Outro modo de dizer o mundo


"...[ela] contempla os modos do homem, para efetuar as mudanças culturais no mundo. Na verdade, como têm sido grande a importância da literatura no decurso dos tempos!" (Xia Tong, séc. 6)

No século 18, os chineses empreenderam um monumental resgate intelectual de sua cultura através da constituição do Siku Quanshu (Os 4 tesouros dos Livros), uma gigantesca coletânea que incorporava desde os textos mais antigos do Confucionismo até que o que havia sido escrito na época. O volume inigualável de páginas, a contagem em milhares de caracteres, esses e outros elementos vivificavam a grandiosidade desta civilização, e o desejo de reter a sua centralidade cultural e histórica. O objetivo do Siku Quanshu não era nada modesto; ele pretendia, simplesmente, guardar tudo que havia sido escrito (e consagrado) na história da China até então. Obviamente, o trabalho de pesquisa para a construção de seus volumes acabou por ensejar um estudo mais aprofundado da própria literatura chinesa, gerando anexos posteriores. O grosso da obra, porém, atinha-se a uma literatura clássica, já aprovada pela sua resistência e continuidade.

Cabe-nos aqui um apontamento interessante; mas como os chineses organizavam essa sua literatura? Uma apresentação vasta de nomes de obras, autores ou épocas não daria conta do caso de analisar o que nos propomos aqui. Os chineses criaram seus cânones literários num passado bastante distante, e como tal, usaram-nos de guia para criar (ou reproduzir) velhas idéias e visões de mundo. O que analisaremos aqui, portanto, é este entendimento sobre a literatura chinesa na visão dos próprios, buscando compreender a sua estrutura constitutiva.

A tensão entre forma e sentido

Como tudo na China, Wenxue (Estudo do Escrito, o mais próximo que podemos encontrar de “literatura” nesta civilização) é permeado pela tensão da oposição complementar, pelo arranjo contínuo que se dá entre yin e yang. Todos os textos têm uma forma – o modo como eles são escritos, como suas palavras estão arrumadas – e um sentido – ou, o discurso inserido na estratégia da escrita. Obviamente, existiram sempre descontinuidades entre uma proposta de classificação e a criação de um novo gênero literário. Dois são os textos básicos que delinearam a tentativa de construir uma taxionomia textual que desse conta do problema; o Wenfu (Ensaio sobre a escrita, aprox. séc. +3) e o Wenxin Diaolong (O Coração do escrito e o cinzel do dragão, aprox. séc. +6). O primeiro aborda o exercício da escrita, e os procedimentos da inspiração; o segundo destaca os modos de escrever e os gêneros textuais. Ambos nasceram para serem seguidos solenemente pelos estudiosos, e desrespeitados audaciosamente pelos artistas. A criatividade também é milenar na China, e não deveríamos esperar que fosse diferente.

O Dao da escrita

Pois a literatura é uma via (Dao), e pode levar ao conhecimento das coisas. Está na introdução do Wenxin Dialong;

Por isso, sabemos que o dao, através dos sábios, concede a literatura; e os sábios, por meio da literatura, manifestam o dao, para que prevaleça sem barreiras em todas as partes e se realize, constantemente, sem menoscabar. O Tratado das Mutações diz: "o que origina o movimento do mundo está em palavras". A razão pela qual as palavras podem mover o mundo é que elas são a escrita e a estrutura do dao.

Então, como classificar a via? Como dividí-la em métodos diferentes? Eis que se dá o arranjo entre o múltiplo (forma) e o uno (sentido), novamente, em todos os níveis de manifestação - e para dar-lhe alguma ordem surge, então, o cânone, tentado arrumá-los de alguma forma didática.

Sibu – As quatro categorias

Pro conta disso, os chineses do século 18 fazem um arranjo bastante distinto das obras contidas no Siku Quanshu. São as chamadas sibu- as 4 categorias – que constituem as linhas mestras da classificação de uma literatura que se entendia consolidada em suas regras gerais.

Jingbu - A primeira das categorias é a da literatura confucionista, a dos clássicos (jingbu). Nela estavam contidas as obras resgatadas por Confúcio, consideradas como as mais antigas de toda a China. No entanto, se nela aparecem os textos arcaicos – como o Yijing (o Tratado das Mutações) ou o Shujing (Tratado dos Livros) – outros escritos incorporar-se-iam a esta lista de clássicos, tais como os próprios textos da escola confucionista. O setor dos clássicos evoluiu, abrangendo as obras de estudo da língua e da escrita, dicionários, lexicógrafos e manuais de ensino.

Qual o sentido de um jingubu, portanto? O que tornava um livro classificável como tal? Eis novamente a tensão de forma-sentido. Se os textos arcaicos dispensam apresentação, depois disso os estudiosos de literatura parecem ter preferido, por bem, assentar o sentido de um “clássico” como algo que permitisse compreender a estrutura do próprio chinês (escrito e falado). Disso resultou que, após a construção do corpo básico de obras da antiguidade, todo o restante seria interpretação – e nisso, um dicionário como o Shuowen jiezi – faz mais sentido, nesta categoria, do que um belo livro de poesia.

Shibu – A segunda categoria, shibu (gênero histórico), mostra a especificidade deste discurso literário chinês. Uma categoria especial é concedida a esse tipo de escrito que, em prosa, mantém o fio condutor da cultura chinesa com o passado. A história é um objeto de veneração nesta civilização milenar. Para além dos anais dinásticos básicos, inventados pelo historiador Sima Qian (aprox. sécs. -2 -1), a categoria da história possui mais 14 subcategorias que se dividem em metodologia e teoria da história, geografia, histórias regionais, bibliografias, etc. Uma vasta produção historiográfica conectava os chineses diretamente com sua ancestralidade, dando-lhe o peso da tradição. Se em forma ela pouco muda o estilo da escrita, em sentido, a história chinesa mantém-se crítica (por mais que tentemos enxergar, sempre, um compromisso do historiador com o poder estabelecido). Sima Qian, ao menos, tinha a plena convicção do potencial da história, expresso neste comentário;

Ela distingue o que é suspeito e duvidoso, elucida o certo e o errado, e decide o que é incerto. Classifica o que é bom como bom e o que é ruim como ruim, honra o que é digno e condena o que não é merecedor. Preserva existências perdidas e restaura as famílias em deterioração. Esclarece o que foi negligenciado e restabelece o que foi abandonado (Shiji, 130).

A História, pois, sempre foi uma fonte importantíssima de conhecimento para os chineses. Ainda que uma "literatura", ela se propunha construída e realizada de uma tal maneira que poderia dizer-se, seria "baseada em fatos reais" - se nos permitirmos o chavão. Pois a literatura, para os chineses, é baseada em coisas reais - até mesmo a imaginação é algo que existe - mas a maneira como ela se expressa, e o intuito incluso no escrito, dizem por si os objetivos de um gênero. E a história, em suas pretensões, visa salvar a verdade - seja lá o que isso quer dizer.

Zibu – O gênero dos mestres (zi) diz respeito aos tipos de escritos cuja função era pensar e interpretar a realidade. Esta definição simples, porém extremamente complexa e escorregadia, é mais do que pertinente para uma categoria que inclui todo o tipo de exercício da sensibilidade e da reflexão. Nos zibu encontramos os escritos das ditas “escolas filosóficas”, mas também da religião dos budistas; vemos os tratados científicos ao lado das enciclopédias e dos tratados sobre arte; as novelas estão simpaticamente situadas junto dos livros de medicina ou agricultura; e os tratados de adivinhação convivem harmoniosamente com os de matemática. Como disse Liu Xie no Wenxin Diaolong, "as doutrinas dos mestres constituem os escritos que penetram no Dao e contemplam suas paixões". Os zibu, portanto, não constituem uma forma definida, mas seu sentido é claro; tudo aquilo que permite ao ser humano criar-se intelectualmente é uma via (Dao), e como tal, deve ser apreciada. Este tipo de classificação provavelmente enlouqueceria um crítico literário ocidental, mas seria certamente bem recebida por um Einstein. Dentro da lógica chinesa, que poderia ser aí criticada como pouco “científica” no ponto de vista ocidental, a coexistência desses saberes é, justamente, o sentido de uma ciência que opera por meio de analogias e relações cósmicas. A carga moral destes discursos, portanto, se constrói de modo completamente alheio ao de nossa realidade:

Em todas as formas físicas está o dao, e dentro destas formas estão as coisas em plena ação. Por isso, o dao são todas as coisas em ação; e as coisas em ação são todas, obviamente, o dao. (Chen Mingtao)

Jibu – As antologias (jibu) formam a última das categorias, congregando compêndios fabulosos de música e poesia. Neste ponto, é importante fazer uma ressalva fundamental para se compreender o estudo da literatura chinesa. Como disse Gil de Carvalho, em seu ensaio sobre o tema presente no livro “A Dama Luminosa”, a poesia chinesa é uma pedra basilar para compreender a interpretação que os chineses dão aos seus próprios escritos. Afinal, a poesia nasce com os textos mais arcaicos (como é o caso do Shijing, resgatado por Confúcio), e ela se constitui na mais bela expressão da tensão forma-sentido. O poema, quando belo, traz consigo a capacidade de expressar tudo – a imagem, as palavras, a idéia.

"A escrita da poesia se baseia na experiência interior emotiva, e na cena exterior do mundo; nenhum dos dois por si só completa a poesia, nem está em conflito um com o outro". (Xie Chen, séc. 16)

O estudo da poesia chinesa, pois, é um estudo do chinês em si – de suas ambigüidades, de seus ideais, de sua visão onírica ou pragmática da realidade. O modo ideal de expressar-se é obtido por meio dela, a poesia; e por isso não devemos estranhar uma categoria inteiramente dedicada a ela:

A poesia implica um talento especial que nada tem a ver com os livros; contém um significado a parte que nada a ver com os princípios da razão. E, no entanto, a menos que o poeta tenha lido muito e investigado os princípios detalhadamente, não chegará ao limite. O melhor é o que se chama "não tocar a candeeiro da razão nem cair nos cepos das palavras". A poesia canta a emoção da natureza de cada um [...]. Quanto aos poetas de hoje, chegam com estranhas interpretações e conceitos do ofício; assim, tomam a verborragia por poesia, o mero talento e erudição por poesia, inclusive a mera discussão. (Yenyu, séc. 13)

Após o Siku Quanshu

Mas o que devia ser prisão, como sempre, virou a pilha de escombros sobre a qual o moderno fez sua escada. O mesmo século 18 veria surgir uma onde de novos textos que sacudiriam esta estrutura tradicional de análise do Siku Quanshu; afinal, o que dizer do teatro, dos novos romances (o caso do Houlumeng, o Sonho do Pavilhão vermelho, é um exemplo clássico), da literatura erótica, e mesmo da chegada dos livros estrangeiros – tão estranhos, repulsivos, e ao mesmo tempo, tão instigantes! É esta mesma antologia quase sacra que os revolucionários chineses criticaram, e que no final do século 19 serviu de referência – negativa – para a construção de uma nova literatura. Os autores que vivenciaram o fim do império estrangeiro Qing, a chegada dos europeus, e as décadas de crise da sociedade chinesa, eram em geral bons conhecedores desta literatura clássica, que havia perdido o sentido de instruir para gerar uma fossilização intelectual. Luxun, um dos grandes críticos desta época, denunciou o modo clássico de escrever e de expressar-se, pouco acessível ao povo; Laoshe apresentou a dura realidade chinesa em seus escritos; e Guomoruo, engajado escritor comunista, arqueólogo, poeta, dono de uma mente prodigiosa para caracteres, passeou por entre todos estes gêneros antigos como bem quis para defender um modo marxista de entender a realidade.

O Realismo comunista e a nova literatura

Li Dazhao, em 1920, defendia o seu ponto de vista sobre a literatura:

“Os termos que, meramente, usam o chinês moderno não pertencem à nova literatura; tampouco serão aqueles que falam somente de novas doutrinas, de novos feitos, novos personagens ou termos (...) a nova literatura é aquela que descreve a realidade social”.

Guomoruo, em 1923, afirmava igualmente que:

“Nós nos opomos à serpente capitalista, nós nos opomos a qualquer religião que renegue a vida. Nós nos opomos a uma literatura de escravos. Nosso movimento apregoa o espírito de classe proletária e da humanidade jovem”.

Este seria o mote da nova literatura chinesa. Os comunistas, após a revolução vitoriosa de 1949, esperavam criar um novo tipo de literatura popular, implantando um vasto programa de educação que contemplava temas do cotidiano e da realidade como motes de inspiração poética e ideológica. Concursos de poesia eram realizados, de modo a fomentar uma ação artística popular. Operários, camponeses e humildes cidadãos eram estimulados a contar sua vida por meio da arte, gerando uma produção de qualidade variada. Ainda assim, o relaxamento do comunismo após a morte de Maozedong trouxe à baila novamente uma literatura de resistência, de crítica ao sistema. Enquanto isso, Taiwan e os chineses da diáspora mantiveram-se ligados as tradições antigas, e Lin Yutang – um de seus principais autores – reformou os clássicos, tornado-lhes acessíveis ao público ocidental.

Estes novos temas (e escritores) são variados; em geral, estes escritos continuam a tratar da realidade, mas por meio de uma visão distinta daquela do discurso ideológico governamental. Mais uma vez, o que virou cânone, serve de base para o novo. A valorização do sexo e do consumismo tornaram-se veículos de embate contra o sistema; o regime censura ocasionalmente algumas dessas obras, mas nem sempre e com tanta constância como seria de se esperar. Apesar das críticas ocidentais sobre a liberdade de expressão (mas lembremos, até hoje existe censura nos EUA e mesmo no Brasil, ainda que por motivos mercadológicos), os chineses têm produzido, e com relativa liberdade, uma leva de novos textos cuja intensidade já merece nova análise por parte dos especialistas. Ou seja, em breve eles estarão classificando aquilo que irá mudar – é o inevitável da literatura chinesa, e quiçá, do mundo.

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