para empreender o que quer que seja". Simples, este é um norte para os governantes de todos os tempos.

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