A Filosofia do Ajuste



De todas as escolas filosóficas chinesas, uma das menos estudadas - embora suas propostas tenham obtido um sucesso tremendo no pensamento desta civilização - é a filosofia médica do Neijing (o Tratado Interno, também conhecido como Suwen), integrante da escola cosmológica. Os cosmológicos conseguiram atingir substancialmente a medicina e as ciências chinesas, mas no campo ético e filosófico, suas teorias foram absorvidas como partes secundárias dos pensamentos confucionistas e daoistas. Na época Han, autores como Dong Zhongshu e Liuan (no Huainanzi) apresentaram fragmentos das teorias cosmológicas, vinculando-as as suas análises sobre o ser humano e a natureza; no entanto, a filosofia médica do Neijing obteve sucesso próprio, desenvolvendo-se autonomamente, embora isso tenha implicado num certo afastamento do debate político.



O que pretendemos analisar neste texto, de maneira breve, são as características gerais do que seria o Dao (caminho, via ou método) proposto no Neijing, texto fundamental desta escola cujos autores mais antigos desapareceram, mas que teve (e tem, ainda) milhares de seguidores. A Filosofia médica alcançou uma influência significativa, como o próprio nome já diz, na área da pesquisa médica e cientifica, mas seus desdobramentos podem ser vistos na educação e no modo de vida chinês; a prática diária de exercícios, a atenção redobrada aos cuidados preventivos com o corpo e a saúde, e a noção de que tendências do caráter podem ser influenciadas pelas propensões do corpo são marcas indeléveis que esta escola legou aos hábitos e ao imaginário social chinesa.



Cabe-nos, pois, investigar o que seriam os pontos fundamentais deste discurso filosófico do Neijing. Eles estão presentes nas duas primeiras seções do tratado, que tratam da história da civilização na visão médica, do ciclo da vida humana e sua dinâmica natural, e do que seria, então, o caminho (Dao) de uma vida adequada.



Os conceitos fundamentais



Como em outros textos filosóficos chineses, o embasamento das propostas do Neijing começa com uma análise histórica do problema do Dao; porque o Dao foi perdido? Porque os seres humanos, nos dias de hoje, não conhecem o caminho da sabedoria?



A primeira vista, a proposta do Neijing pode parecer calcada no daoismo de Laozi ou do Huainanzi, mas esta é uma apreciação superficial; o Neijing reconhece o papel dos sábios como um dos pontos fundamentais da transmissão do conhecimento, elemento que os daoistas negavam e os confucionistas defendiam. O fato do texto ser aludido a Huangdi é outro ponto que aproxima o Neijing dos daoistas, mas ainda assim, isso é relativo: afinal, vários textos da época Han invocam alguns destes mitos fundadores para justificarem suas propostas, o que não desmerece a segunda parte do texto (dedicada ao exercício da medicina) - na verdade, podemos supor que o fato dos chineses desconhecerem a origem histórica de suas próprias pesquisas na área da medicina os fizeram, por conseguinte, dirigir a sua fundamentação histórica a um tempo "ahistórico", ou simplesmente, "antiqüíssimo" - ao menos, este era o caso dos cosmológicos:



“Ouvi dizer que em tempos antigos houve os chamados Homens Espirituais, que dominaram o Universo e controlaram o Yin e o Yang. Respiravam a essência da vida, eram independentes por preservarem o espírito e os seus músculos e a sua carne permaneciam imutáveis. Podiam, portanto, gozar uma longa vida, pois não há fim para o Céu e a Terra. Tudo isso resultava da sua vida de harmonia com o Dao, o Caminho Certo”.

“Nos tempos medievos existiram os Sapientes, que preservavam a virtude e defendiam (infalivelmente) o Dao, o Caminho Certo. Viviam de acordo com o Yin e o Yang e em harmonia com as quatro estações. Afastavam -se deste mundo e renunciavam à vida mundana, poupavam as energias e preservavam o espírito intacto. Viajavam por todo o Universo e eram capazes de ver e ouvir para além dos oito espaços distantes. Graças a tudo isso, aumentavam e fortaleciam a sua vida e, por fim, atingiam o estágio do Homem Espiritual”.

“Sucederam-lhes os Sábios, que alcançaram a harmonia com o Céu e a Terra e respeitaram estritamente as leis dos oito ventos. Eram capazes de conciliar os seus desejos com os assuntos mundanos, e o seu coração não conhecia o ódio nem a cólera. Não desejavam separar as suas atividades das atividades do Mundo e conseguiam ser indiferentes ao hábito. Não forçavam excessivamente o corpo no trabalho físico nem a mente em meditações extenuantes. Não se preocupavam com coisa alguma, consideravam fundamentais a felicidade e a paz interiores e a satisfação a mais elevada das realizações. Nada podia molestar-lhes o corpo nem malbaratar-lhes as faculdades mentais. Assim, conseguiam chegar à idade de cem anos ou mais”.

“Sucederam-lhes os Homens de Excelente Virtude, que obedeceram às regras do Universo e imitaram o Sol e a Lua, além de descobrirem a disposição das estrelas. Podiam prever o funcionamento do Yin e do Yang e obedecer-lhe, e aprenderam a distinguir as quatro estações. Respeitaram os tempos antigos e tentaram manter-se em harmonia com o Dao. Fazendo-o, aumentaram a duração da sua vida, até uma idade avançada.”




Lendo o texto, percebemos que o Neijing propõe, afinal, que o conhecimento do ritmo humano, e de sua relação com a natureza, são os fundamentos de uma vida adequada, e este é o seu Dao. Por conseguinte, alguns conceitos necessários a formulação de qualquer escola filosófica da china antiga estão Dao presentes aqui: dao (o método), ritmo, propensão e harmonia:



Antigamente, essas pessoas que compreendiam o Dao [o caminho do autodesenvolvimento] moldavam-se de acordo com o Yin e o Yang [os dois princípios da Natureza] e viviam em harmonia com as artes da adivinhação.

“Havia temperança no comer e no beber. As suas horas de levantar e recolher eram regulares e não desordenadas e ao acaso. Graças a isso, os antigos conservavam os seus corpos unidos às suas almas, a fim de cumprirem por completo o período de vida que lhes estava destinado, contando cem anos antes do passamento”.

“Hoje em dia, as pessoas não são assim; utilizam o vinho como bebida e adotam a temeridade e a negligência como comportamento habitual. Entram na câmara do amor em estado de embriaguez; as paixões exaurem-lhes as forças vitais; o ardor dos desejos malbarata-lhes a verdadeira essência; não são hábeis na regulação da sua vitalidade. Devotam toda a atenção ao divertimento dos seus espíritos, desviando-se assim das alegrias da longa vida. Levantam-se e deitam-se sem regularidade. Por tais razões só chegam à metade de cem anos e degeneram.

“Na Antigüidade mais remota, os ensinamentos dos sábios eram seguidos pelos que se encontravam abaixo deles. Os sábios diziam que a fraqueza, as influências insalubres e os ventos nocivos deviam ser evitados em ocasiões específicas. Sentiam-se tranqüilamente satisfeitos no nada e a verdadeira força vital acompanhava-os sempre; preservavam dentro de si o vigor vital primitivo. Assim, como podia a doença acometê-los?”.

“Reprimiam a vontade e reduziam os desejos; os seus corações estavam em paz e sem qualquer medo, os seus corpos labutavam e, contudo, não sentiam fadiga”.

“O seu espírito respeitava a harmonia e a obediência, estava tudo de acordo com os seus desejos e conseguiam o que quer que desejassem. Achavam excelente qualquer espécie de comida e qualquer espécie de vestuário os satisfazia. Sentiam-se felizes em todas as circunstâncias. Para eles, não importava que um homem ocupasse na vida uma posição elevada ou inferior. A homens assim se pode chamar puros de coração. Não há desejo capaz de tentar os olhos destas pessoas puras, e a sua mente não pode ser desencaminhada pelos excessos nem pelo mal.

“Numa sociedade assim, quer os homens sejam sensatos, quer idiotas; quer virtuosos, quer maus, não têm medo de nada, estão em harmonia com o Dao, o Caminho Certo. Por isso, os antigos viviam mais de um século e permaneciam ativos e sem se tornarem decrépitos, porque a sua virtude era perfeita e nada jamais a punha em perigo”.




Este esquema básico é imprescindível nas teorias filosóficas chinesas: todas elas devem propor um Dao, ou método para readquirir a capacidade de estar em harmonia (He) com a natureza. Este método buscava uma forma de ajuste com as tendências naturais do individuo, e He – Harmonia é uma tentativa constante de equilíbrio interno. Como Confúcio já propunha no Liji, a própria cultura humana (Li) é fundamentada no Céu (Tian, ou ordem cósmica ou ecológica), e buscar seus fundamentos é a condição básica para encontrar a sabedoria:



A li tem sua origem na Taiyi (Unidade Primeira), que se dividiu em Céu e Terra, transformando-se em yin e yang, atuando através das estações do ano e tomando forma segundo os diferentes espíritos. A vontade dos deuses manifesta-se como destino, sob controle do Céu.



Assim deve a li ter o Céu por fundamento, exerce na Terra a sua ação e aplica-se às diferentes atividades humanas, mudando de acordo com as estações do ano e os vários ofícios. No ser humano, a li surge como princípio vital e manifesta-se no trabalho, no comércio, no convívio social, no comer e no beber, na cerimônia da "investidura" do que atinge à maioridade, no casamento, nos funerais e nos sacrifícios aos mortos, na carreira das armas, na condução de veículos, e nas audiências em palácio.



Os ditames da li constituem, portanto, os princípios fundamentais da vida humana, servindo para promover a confiança mútua e a harmonia social, fortalecendo as ligações sociais e os laços de amizade; constituem os princípios fundamentais do culto aos espíritos, da subsistência dos vivos e das oferendas aos mortos. Li é um vasto canal através do qual seguimos os desígnios do Céu e conduzimos ao bem as expressões do coração humano. Por isto, somente o Sábio reconhece que a li é indispensável. Para destruir um reino, arruinar uma família ou perder um homem - o que tendes a fazer em primeiro lugar é extirpar-lhes o senso da li. (Liji)




Esta sabedoria, no Neijing, é a harmonia corporal, o estado de saúde equilibrado, que permite o prolongamento da vida. Ao se conhecer os meios de prolongar a vida, conhece-se a si mesmo; e conhecer a si mesmo é conhecer as propensões intimas (shi); sabendo disso, alcança-se o ritmo (jun) necessário para o prolongamento da vida, e nisto consiste a sabedoria do bem viver:



Os que se rebelam contra as regras básicas do Universo cortam as próprias raízes e destroem a sua verdadeira personalidade. O Yin e o Yang - os dois princípios da Natureza - e as quatro estações são o princípio e o fim de tudo e são igualmente a causa da vida e da morte. Os que desobedecem às leis do Universo dão origem a calamidades e provações, enquanto os que respeitam as leis do Universo permanecem isentos de doenças perigosas, pois a eles foi concedido o Dao, o Caminho Certo.

O Dao era praticado pelos sábios e admirado pelos ignorantes. A obediência às leis do Yin e do Yang significa vida; a desobediência significa morte. Os obedientes dominarão, enquanto os desobedientes viverão em desordem e confusão. Tudo quanto é contrário à harmonia com a Natureza é desobediência e equivale à rebelião contra a Natureza.




Para isso, o Neijing apresenta uma serie de regras básicas, que acompanham as estações do ano, para determinar um comportamento de vida ideal. Observem que a idéia principal, aqui, é um reencontro do ritmo natural, que permitem o prolongamento da existência:



Os três meses da Primavera chamam-se o período do princípio e do desenvolvimento da vida. As exalações do Céu e da Terra estão preparadas para gerar; assim, tudo se desenvolve e floresce.

Após uma noite de sono, as pessoas devem levantar-se de manhã cedo, caminhar vivamente pelo pátio, soltar o cabelo e tornar mais lentos os movimentos do corpo. Procedendo assim podem realizar o seu desejo de viver saudavelmente.

Durante este período, o corpo deve ser encorajado a viver e não a ser morto; devemos ceder-lhe livremente e não lhe tirar nada; devemos recompensá-lo e não castigá-lo.

Tudo isto está em harmonia com a exalação da Primavera e tudo isto é o método de proteção da nossa vida.

Os que desrespeitam as leis da Primavera serão punidos com mal do fígado. A esses o Verão seguinte reservará arrepios e mudanças más. Assim, terão pouco com que apoiar o seu desenvolvimento no Verão.

Os três meses de Verão chamam-se o período do crescimento luxuriante. As exalações do Céu e da Terra misturam-se e são benéficas. Está tudo em flor e começa a dar fruto.

Após uma noite de sono, as pessoas devem levantar-se de manhã cedo. Não se devem cansar durante o dia nem consentir que o seu espírito se irrite.

Devem permitir que as melhores partes do seu corpo e do seu espírito se desenvolvam; devem permitir que o seu hálito se comunique com o mundo exterior e devem proceder como se amassem tudo quanto existe exteriormente.

Tudo isto está em harmonia com a atmosfera do Verão e tudo isto é o método de proteção do nosso desenvolvimento.

Os que desrespeitam as leis do Verão serão punidos com mal do coração. A esses o Outono trará febres intermitentes. Assim, terão pouco apoio para as colheitas outonais e sofrerão de doença grave no solstício do Inverno.

Os três meses de Outono chamam-se o período de tranqüilidade da nossa conduta. A atmosfera do Céu é intensa e a atmosfera da Terra é desanuviada.

As pessoas devem deitar-se cedo e levantar-se cedo, com o cantar do galo. Devem ter o espírito em paz, a fim de minimizarem a punição do Outono. Alma e espírito devem unir-se para que a exalação do Outono seja tranqüila, e para conservarem os pulmões puros as pessoas não devem dar expansão aos seus desejos.

Tudo isto está em harmonia com a atmosfera e tudo isto é o método de proteção da nossa colheita.

Os que desrespeitarem as leis do Outono serão punidos com um mal pulmonar. A esses o Inverno trará indigestão e diarréia e, assim, terão pouco apoio para o armazenamento do Inverno.

Os três meses de Inverno chamam-se o período de fechar e armazenar. A água gela e a terra estala e abre fendas. Não devemos perturbar o nosso Yang (2).

As pessoas devem deitar-se cedo e levantar-se tarde, esperar que o Sol nasça. Devem reprimir e ocultar os seus desejos, como se não tivessem nenhum objetivo interior, como se estivessem em tudo satisfeitas. As pessoas devem tentar fugir ao frio e procurar calor, não devem transpirar pela pele e devem privar-se da exalação do frio.

Tudo isto está em harmonia com a atmosfera do Inverno e é o método de proteção do nosso armazenamento.

Os que desrespeitarem as leis do Inverno sofrerão de um mal dos rins (e Testículos); a eles a Primavera trará impotência e produzirão pouco.

O hálito do Céu é puro e leve. O Céu mantém sempre a sua virtude primitiva e, por isso, nunca se desmorona. Se o Céu se abrisse por completo, o Sol e a Lua nunca seriam luminosos, o mal chegaria durante este período de vazio, a atmosfera de Yang fechar-se-ia e a Terra perderia a sua luminosidade, nuvens e nevoeiro não poderiam sofrer mudanças, e, conseqüentemente, o orvalho branco não cairia e a circulação dos elementos naturais não se comunicaria à vida de tudo na Criação. A esta situação chamar-se-ia “não - doadora”, e, como conseqüência da sua “não - doação”, toda a vegetação pereceria. Além disso, o ar nocivo não desapareceria, vento e chuva não seriam harmoniosos, não cairia orvalho branco e a vegetação jamais voltaria a florescer. Haveria sempre ventos violentos e chuvaradas súbitas, e o Céu, a Terra e as quatro estações seriam incapazes de se proteger entre si, perderiam o Dao e não tardariam a ser destruídas.

Os sábios respeitavam as leis da natureza, e, por isso, o seu corpo estava isento de doenças estranhas; não perdiam nada do que tinham recebido da Natureza e o seu espírito de vida nunca se esgotava.

Aqueles que não procedem de conformidade com o hálito da Primavera não trarão vida à região do Yang inferior A atmosfera do seu fígado modificar-lhes-á a constituição.

Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera do Verão não desenvolverão o seu Yang superior. A atmosfera do seu coração tornar-se-á vazia.

Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera do Outono não colherão o seu Yin superior A atmosfera dos seus pulmões ficará bloqueada, isolada do seu espaço de combustão inferior.

Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera do Inverno não abastecerão o seu Yin inferior A atmosfera dos seus testículos (rins) ficará isolada e diminuída.

Destarte, as interações das quatro estações e as interações do Yin e do Yang, os dois princípios da Natureza, são os alicerces de tudo quanto existe na Criação. Daí que os sábios tenham concebido e desenvolvido o seu Yang na Primavera e no Verão e concebido e desenvolvido o seu Yin no Outono e no Inverno, a fim de respeitarem a regra das regras; e assim, juntamente com tudo o mais da Criação, os sábios mantiveram-se no limiar da vida e do desenvolvimento.

Os que se rebelam contra as regras básicas do Universo cortam as próprias raízes e destroem a sua verdadeira personalidade. O Yin e o Yang - os dois princípios da Natureza - e as quatro estações são o princípio e o fim de tudo e são igualmente a causa da vida e da morte. Os que desobedecem às leis do Universo dão origem a calamidades e provações, enquanto os que respeitam as leis do Universo permanecem isentos de doenças perigosas, pois a eles foi concedido o Dao, o Caminho Certo.




Este longo trecho nos permite compreender que a proposta do Neijing englobava, nitidamente, uma concepção de comportamento adequado, elemento essencial das escolas filosóficas. Podemos nos perguntar se isso implicava alguma postura ética, mas na mentalidade da dinastia Han, as bases da ética estavam diretamente assentadas numa relação ecológica com a natureza. Sendo assim, a investigação intima levava ao auto-conhecimento, fundamental para o desenvolvimento da sabedoria.



Devemos lembrar, ainda, que as implicações do corpo possuem uma ligação direta com o espírito (shen). Nos dias de hoje, a medicina chinesa continua a estudar as implicações das propensões corpóreas com o caráter do individuo, questão importantíssima para a sua realização pessoal. Claude Larré, no seu livro Os Movimentos do coração nos faz uma apresentação bastante esclarecedora sobre o assunto, defendendo esta teoria que, desde então, tem se desenvolvido - ao invés de encontrar a simples obsolescência.



A própria concepção de que a proposta médica do Neijing é também filosófica reside na conclusão do segundo capítulo do texto, que mostra que a prática deste Dao era, também, uma opção:



O Dao era praticado pelos sábios e admirado pelos ignorantes. A obediência às leis do Yin e do Yang significa vida; a desobediência significa morte. Os obedientes dominarão, enquanto os desobedientes viverão em desordem e confusão. Tudo quanto é contrário à harmonia com a Natureza é desobediência e equivale à rebelião contra a Natureza.

Por isso, os sábios não tratavam aqueles que já estavam doentes e instruíam aqueles que ainda não estavam doentes. Não queriam guiar aqueles que já eram rebeldes; guiavam aqueles que ainda não eram rebeldes. E este o significado de toda a discussão precedente. Administrar remédios a doenças que já se desenvolveram e reprimir revoltas que já eclodiram é comparável ao comportamento daquelas pessoas que começam a abrir um poço depois de terem sede, ou daquelas que começam a fundir armas depois de já se terem lançado na batalha. Não chegarão estas ações demasiado tarde?




Conclusão



Mas o que leva uma proposta Dao atraente, e calcada em princípios tão sólidos, ser efetivamente deslocada das discussões centrais sobre a ética e a política na China antiga?



Como afirmou Sima Tan (em um texto salvo por seu filho, Sima Qian, no Shiji):



A escola yin-yang tem teorias que enfatizam demais as forças naturais, ensinando que as coisas estão além do homem. Isso faz com que as pessoas se sintam limitadas e medrosas. No entanto, seu trabalho arruma de modo correto a fundamental sucessão das quatro estações, e preenche uma necessidade essencial de ordem.



Isso significava que os chineses compreendiam os cosmológicos como investigadores da natureza, mas carecia-lhes, de fato, uma noção explicativa sobre o que seria a sabedoria, em si, e sua aplicação no convívio social. Tal como Sunzi, em sua Lei da guerra, que ensinava os meios da eficácia para que alguém alcançasse o poder e assim, estabelecesse um Dao (fosse confucionista, daoista, legista, etc.), o Neijing era encarado também como um meio auxiliar de busca para a sabedoria: cuide do corpo, e a mente ficara bem; e assim, pode-se buscar um Dao.



De fato, a ausência de um discurso político (uma arte de governo, ou uma discussão sobre os ritos, como aparece nas outras escolas filosóficas) afastou o Neijing do plano ético. Somente Hanyu, durante a dinastia tang, iria realizar uma analogia sobre a arte de governar e os cuidados de um médico:



Um bom médico não olha se um homem é gordo ou magro, ele examina se seus órgãos internos estão enfermos e isso é tudo. Da mesma maneira, quem sabe discutir os acontecimentos do império não olha se o país está em paz ou em guerra, mas examina suasse suas bases essenciais estão intactas ou corrompidas, e isso é tudo.

O império se assemelha ao homem: a prosperidade e a adversidade como a gordura ou a magreza; e as bases essenciais são como os órgãos internos.

Se os órgãos internos não estão enfermos, não há mal em que o homem seja magro; mas se seus órgãos internos estiverem doente, por mais forte que ele seja, ele morrerá. Quem compreender bem o que digo saberá entender como é um Estado.

[...]

Assim sendo, por mais robustos que estejam os quatro membros, não há motivo para estar tranqüilo; tudo depende dos órgãos internos. do mesmo modo, o império pode gozar de paz absoluta, que não há motivos para não inquietar-se; tudo depende de suas bases essenciais.

Preocupar-se com o que pode trazer inquietude, temer o que pode parecer tranqüilizador, isso é que nos permite reconhecer quem é um bom médico e um bom político.




Tal consideração, porem, não parecia fazer parte das preocupações dos estudiosos do Neijing, que propositalmente dirigiram-se para outros setores do conhecimento. Contudo, sua investigação sobre o corpo humano, sobre as doenças e meios de prevenção buscando incessantemente o ajuste ideal (ou equilíbrio, a harmonia, o He) manteve uma atualidade e um dinamismo incríveis, contra os quais as outras escolas não puderam concorrer.



A disseminação dos hábitos saudáveis na sociedade chinesa deve em muito a esta filosofia medica, que tem sido recuperada pelo governo atual do país. A visão de milhares de pessoas todas as manhãs praticando exercícios, prestando atenção a alimentação, e tratando-se com uma fitoterapia consagrada e profundamente estudada, devem tributo às concepções desta escola tão mal conhecida - senão no âmbito da medicina tradicional chinesa - e que, porém, obteve um sucesso significativo em eficácia e continuidade histórica.



Nota: Duas boas traduções do Neijing podem ser encontradas em português. A versão aqui utilizada foi publicada pelo editora Domínio Público, em 1991, com o nome de Neiching, o livro de ouro da medicina chinesa; a editora Agir publicou outra, mais recente, com o título de O Canone do Imperador Amarelo, que conta com o texto em chinês e destina-se diretamente aos estudantes de medicina chinesa.





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