O povo ancestral


A sociedade chinesa é gregária, e privilegia-se como detentora dos direitos; o indivíduo se realiza, neste meio, tanto quanto ele conseguir anular-se a si mesmo, dissolvendo-se na multidão. E o paradoxo chinês não termina por aí; ao realizar-se, este mesma pessoa que buscou um dia ser apenas mais um, passa a ser um destaque entre os seus, um modelo a ser seguido.

O ideal de uma vida familiar, comunitária e unida, é um dos aspectos fundamentais da ideologia chinesa, vindo desde a antiguidade e sustentando-se de modo incomum através dos tempos. Pode ser, talvez, um dos fatores de coesão desta mesma sociedade; mas esta forma de pensar também defende que, para realização desta coesão, o individuo deve aperfeiçoar-se, estudar, dominar seus sentidos, desejos e metas. Disso se conclui que o macro-cosmo da idéia de sociedade, na visão chinesa, não abre mão de modo algum do micro-cosmo - o ser humano, único-, e mesmo a sua integração total (ou será submissão) depende, justamente, da construção de seu senso crítico.

O que parece, pois, tão moderno em nossos discursos de inclusão é, ao mesmo tempo, a constatação de como as relações de poder podem estabelecer-se por meio de relações culturais únicas. Se os chineses entendem alguma idéia de cultura, é para que ela, justamente, enquadre o indivíduo; ao mesmo tempo, se depende do mesmo aceitar e entender tais imposições, isso lhe constrói a capacidade crítica, sempre tão necessária para a compreensão das estruturas sociais.

Contudo, isso não parece tornar os chineses mais críticos que qualquer outro povo no mundo - ao contrário, sua paciência estóica, sua capacidade de resistir a períodos longos de estagnação e conflito, demonstram a existência de um senso cultural capaz muito mais fortemente de articular a sobrevivência da tradição do que, propriamente, destruí-la. Há, pois, algum elemento que torna eficaz a continuidade da própria sociedade sobre os indivíduos? A tentação da milenaridade atrai aqueles que buscam fórmulas de administração social mais eficientes; no entanto, é possível que esta durabilidade seja provocada por condições e interpretações que os próprios chineses realizaram sobre sua sociedade. Neste capítulo, então, analisaremos o que pode ser dito destas visão chinesa sobre uma sociedade ideal.

A origem Matriarcal
A sociedade chinesa, muito provavelmente, surgiu articulada por clãs matriarcais. Nos tempos primitivos, a mulher parece ter tido um papel preponderante como líder social, o que se apresenta em evidencias arqueológicas. Os daoístas guardam consigo, igualmente, o mito da mãe-terra como provedora de toda criação. Mais uma peculiaridade parece comprovar isso; a palavra "nome", em chinês (equivalente ao nosso sobrenome familiar) é formada por dois ideogramas, "mulher" e "vindo", o que quer dizer que o nome de alguém "vem de sua mãe". Sabedoria atemporal chinesa: pode-se sempre saber quem é a mãe, mas o pai é uma garantia de confiança.

Mas quando começam os tempos documentados da história, a sociedade patriarcal já estava estabelecida. Quanto a mulher, caberá sempre lutar pela sua posição na sociedade, caracterizando uma tensão que inevitavelmente se acentuará ao longo dos milênios.

O indivíduo como parte da sociedade
Os chineses entendem, desde a antiguidade, que um ser humano se constrói junto aos outros. Não há pessoa que possa ser dita humana se não tiver sido construída pela educação e o convício social. Por isso os chineses se auto-denominavam 'o povo amarelo', o 'povo do cabelo preto', o povo de Han, etc. Mêncio, Xunzi e outros autores confucionistas discutiriam se, ao nascer, o ser humano é bom ou ruim, séculos antes de Locke, Hume e Rousseau. A solução foi dada, ao final, em torno do séc. -2 por Dong Zhongshu, pensador que afirmava que o ser humano tinha propensões (shi) naturais, derivadas da existência de um agente ou outro (água, fogo, metal, madeira e terra) em maior quantidade na sua constituição física - ainda assim, no entanto, acreditava-se que o ser humano vinha com um potencial maior para o bem do que, propriamente para o mal. A vitória de Mêncio neste quesito se deve em função de duas afirmações; primeira, que se o ser humano não fosse bom por natureza, não se preocuparia em constituir sociedades ou leis que o protegessem e o ajudassem - o caos seria, assim, absoluto. Além disso, pessoas más não se preocupariam em criar leis, a não ser para se proteger uma das outras - mas quem as seguiria, se todos fossem maus? O segundo argumento se baseia na idéia de que esta preservação, garantida pela própria sociedade, é positiva. Pode ocorrer que as relações sociais de equilíbrio não sejam aplicadas, mas isso se daria em função da ignorância ou de uma maldade que pode ser cerceada. Logo, a sociedade existe para garantir ao indivíduo, desde o seu nascimento, a sobrevivência - e o ser humano, consequentemente, garante a sociedade a sua existência, ao dar continuidade a este encadeamento. Este conjunto de relações, portanto, é positivo - e logo, calca-se no bem.

Assim sendo, um chinês vem ao mundo com potencial de ser humano, mas só se realiza em convívio com os outros. Abandonado numa floresta, por exemplo, quanto tempo ele sobreviveria? E, se fosse adotado por macacos, quais seriam seus modos e valores? Tal dívida com a cultura e a sociedade é constatada desde cedo pelos chineses, e por isso é tão forte o desejo de integração.

A Família (jia)
A família, e em escala maior, o clã (shizu), são os pilares da estrutural relacional da sociedade chinesa. Já nos tempos antigos, teias complexas de parentesco orientavam as relações de poder, devidamente estudadas por Marcel Granet em seu ótimo livro "A civilização chinesa" e também por Leon Vandermeersch em "Wang Dao, la voie reale".

Estes conjuntos familiares ordenavam, organizavam e pressionavam a sociedade de acordo com seus interesses particulares. Tal é a necessidade de coesão dessas redes que Sima Qian, nos sécs. -2 -1 conseguiu, no Shiji, reconstruir parte delas (na verdade, as famílias nobres), explicando suas origens, ascendências e conexões possíveis. Isso era demasiado importante; mostrava quais clãs possuíam antiguidade, respeito, poder e principalmente, uma ancestralidade digna de louvor. Este fator referendava, para uma família, o seu sucesso em integrar-se a sociedade e administrar, condignamente, seus negócios - ou ao menos, era o que eles buscavam representar socialmente.

A perenidade deste sistema é incrível dentro da sociedade chinesa, e tradicionalmente ele se confunde com outras instancias da vida política, social e econômica. Nas comunidades interioranas, os clãs organizavam a divisão do trabalho, escolhiam os possíveis jovens que poderiam se candidatar aos exames imperiais, julgavam e puniam os crimes menores, administravam causas legais e exerciam funções religiosas nos templos dedicados aos ancestrais. Já nas cidades, os clãs agiam como grupos econômicos e políticos, formando corporações e partidos bastante influentes no cotidiano e na administração publica.

Obviamente, estes esquemas não se aplicam uniformemente na sociedade. As parcelas mais pobres da população já sofriam de problemas que consideramos modernos; dissoluções familiares, dificuldades de emprego, ausência de uma coesão interna da família. Há um ideal de família, portanto, mas que se realiza de modo variado - e muitas vezes díspar - dentro da própria sociedade.

As relações de poder
Muitas vezes a estrutura familiar se sobrepõe ao Estado, como é caso das dinastias e das casas nobres. Os chineses não entendiam isso como algo totalmente errado - cargos de confiança são construídos por relações de fidelidade -, mas entendiam claramente o perigo que isso representava na harmonia social, na medida em que se favorecia um grupo em detrimento de outros. A idéia do funcionalismo público, criado para dirimir estas concentrações perigosas e ensejar um sistema meritocrático foi bem sucedida na China, mas exigiu, mesmo assim, uma certa reforma dos costumes. Podemos rastrear a conscientização do problema quando Confúcio busca estabelecer quais são as relações de poder ideais dentro da sociedade:

"Os deveres de obrigação universal são cinco, e as qualidades morais pelas quais eles são sustentados são três. Os deveres são os compreendidos entre o governante e o governado, entre pai e filho, entre marido e mulher, entre o irmão mais velho e o mais novo, e os que decorrem entre os amigos. São esses os cinco deveres de obrigação universal. Sabedoria, compaixão e coragem - são essas as três qualidades morais do homem, universalmente reconhecidas. Não importa de que modo os homens põem em exercício essas qualidades morais, o resultado é um único e o mesmo". (Zhong Yong, ou A Justa Medida).

Como se pode ver, a idéia, aqui, é a de que a família deve ser o núcleo inicial de formação do indivíduo; no entanto, seu dever final é servir a sociedade, e não apenas a um grupo. Confúcio, cuja vida foi marcada pela ausência do pai e pela devoção de sua mãe, parece ter percebido, bem cedo, o quão importante é o papel destas redes familiares para a integração social - mas elas são um meio, e não um fim em si mesmas - sem o que, o individuo nunca pode alcançar algum tipo de liberdade e sabedoria.

Os anciãos
O ancião, por seu acúmulo de experiência, é venerado pelos familiares. Ter um avô é um privilegio; um bisavô, algo ainda mais digno. A dívida com os anciãos é carnal - graças à eles estamos no mundo; é também social, pois são eles que transmitem os rudimentos da cultura e dao a primeira educação que uma pessoa tem. Espera-se que ele tenha sabedoria, e sua palavra é respeitada - quando não seguida automaticamente, se o ancião ainda tiver condições de exercer uma liderança lúcida.

Os filhos e a família, neste caso, são sua aposentadoria. Cabem a eles sustentá-los em sua idade avançada, mas não raro, os idosos envolvem-se nos cuidados familiares e na formação dos netos. Nesta fase, dedicam-se a passatempos, artes, leituras e atividades de gosto próprio - como disse Xunzi, o ser humano deve estudar até o fim de seus dias, pois o conhecimento é infindável e sempre nos reserva surpresas. Um funeral sincero, o pranto de admiração e sua entrada no pavilhão dos ancestrais são a sagração de uma vida.

A Piedade Filial (Xiao)
Confúcio tentou delinear os princípios pelos quais uma família deveria se auto organizar, e de como se dariam as relações de intimidade entre seus membros. Tal conceito foi explicado no Xiaojing - texto que se supõe apócrifo, mas ainda assim, aceito sem grandes ressalvas pela intelectualidade chinesa. Nele, Confúcio definiria o que seria Xiao - traduzido de forma aproximada como "pieadade filial", ou talvez "fraternidade", conceito fundamental nas relações sociais entre parentes, nas amizades e no trabalho. Xiao funde, de fato, hierarquia, devoção e respeito à sabedoria. A proposta de Confúcio, neste caso, parece ser a de resolver os dilemas morais ligados ao conflito de interesses entre família X sociedade, estabelecendo um nível de obediência e importância nos acontecimentos cotidianos:

Pois bem, a piedade filial é a raiz de toda virtude e o tronco do qual nasce todo ensinamento moral. Senta-te de novo e te explicarei a questão. Nossos corpos – cada fio de cabelo, cada fragmento de pele – nós herdamos de nossos pais e não devemos atrever-nos a danifica-los ou feri-los. Este é o começo da piedade filial. Quando formamos nosso caráter mediante a prática da conduta filial, para tornar famoso nosso nome nas idades futuras e glorificar com isso nossos pais, este é o fim da piedade filial. Começa com o serviço de nossos pais, continua com o serviço do governante, e se completa pela formação do caráter.(...) Assim como servem a seus pais também servem às suas mães e igualmente as amam. Assim como servem a seus pais servem aos seus governantes e igualmente os veneram. Amor se tributa principalmente à mãe e veneração é que principalmente se tributa ao governante, quando estas duas coisas são cultuadas no pai. Portanto, quando servem ao governante com piedade filial, são leais. Quando servem aos seus superiores com veneração, são obedientes. Por não faltarem, em sua lealdade e obediência, aqueles a quem servem, são capazes de conservar seus vencimentos e posições e manter seus sacrifícios. (Xiaojing, ou Tratado da Piedade Filial).

O Xiaojing é um texto sucinto, porém fundamental, para a compreensão do ideal de vida social entre os chineses.

O Papel feminino
Numa história de 5000 anos, o papel da mulher é algo dificilmente analisável, principalmente se levarmos em conta que ele não se mantém imóvel, estável ou claramente definido, como se pode presumir numa leitura rápida e superficial da questão. Na China, como dissemos, os primeiros clãs são matrilineares; a preponderância do patriarcalismo é posterior, e já está "pronta" na época Shang. No entanto, as mulheres nunca entregaram facilmente a sua posição, e podemos entender o seu papel histórico muito mais como conflituoso do que, propriamente, de submissão total. Mozi dizia que "a mulher sustentam metade do Céu", e sem ela nada existiria. Os daoístas aceitavam o mesmo ponto de vista, e muitos de seus cultos e da alquimia sexual por eles praticadas colocava a mulher em posição de veneração.

Logo, aceitar que a sujeição da mulher é uma marca na sociedade chinesa é cometer, por conseguinte, um sério erro de observação. Os direitos da mulher, na China, sofreram um degradação mais séria a partir do período Yuan (séc. 13 e 14), e grande parte dos costumes vis que lhes foram impostos derivam de uma agudização dos problemas sociais e políticos das últimas dinastias chinesas. A condição de sua inferioridade foi debatida desde a antiguidade - e se há debate, é porque não há consenso. Uma série de 4 textos fundamentais (“O Livro feminino”, de Han; “Analectos Femininos”; “Lições domésticas”, e “Modelos para as Mulheres”), escritos desde a época Han até a dinastia Qing (ou seja, um de mais de mil anos de história) buscou, por variadas razões, interpretar - ora positivamente, ora negativamente - os papéis e modelos femininos adequados ao funcionamento correto da sociedade. É importante ressaltar que muitas vezes estas discussões não encontram eco nas parcelas mais pobres da sociedade - muitas vezes comandadas por mulheres viúvas ou abandonadas as quais cabia, a todo custo, manter a coesão familiar e sustentar os seus membros através do trabalho honesto.

Logo, é verdade quando se diz que as mulheres tinham seus casamentos arranjados; que se submetiam aos pais, depois aos maridos; que viravam servas de suas sogras; que muitas vezes um filho homem era preferido; que em tempos de crise, ela podia ser vendida (mas isso em geral afetava as crianças, masculinas ou femininas); e por fim, que seu destino era, em geral, cuidar da casa e da família. Tudo isso é verdadeiro, como foi também (e em alguns lugares, ainda é) para a sociedade brasileira.

Mas se negligencia alguns aspectos dessas relações familiares, tais como: as mulheres poderiam ser matriarcas numa família poderosa, e isso não raro acontecia; podiam recusar noivos, ainda que escolhidos pelos pais; tinham direito ao divórcio e recebiam seus bens, em caso de separação ou viuvez; a China teve ao longo da sua história duas imperatrizes, além de várias personagens femininas famosas por sua força, conhecimento ou influência junto ao poder. Quanto ao hábito de enfaixar os pés, além de ser uma marca típica das elites e da classe média, foi uma moda tão vil quanto os espartilhos europeus, que causavam tuberculose. Maldiçoes estéticas como essa estão indissoluvelmente ligadas a trajetória feminina.

O que se pode extrair disso é que a história chinesa é permeada por uma tentativa contínua do patriarcado estabelecer-se como forma única de poder nas relações de gênero. Se seu sucesso fosse absoluto, tantos textos não teriam sido escritos tentando justificá-lo, aprová-lo ou defende-lo. Hoje, vive-se a excrescência destes tempos recentes de machismo, combatidos pela ideologia comunista, mas cumpliciados nas classes mais baixas da população. O livro de Xinran, “As boas mulheres da China”, é uma denúncia das tentativas do masculino afirmar-se, novamente, no seio da sociedade chinesa. A modernidade, porém, é a uma barreira decisiva para isso, e espera-se que tal retorno a tradição seja apenas uma rebarba nas novas gerações.

Ritos (Li)
O que se traduziu pessimamente como "ritos" (Li), talvez fosse mais adequadamente entendido como "práticas sociológicas". Novamente, retornamos a Confúcio. Para ele, Li era o cerne dos modos de conduta da e na sociedade, o que exigia uma explicação aprofundada de seus fundamentos, procedimentos e aspectos estruturais. O que se consigna, pois, no Liji - o "Tratado dos ritos" (ou se preferirmos, o pouco sonoro "Tratado das práticas sociológicas") são os modos pelos quais devemos agir em sociedade, e o papel de seus elementos constituidores.

Li não é senão a cristalização do que é correto. Se uma coisa está de acordo com os padrões corretos, novas práticas sociais são instituídas, embora as ignorassem os governantes do passado. Exemplo do correto é o encaminhamento de cada classe de pessoas em seu próprio setor, e assim se articula a verdadeira humanidade. Aqueles que seguem o correto, observando o caminho adequado e cultivando a verdadeira humanidade, tornar-se-ão hábeis administradores. A verdadeira humanidade constitui a base da conduta apropriada e encarna a adequação aos padrões corretos. Aqueles que atingiram à verdadeira humanidade tornam-se líderes da espécie humana. [...] Li é o princípio da cortesia e do respeito mútuo. Por isso, quando aplicado ao culto nos templos, tem-se a piedade; quando aplicado na côrte, tem-se a ordem nas esferas oficiais; quando aplIcado no lar, tem-se a afeição entre pais e filhos, harmonia entre os irmãos; quando aplicado na cidade, tem-se o acatamento da ordem entre os mais velhos e os mais moços. Eis por que tinha cabimento o que dizia Confúcio: "Nada melhor do que a li para a preservação da autoridade e para o govêrno do povo."(Liji, Manual dos Rituais).

Por este motivo, o Liji é um manual riquíssimo sobre a mentalidade sociológica chinesa; neles estão explicados os modos corretos de se vestir, as razões disso; como se fazer cumprimentos, saudações, rituais religiosos e sacrifícios; como se deve estudar; o que é a música; o que é política; como ser sábio, e assim sucessivamente...

Uma leitura desse texto explica muito sobre os modos de agir dos chineses; sua aparente introspecção, a necessidade de conter-se diante dos outros, a gentileza franca, o resguardo perante o desconhecido, a fidelidade e a dedicação ao trabalho - muitas dessas coisas são explicadas pela sensível análise que Confúcio fez do espírito de seu povo, consolidando aí as orientações necessárias paras a gerações futuras.

Redes sociais
Mas a vida gregária não se faz apenas em família; ela se estabelece, também, nas redes de relações sociais que indivíduos, grupos e comunidades tecem entre si, a fim de beneficiarem-se mutuamente. Estas redes tiveram vários nomes ao longo da história, e hoje são chamadas de “Guanxi”.

Estes laços são construídos na base de trocas e acordos materiais, mas dependem também de amizade e confiança mútua. Tais redes formam, muitas vezes, aquilo que entendemos como troca de favores, clientelismo, associações de auxílio mútuo, sociedades secretas ou grupos de interesse. Pragmáticos, os chineses não consideram absurdos tais procedimentos, ao contrário; pregam que haja equilíbrio em sua execução para que o todo não saia perdendo para a parte.

As regulações em torno dessas redes sociais são, portanto, bastante flexíveis, variáveis e oportunas. Na China histórica, as sociedades secretas já foram muito importantes em processos revolucionários; do mesmo modo, as corporações de comerciantes valeram-se da sua capacidade de união para combater monopólios estatais na época do império; e hoje, um empresário chinês preocupa-se bastante em associar-se a quem quer que for, aproximando-se vagarosamente por meio de jantares, conversas particulares e alguma convivência com seus futuros parceiros. A lógica pura e simples do mercado, e seus atrativos financeiros, não são absolutamente decisivos para a construção de uma Guanxi - os critérios da confiança mútua e de uma associação "familiar" são indispensáveis.

A nova sociedade
Os desafios da modernidade para a estrutura social chinesa são, justamente, o da continuidade e da adaptabilidade. As exigências da superpopulação já enterraram, por agora, os anseios antigos de uma família gigantesca, e fragmentaram por completo o poder dos clãs. Se o machismo insiste em voltar e se consolidar, a visão comunista de mundo deu munição suficiente para que as chinesas não aceitem mais uma pura e simples submissão. Em Taiwan, esta mesma modernidade - aliada ao pragmatismo da necessidade econômica e histórica - deslocou a mulher do seu espaço tradicional de dona do lar para o de uma ativa trabalhadora.

As exigências da economia de mercado têm forçado os chineses, inequivocamente, a observar os papéis da relação indivíduo-produção-sociedade na geração do bem estar coletivo. Se por um lado a economia está indo bem, os índices de poluição estão afetando severamente o meio ambiente - quanto, pois, vale o desenvolvimento?

A preocupação central da vida social chinesa está naquilo que Confúcio chamou de Ren, "Humanismo"; ideograma formado pelas palavras "pessoas" e "dois". "Duas pessoas em harmonia", é o que diz Ren. De que maneira, pois, as gerações futuras desenvolverão seus modos de agir, seus "Li", para que a harmonia entre o indivíduo e sua comunidade possa se manter?

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