Tudo está para ser desperto


A estética chinesa explica-se, como tudo que vimos até aqui, pelas antigas cosmovisões chinesas. Tudo está prestes a ser manifesto - o que devemos é encontrar o meio para realizar esta operação, e o autor da proeza é o cientista, o sábio ou o artista. Um determinado tipo de matéria - madeira, barro, metal ou pedra - tem sua propensão (shi) e só pode ser trabalhado de um modo específico; podemos entalhar a madeira, mas não podemos derretê-la, por exemplo; o barro pode ser moldado, mas não tem a resistência do metal; e assim sucessivamente, demonstrando que cada tipo de obra tem um Li (princípio) subjacente o elemento empregado em sua constituição. O artista, pois, é aquele que descobre como manifestar o Li de uma obra de arte neste mundo, o mundo de Qi (matéria); sua genialidade e técnica na execução lhe dão, por conseguinte, a alcunha de hábil, mestre ou de meramente repetidor. Tudo já está contido no objeto que se irá trabalhar. Uma pedra só pode ser talhada de acordo com seus veios; isso significa que o artista visualiza, antes de trabalhá-la, o que ela se tornará, e sua perfeição decorre da aproximação entre a imagem física e a imagem mental concebida a priori. A estética chinesa é dominada, portanto, pela idéia de uma subjetividade aparente - ainda que escondido, o belo será revelado, e os sinais do que ele virá a ser já estão contidos na matéria bruta.

As Técnicas
As técnicas artísticas acompanham a tecnologia desde a antiguidade, e o artista chinês se confunde com o pesquisador. O trabalho em bronze, existente desde a época Shang, é um exemplo disso; os experimentos realizados levaram os chineses, desde cedo, a terem um domínio excepcional sobre a fundição, as técnicas decorativas e mesmo do trabalho em moldes, que permitiam a produção em massa de um mesmo tipo de objeto. O que se vê, neste caso, é a ação do artesão de metais e do artista se complementando, estimulando um ao outro na busca do aprimoramento. Cedo, os chineses aprenderiam a lidar com o ferro, com as camadas inoxidantes e finalmente com o aço, séculos antes da Europa.

Estes mesmos processos se aplicaram ao trabalho de olaria. Veja-se as conquistas chinesas com cerâmica, porcelana, vitrificação e o uso de pigmentos. Desde os guerreiros de terracota de Qin - cujas partes foram, em sua maioria, executadas em moldes - até as peças únicas produzidas pelo artista, o campo dos ceramistas atingiu níveis diversos de realização, sempre acompanhados da descoberta. Os europeus ficaram fascinados pela capacidade chinesa em montar jogos de porcelanas com o mesmo desenho estampado; quanto aos chineses, a realização da subjetividade aparente se dava no singular, e sua admiração se voltava, sempre, para as peças únicas.

Por outro lado, a escrita chinesa, ideográfica, transformou o pincel em seu principal instrumento de execução. O bi (pincel de pelo) ganha importância tremenda nas formas expressivas chinesas, sendo empregado desde o cotidiano, no ato de escrever, à pintura de grandes dimensões, e se constitui numa técnica a parte dentro desta civilização.

Arte, tempo e dinastia

As dinastias chinesas compreenderam o papel expressivo da arte, e buscaram se representar por meio de símbolos ou tendências estilísticas que marcassem o seu período. Os Shang criaram os vasos trípodas de bronze, que repetiam incessantemente o motivo do Taotie, um monstro mitológico cuja aparição nos bronzes os distinguia como uma marca cultural; os Zhou diversificaram o uso do mesmo bronze, mas suas orquestras de sinos musicais (de metal ou pedra) são um distintivo do período; Qin fez seus trabalhos em barro; Han divulgou a seda, a laca e a pedraria...e poderíamos continuar a lista por todas os períodos dinásticos. Isso fica ainda mais evidente quando vemos, por exemplo, o contraste entre a cerâmica tricolor da época Tang, que desaparece para dar lugar a porcelana monocromática, simples e craquelada do período Song. Todas estas passagens artísticas são, também, passagens de tempo e de ideologias.

Mesmo na época de Maozedong, momento recente da história, o governo comunista também criou sua marca estética, a pintura realista. Abominando as "invencionices" do que eles consideravam "surrealismo burguês", o período da revolução foi governado pela busca em expressar a realidade de forma "autentica e temática". Até mesmo um projeto de arte proletária foi criado, estimulando camponeses e operários a pintarem, esculpirem ou fazerem teatro popular. Somente agora, no momento das reformas chinesas, a arte está seguindo outros caminhos - o que significa a mudança do olhar sobre o mesmo real.

Mas o que se manifesta?
Mas, se há um Li (princípio) presente na matéria bruta que virá a ser a obra de arte, então porque ele não surge tal como deveria ser? Em função deste ser o mundo da mutação, em que ela se manifesta.

O artista é quem faz o "parto" da obra de arte, mas segundo uma concepção que lhe é própria. Certos expedientes têm que ser seguidos; como vimos, a matéria tem propensões que dirigem a sua forma de manifestar-se, mas cabe ao mestre interpretar esta subjetividade aparente e dar-lhe um sentido. Logo, quando a obra vem a tona, ela pode ser original, inventiva, quanto pode ser malfeita ou mal acabada. Podemos "prender" o Li dentro de um estilo de época, e a beleza de uma pintura ou vaso será tão mais duradoura quanto, teoricamente, aproximar-se do que ela realmente "é" (ou, deveria ser...). Disso resulta a inevitável contradição; então, como saber o que é a perfeição se não podemos atingí-la? Se toda manifestação de uma obra de arte é incompleta e imperfeita, como podemos saber então que há algo "perfeito"? Nesta hora, a resposta chinesa circula dentro de sua própria lógica.

Admitindo que há o princípio (Li), o máximo que podemos fazer aqui, no mundo material, é uma leitura dele - mas não sua compreensão absoluta. Afinal, o pensamento categórico chinês é uma lista de analogias; o que define um vaso, por exemplo, é sua função, forma, material, etc...isso gera uma diversidade tão grande que o conjunto de coisas que vem a definir o que é um "vaso" torna-se mais um guia estético ou funcional do que, propriamente, a existência da idéia de um "vaso absoluto ou perfeito". Melhor seria dizer, portanto, que as essências da matéria bruta definem uma gama de possibilidades que uma coisa pode vir-à-ser, e no mundo da matéria, ela "estará" de um tal modo adequado ao seu princípio. Isso é um aspecto da perfeição, que garante a continuidade da obra.

As regras estéticas
Foi Xiehe (+ 479 + 502) quem lançou, no Guhua Pinlu (Biografias de pintores antigos), as regras fundamentais para alcançar um nível da habilidade e execução satisfatório para a obra de arte. Embora seus comentários se destinassem a pintura, o modelo estético por ele criado encontrou ressonância em todos os outros campos artísticos.

As regras de Xiehe são:

- Ritmo e vitalidade: assim como o universo, que tem suas leis imutáveis, a obra de arte tem um ritmo de criação próprio. Ela tem tempo certo para se realizar, não pode ser atrasada ou adiantada. A pincelada, o torno do oleiro, a fundição do bronze, todos exigem uma quantidade específica de energia para manifestarem uma peça, um modo pelo qual se molda a matéria. Não seguir o ritmo significa perder matérias-primas e idéias, manifestando apenas aspectos do Li de forma feia e distante. Sobre isso, disse Hanzhuo (XI –XII A.D.); “numa pintura, preste atenção primeiro ao ritmo, depois preocupe-se com a realidade das formas. Pare, então, e reflita; se você não tiver idéia de como a obra irá se desenvolver, ou se sua preocupação for com detalhes trabalhosos, você já terá perdido o ritmo”.

- Padrão de execução: para se pintar, é preciso conhecer o pincel, as tintas e o verniz; para fundir o bronze, é preciso conhecer os metais, o forno e as ligas. A construção de uma obra de arte exige o domínio da técnica e sua aplicação constante. Dois métodos diferentes não podem ser utilizados para fazer um mesmo vaso ou quadro, pois a técnica se ajusta a propensão do Li presente na matéria-prima que se trabalha.

- Semelhança: retratar uma paisagem exige saber como é essa paisagem. No entanto, a reprodução nunca será idêntica ao original. É o artista que precisa dominar, portanto, a capacidade de aproximar-se ou afastar-se da realidade, utilizando este recurso para imprimir mais energia na realização de uma idéia. Su Dongpo (1036-1101) comentou o assunto, afirmando categoricamente: “quem julga uma pintura apenas pela fidelidade aos objetos fala como um ignorante imaturo”.

- Cor e Detalhamento: “observe um lado da montanha e você a compreenderá”, dizia uma antiga frase chinesa. Compreendendo os detalhes, aprendendo a dominar as cores, o artista percebe que uma montanha é, na verdade, um conjunto de ângulos, cores, tons, brilhos, reflexos e sombras que estão muito além do que as primeiras impressões mentais registram. Cores e detalhes representam as manifestações específicas da energia Qi, e seu uso aproxima (ou distancia) o artista do Li que ele deseja manifestar.

- Composição: compor é criar o ambiente propício à imagem, à transformação da matéria. Uma pintura deve ser harmônica: como transmitir, por exemplo, uma idéia de calma e paz retratando uma batalha? Como fundir e montar um vaso de bronze se os moldes não encaixarem, ou se a liga estiver errada? Compor é, antes de tudo, harmonizar todos os elementos – ritmo, padrão, semelhança, detalhes e cores - para se obter o máximo efeito possível, atingindo o Li da obra de arte. Se bem sucedido, o artista conseguirá extrair da peça a beleza imortal, o Li verdadeiro, fazendo-a ser admirada por qualquer ser humano que possa vislumbrá-la.

- Modelos e variações: esta última regra refere-se ao trabalho de aprimoramento do artista. Um discípulo deve adquirir experiência com os mestres, imitar suas obras, aprender tentando realizar cópias e dominando suas técnicas. Os Mestres já trilharam o caminho que o aprendiz está iniciando. São um manancial de experiência na transformação do vazio em beleza, verdadeiros modelos do que é ser artista – alguém que aprendeu a dominar a natureza, a captar e desvendar o que está escondido, ou como disse o mestre Confúcio “um sábio que, sacudindo a poeira do antigo, revelou o novo”.

Seja uma interpretação do passado, ou a transposição de um modo pedagógico antigo de estudar para o campo da arte, o fato é que o pensamento deste artista consolidou os fundamentos estéticos da arte chinesa, e doravante a explicação dos sentidos, motivos ou técnicas teriam sempre como alicerce a sua metodologia de análise e trabalho.

Pintura e Caligrafia
A Pintura tornou-se a área consagrada da arte chinesa. Os pintores, igualmente estudiosos, analisaram e desdobraram os conceitos da estética para os campos da caligrafia, poesia e música. Não raro vemos uma pintura dedicada a uma poesia ou vice-versa. Provavelmente esta condição específica da pintura se deu em função do exercício que lhe era própria, a inventividade. As pinturas, sendo basicamente únicas, constituem o espaço privilegiado para manifestar o Li no vazio da tela. Mesmo as cópias de pinturas exigem uma habilidade muito grande (em função disso, os melhores copistas eram bastante admirados na China, e se entendia que eles estavam a um passo de tornarem-se grandes artistas). Uma pequena história ilustra a adoração que os chineses tinham na beleza da pintura, e no seu potencial de manifestação:

Um artista de grande renome pintara quatro dragões numa parede. Nada faltava aos dragões: possuíam oitenta e uma vértebras, divididas em nove séries de nove, número este altamente benéfico. Ostentavam também em longos bigodes de fogo de cada lado das faces e, no cimo da cabeça, o poh shan, sem o qual não poderiam voar pelos céus. Mas o pintor não lhes pusera os olhos. Perguntaram-lhe o motivo de tal omissão.
Disse ele, suspirando:
- Já que o desejais...
Tomando um pincel, traçou os olhos dos monstros, que logo eriçaram o seu poh shan, saltaram da parede, franquearam a janela e desapareceram no céu.
(Wenchilu, Coleção de narrativas fantásticas, de Yudi)


A Caligrafia desfruta, neste ínterim, de um prestígio desconhecido no Ocidente. O ato de escrever um ideograma deixa de ser a mera representação de uma palavra (dentro da escrita regular) para tornar-se o modo de expressão da idéia contida no mesmo símbolo da palavra. Disso decorre que alguns exemplares caligráficos supostamente contém os sentimentos do autor, da expressão única de um momento; outros alcançam um nível de distorção que só podem ser lidos por um especialista, ou pelo próprio artista que os escreveu. Alguns calígrafos, usualmente pintores (e o mesmo, ao contrário), encontraram a redenção ao criar um estilo, posteriormente copiado por discípulos ou praticantes da arte. A caligrafia tornou-se um campo particular da arte chinesa, consagrado à manifestação mais pura e simples da simbologia escrita.

Talvez por estes motivos, pintura e caligrafia firmaram-se também como setores de elite na estética chinesa. Seu contraponto é representado pela cerâmica e pelo artesanato, igualmente ricos, mas que não foram capazes de produzirem suas próprias teorias interpretativas. Além disso, o aspecto prático e necessário da olaria, marcenaria e fundição no cotidiano diminuíam, por vezes, a sua apreciação estética por parte dos críticos.

Cerâmica e porcelana
Mesmo sendo um domínio de objetos simples, a cerâmica chinesa construiu, para si, uma tradição de beleza, requinte e preciosidade. O oleiro transforma-se também num artista; mesmo que preso a sua oficina, ele não capta as paisagens externas como o pintor, nem teoriza sobre elas, mas se sintoniza com o gosto dos experts e realiza obras únicas. A par da produção em escala, desde a antiguidade, os chineses gostam das cerâmicas únicas, e das esculturas impossíveis de serem reproduzidas.

O vaso, em si, se transforma numa peça decorativa cujo poder reside, muitas vezes, em simplicidade e técnica esmerada. Quem conhece um arranjo de Feng Shui ou mesmo do Zen irá perceber que, muitas vezes, uma parede inteira do cômodo é dedicada a um prato, vaso ou escultura - neste momento, ele serve também de foco para a meditação, de justaposição entre o vazio (parede) e matéria sólida (objeto).

Além disso, cabe aqui a experimentação que estes artistas realizaram com seus materiais, criando a expressão máxima e acabada da olaria que é a porcelana. Mistura do barro com o gaolin (pasta de sílica), e aquecida em temperaturas longamente testadas e conhecidas por eles (e pelos metalúrgicos), a porcelana consegue efeitos indecifráveis, somente conhecidas na Europa em torno do século 18 - ao menos 11 séculos depois de ser produzida na China. A verdade porcelana chinesa conquistou este espaço de nobreza na apreciação estética, ainda que seus artistas sejam desconhecidos. Com a pintura, ela é o outro grande sustentáculo da arte chinesa, tornando periféricos os outros segmentos, e alcançando grandes valores de mercado até os dias de hoje.

Música
Quanto à música, esta possui sua própria dimensão no imaginário chinês, sendo objeto de estudo das filosofias e ciências chinesas. Desde Confúcio, a música não é somente a sonoridade, ou expressividade melódica; ela alcança o íntimo do ser de uma tal maneira que altera seus sentimentos e revela suas intenções, sendo um instrumento fundamental de reflexão.

Várias teorias foram escritas sobre isso, e a capacidade da música atravessar o consciente e o inconsciente intrigava os pensadores. O próprio Confúcio dedicou-lha todo um ensaio, que se perdeu; dele sobram fragmentos, presentes no Liji (Manual dos Rituais), que mostram a amplitude de seu poder:

Música é a forma segundo a qual se produzem os sons, que brotam do coração humano quando tocado pelo mundo exterior. Assim, quando nele é tocada a fibra da tristeza, são amargos e tristes os sons produzidos; quando é tocada a fibra da satisfação, são langorosos e lentos os sons produzidos; quando é tocada a fibra da alegria, são brilhantes e expansivos os sons produzidos; quando é tocada a fibra da ira, são ásperos e duros os sons produzidos; quando é tocada a fibra da piedade, são simples e claros os sons produzidos; quando é tocada a fibra do amor, são gentis e doces os sons produzidos. Estas seis espécies de emoção não são normais: são estados produzidos pelo toque do mundo exterior. Por isso os reis da Antigüidade preocupavam-se com as coisas capazes de afetar o coração humano: assim buscavam eles orientar os ideais e as aspirações do povo por meio da li, estabelecer a harmonia dos sons por meio da música, regular a conduta social por meio do bom governo, e evitar a imoralidade por meio do castigo. Li, música, e castigo, bem como o governo, têm um objetivo comum - promover o equilíbrio nos corações humanos e realizar os princípios da ordem política.

A música brota do coração humano. Quando suscitadas, as emoções exprimem-se por sons, os quais, ao assumirem forma definida, constituem a música. Por isso a música de uma nação próspera e feliz é tranqüila e alegre, e o governo é ordeiro; a música de uma nação atrapalhada manifesta insatisfação e raiva, e o governo é caótico; e a música de uma nação destruída mostra apenas tristeza e saudade do passado, e o povo é infeliz. Eis como sempre encontramos governo e música em estreita relação.

A clave de C (Dó) simboliza o rei; a clave de D (Ré) simboliza o ministro; a clave de E (Mi) simboliza o povo; a clave de G (Sol) simboliza os negócios do país; a clave de A (Lá) simboliza a natureza. Quando se harmonizam as cinco claves, não há sons discrepantes. Quando desafina a clave de C. a música perde o seu fundamento e o rei descura os próprios afazeres; quando desafina a clave de D, a música perde a sua gradação e os ministros prevaricam; quando desafina a clave de E, a música é triste e o povo sente-se desgraçado; quando desafina a clave de G, a música é fúnebre e os negócios do país complicam-se; quando desafina a clave de A, a música sugere perigo e o povo passa miséria. Quando todas as claves desafinam e se confundem, generaliza-se a discórdia e pouco mais viverá a nação.


Acreditava-se não só no poder da música em avaliar a cultura de Estados inteiros e de pessoas, mas também de alterar a consciência do indivíduo. A música era compreendida como um atributo cósmico, e na natureza ela se encontrava presente e manifesta nas coisas mínimas. Dong Zhongshu defendia, por exemplo, que a afinidade entre objetos e estados se dava como na ressonância musical:

Quando se verte água no solo, esta evita partes secas e procura as úmidas. Quando se põe fogo em um tronco, esse evita o molhado e queima as partes secas. Todas as coisas rechaçam o que é distinto e seguem o que é igual; por isso, quando dois qi são semelhantes, completam-se; quando são diferentes, repelem-se. A prova disto é muito clara: afinar instrumentos musicais. A nota Kung ou a Shang tocadas no alaúde serão respondidas por notas Kung ou Shang de outros instrumentos de corda. Soam por si mesmas. Do mesmo modo, as coisas bonitas chamam outras coisas da classe das bonitas, as repulsivas chama as repulsivas. Isto provém do modo complementar pelo qual respondem as coisas da mesma classe. As coisas chamam umas as outras, igual com igual, como um dragão que traz a chuva, um leque abana o calor, ou um lugar onde haja passado um exército estará cheio de fogueiras. As coisas, bonitas ou feias, têm todas a sua origem. Se crermos que constroem o destino, é porque nada conhecemos de sua origem. Não há nenhum sucesso que não dependa, em seu início, de algo anterior, a que responde por que pertence a sua mesma categoria, e por isso se move. Como se disse, quando se toca a nota Kung, outras cordas reverberam por si mesmas em ressonância complementar; se tratam de coisas comparáveis, afetadas de acordo com a classe a que pertencem. São movidas por um som que não tem forma visível, e quando os homens não vêem a forma acompanhando o movimento e a ação, descrevem o fenômeno como um "soar espontâneo". E onde quer que haja uma reação mútua sem nada visível para explicá-lo, descrevem o fenômeno como "espontâneo". Cada coisa está ligada mutuamente a outras, e muda quando as outras mudam.

Curiosamente, as teorias musicais chinesas estavam atreladas ao sistema yin-yang e do wujing. Os antigos acreditavam numa escala pentatonal (as outras duas notas eram tidas como variações de tom), e seus grupos instrumentais também eram outros. Cada nota estava ligada a um estado da matéria; os instrumentos, igualmente, classificavam-se por atributos, tais como a sua constituição. Para termos uma idéia, um sistema chinês antigo defendia que os instrumentos podiam ser divididos por "bambu, madeira, pedra,...", categorizando-o por material. Mas este não era o único.

Na China, a música nos oferece a possibilidade de testemunhar instrumentos e melodias milenares, que sobreviveram ao longo dos séculos graças às longas tradições e a sua beleza. Se as notas existem, falta então despertar a melodia e a composição. Tudo está para ser desperto, como em toda arte. Ainda hoje, podemos ver baladas ancestrais executadas por orquestras seculares, cujos instrumentos aparecem nas antigas pinturas, nos bonecos de barro das tumbas ou em livros. Uma ausência intrigante, porém, é a da pauta. Os chineses não criaram um sistema para superar esta questão, e as musicas eram ensinadas por um mestre, grande depositário das mesmas.

A música completa o ser humano, diziam os confucionistas. Quando da junção da idéia, palavra e melodia, a música supera a prosa e a poesia, e pode expressar-se mesmo sem uma letra cantada. Nas pantomimas, nas canções populares ou eruditas, na ópera, a música manifesta um domínio único. No Shijing (Tratado das Poesias), um dos mais antigos clássicos chineses, algumas letras são de canções, feitas para serem musicadas ou para serem cantadas durante a labuta. De alto a baixo, ela está presente na sociedade. Neste campo, pois, nada deve a China para a compreensão da beleza tão singular que caracteriza a musicalidade.

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